Agostinho da Silva gostava de recordar o segredo para não enjoar a bordo de um navio: contemplar fixamente o horizonte. O navio da nossa democracia, novinho de 40 anos, vai com 6 anos consecutivos de uma crise inaudita. Começou por ser económica, depois foi também política, depois foi também social, e agora é também moral. Os vagalhões avançam imparáveis, uns atrás dos outros e cada vez maiores. Não ir ao fundo é uma sorte, enjoar é inevitável. Precisamos de olhar para o horizonte.
No meio do nevoeiro de guerra que a Operação Marquês provocou tamanho o seu poder de fogo, o sentimento de confusão é a resposta mais natural. Não sabemos o que está em causa naquilo que nos dizem ser a causa das coisas. Mas sabemos que o Estado de direito está a funcionar. Procurador e juiz estarão a dar o seu melhor na defesa dos nossos interesses – esta deve ser uma presunção tão preciosa quanto a da inocência de Sócrates até prova em contrário.
Quem se tenta libertar do eventual sofrimento pedindo a captura judicial de outras figuras da política nacional, como se esse suposto reequilíbrio entre acusados de diferentes trincheiras fosse uma forma de justiça com mérito e oportunidade, só consegue expressar a sua impotência. Mas esse nem é o problema maior. A verdade é a de que Cavaco, Passos e Portas, para dar os exemplos equivalentes e gritados, poderão não ter cometido crime ou ilegalidade alguma. Em tempo algum. Por um lado, a Justiça nunca os acusou de nada. Por outro, quem os calunia nada conseguiria provar. E não parece lá muito inteligente pensar que vem algum benefício pelo aumento de criminosos na sociedade.
O nosso horizonte é o Estado de direito democrático. Uma conquista que é uma civilização. Representa o triunfo sobre a animalidade, sobre o tribalismo, sobre a oligarquia, sobre a ditadura. É o esqueleto que mantém os órgãos do regime no seu lugar e permite a vida saudável da comunidade, porque livre. Todos nunca seremos de mais para o defender, desenvolver e melhorar. Só que nem todos o defendem.
Quem nesta altura exulta com a prisão de Sócrates já tinha a sua convicção formada há muito e para sempre a conservaria mesmo sem este processo. Os mais batidos na caçada saltaram frenéticos para a rua e andam a passear impantes em desfile militar, exibindo as medalhas pelo serviço prestado à deturpação do Estado de direito. Lembram que foram os primeiros a levar o bandido a tribunal e a fazer a decisão transitar em julgado. A pulsão de ódio que os anima clama por mais sangue e sonham com regenerações, purificações, guilhotinas, amanhãs que cantam, purgas, cordões sanitários. Riem felizes à gargalhada. A destruição do inimigo parece-lhes absoluta e orgástica.
Conta-se que Tomás de Aquino foi alvo de uma brincadeira nos seus tempos de estudante. Um colega interrompeu-lhe a leitura e disse para ir ver uma vaca que estava a voar. Ele de imediato se levantou e correu para a janela, só para deparar com as pachorrentas vaquinhas ocupadas na mastigação de patas bem assentes na terra. Foi a gozação geral. Mas o Tomás, exímio aristotélico, saiu-se com a seguinte habilidade destinada à posteridade: “Acho mais lógico ver uma vaca a voar do que um monge a mentir.” Atente-se à simplicidade geométrica do critério.
A lição aplica-se ao nosso tempo de violação organizada do Estado de direito, onde quem resista à cumplicidade na sua degradação passa por crédulo a pedir para ser ridicularizado. Acontece que um ingénuo nunca se engana, apenas acrescenta novos conhecimentos. Já o cínico nada consegue aprender, prefere esperar sentado até que a razão vá ter consigo. No que ao cidadão Sócrates diga respeito, prefiro mil vezes a ingenuidade, mãe da curiosidade, do que ficar ao lado daqueles para quem o Estado de direito não passa de uma anedota. Estes pulhas, além de estúpidos, são perigosos.