A apatia dos portugueses perante um Governo duplamente traidor – pois nasce da traição eleitoral e da traição aos interesses da enorme maioria da população – não tem ninguém que a estude, interprete e reflicta. Dos partidos não podemos esperar esse serviço pois estão ocupados consigo próprios. Dos jornalistas e publicistas não podemos esperar esse trabalho pois estão ocupados com os partidos. E dos cientistas sociais residentes na academia não devemos esperar esse contributo pois não parecem sequer ter vocação para requalificar o espaço e o debate público, encontrando-se ausentes em parte certa. Sobram os psiquiatras, os psicólogos e os astrólogos, obrigados todos ao sigilo profissional (embora por razões diferentes).
Quem passa por um ciclo de três anos onde, de forma ubíqua na comunicação social e na oposição, os governantes são tratados como corruptos sem que para tal fosse preciso provar coisa alguma e naquelas em que se tentou policial e judicialmente derrubá-los não foi encontrada prova para tal, espera que a liderança seguinte do País demonstre a sua razão passada e a sua virtude presente. Quem passa por um ciclo de três anos onde, de forma sistemática na oposição e na comunicação social, os governantes são causticados ora por promoverem o investimento público, ora por reduzirem as despesas do Estado, espera que a liderança seguinte do País demonstre o acerto das suas promessas passadas e do seu programa presente. Com este Governo, a ilusão durou apenas dias. A primeira medida anunciada por Vítor Gaspar logo em Julho de 2011 implicava o rompimento do mais espectacular juramento de campanha de Passos Coelho e que era o cerne do seu posicionamento alternativo à austeridade dos PEC: o subsídio de Natal ia mesmo ser cortado. Com esse gesto inaugural da gula além-Troika destruía-se a capacidade do eleitorado para dar sentido benigno ao que se estava a passar; no entanto, já não havia energia para lhe dar sentido maligno. O efeito era e é em tudo igual ao que acontece quando somos vítimas da maior violência por parte daqueles em quem temos a maior confiança. Choque e trauma, confusão e paralisia.
É das coisas mais fáceis para fazer sendo-se o feliz proprietário de um singelo par de neurónios: imaginar as reacções políticas, mediáticas e sociais caso tivesse sido um Governo PS a ir contra a Constituição só para tentar empobrecer ainda mais os portugueses, a esmagar a economia e a classe média com impostos, a apelar à emigração dos mais jovens e mais capazes, a desmantelar os serviços do Estado Social com fúria e gargalhada, a ser o cúmplice fanático do castigo moral dos países ricos aos países pobres na Europa, a provocar um caos na Educação como o que estamos a viver, a conseguir tornar inoperante a instituição judicial como nunca se viu antes nem se imaginava possível, a negociar e renegociar o Memorando a cada avaliação só para acabarmos muito pior do que estávamos quando se disse estar ali o remédio vindo do estrangeiro contra os vícios dos indígenas que não se sabem governar. Seriam espectáculos imperdíveis esses de ver Passos Coelho e Paulo Portas a espancarem a política fiscal que têm aplicado, ver Nuno Crato a gozar com os erros matemáticos que cometeu, ver Paula Teixeira da Cruz a libertar a sua nefanda bílis para cima do apagão da Justiça que inventou sozinha. E que dizer da esquerda pura e verdadeira, do PCP, dos sindicatos e, claro, dos patrões da imprensa e seus altifalantes? O arraial imparável em que andariam, gastando a Avenida da Liberdade para cima e para baixo, uns, e fazendo emissões contínuas com os profetas do Apocalipse, os outros?
Ferreira Leite e Bagão Félix são duas das mais populares figuras da oposição ao nosso (des)Governo de liberais ultramontanos. O que dizem faz sentido sem necessidade de intérprete, é assimilado pela maior parte da população como sendo um discurso que espelha as dificuldades e necessidades do cidadão comum. Ora, Ferreira Leite é a mesma que definiu a Grande Recessão como não passando de um “abalozinho” e até tinha chiliques só de imaginar que Sócrates poderia ficar como deputado no caso de perder as eleições em 2011. E Bagão Félix é o mesmo que propôs, sem se rir, no princípio de 2011, um Governo PSD-CDS-PCP sob o argumento de que os comunistas eram “gente séria”, ao contrário dos socialistas, e que valia tudo para correr com Sócrates. Como é que estas duas pessoas passaram do destrambelhamento circense para um meridiano bom senso? Seja lá o que for que tenham tomado, bebido ou fumado, ou que tenham deixado de tomar, beber e fumar no entretanto, servem estes dois exemplos para dizer que vale a pena manter a esperança. Um dia destes o País vai acordar da impotência em que chafurda sonâmbulo e tratar os traidores de acordo com a melhor tradição: deixando-os para trás enquanto nos metemos a caminho da comunidade que queremos ser.