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Les beaux esprits se rencontrent

É um chavão, e logo gaulês. Mas é também – pelo menos no caso da «Sininho» e do «Py» – uma grande verdade. Quando escrevi o post aí abaixo (esse com a foto do deserto em Marrocos), estava longe de imaginar que não estava sozinho, por aqui, e que estava até muito bem acompanhado.

Pois acontece isto: tanto a Sininho como o Py enviaram-nos fotos daquele país magnífico. E próximo. Segundo rezam os ditos, Rabat é a capital mais próxima de Lisboa. Não é, Madrid ganha-lhe por uns quilometrozecos. Mas quem repara nisso?… E faz muito bem.

Ora, o Py andou por Alcácer Quibir e foi ao local da batalha (que fica 16 km a nordeste da cidade de tão famoso e agoirento nome). Tirou lá esta foto, que comenta nos termos que seguem.

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Quando vi este post do Fernando, lembrei-me de uma coisa. O ano passado voltei a Alcácer-Quibir, lá fui a cheirar, até que voltei ao sítio da batalha. Fui fazer uma mijinha e fotografar. Fiquei de descobrir mais tarde o que estava na placa com as três coroas. Já que na batalha morreram os três reis, na versão mais corrente, e estão lá três coroas, pensei que podiam ser os três reis, mas os dois de baixo têm a estrela do Islão e o de cima tem um tracinho vertical e não iam pôr D. Sebastião por cima dos deles, logo será Allah? Não faço ideia do que está escrito na placa e infelizmente não fotografei de mais perto.

Os meus meios técnicos permitem chegar a isto. Já haverá quem possa ler?

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Entretanto a Sininho andou fotografando material culinário. Isto, por exemplo.

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E informa que as suas melhores fotos – «as do deserto» – não estão digitalizadas. Esta está, e tanto que, no jornal de cima, em letras vermelhas, pode ler-se, bem grande, «Les pays arabes e[xigent?] paix et réformes».

A reprodução, aqui, é… degueulasse.

Dissertação sobre uma pequena baleia azul

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João Camilo

Pego num livro de João Camilo. O título é bonito, apelativo e revelador – Nunca mais se apagam as imagens. A editora tem um nome curioso – «Fenda». Descubro então um marcador assinalando um poema que começa assim:

Os poemas deles falam de poetas e de pintores
das cidades que outra arte tornou inesquecíveis.
Com títulos ingleses e palavras estrangeiras
tentam escapar ao tédio e adoram o bezerro já idolatrado.
Literatura que celebra a literatura, arte que comemora a arte
não nos resta como projecto de futuro senão a aventura alheia?

Para além do poema e das suas perguntas pertinentes, fiquei a pensar no marcador. Trata-se de uma sorridente baleia que atira para o ar a água azul que acompanha a sua respiração. Mas é tudo artesanato. A minha filha Ana Maria tinha ao tempo o saudável hábito de não deitar nada fora e por isso, em vez de comprar marcadores na Papelaria Fernandes, fazia ela própria os marcadores com aquilo que sobejava dos seus trabalhos de estudante de arquitectura.

Digo ao tempo, pois presumo que o marcador foi feito em 1996; ainda não era conhecido em Lisboa o Café Peter que só apareceu com a EXPO 98. Esta ideia de manter, poupar e reutilizar tem muito a ver com aquilo que ela aprendeu com a avó Olímpia. A minha mãe tinha uma máquina de costura e já na minha infância fazia muitas vezes para mim camisas novas com camisas velhas do meu pai e calções novos com calças velhas do meu avô que, por ser carpinteiro, as tinha mais poupadas.

Hoje a Ana veste ao meu neto Thomas em Londres jardineiras feitas pela costureira D. Armanda a partir de calças velhas do meu filho Filipe ou da minha filha Marta. Não me canso de olhar este marcador com a pequena baleia azul.

José do Carmo Francisco

Chama-se a isto saudade?

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Marrocos. Entre Merzouga e Zagora

Dou a volta costumeira pelo Abrupto. E, de repente, na excelente série fotográfica «Espaços onde se pode respirar», esta foto, feita por MARTA PINHO. No blog de JPP, pode ampliá-la.

Marrocos é em grande parte – já o escrevi alhures – bem mais verde do que o nosso (o meu) Alentejo. E Alcácer-Quibir, amigos compatriotas, fica no meio duma planície verdejante, onde crescem frutos e legumes. Qual deserto, senhor cineasta Oliveira! Mas, é verdade: lá muito longe, para Sul, a coisa põe-se realmente assim.

Há-de haver, por ali, pegadas minhas. E eu partiria, esta tarde ainda, para lá. Mas – aí está – as prioridades…

O teu retrato

Ele próprio, o autor, diz que é uma convenção, isso do Dia da Poesia.
É, pois claro. Todos os dias são-no da poesia também.

Mas sejamos, por uma vez, placidamente, chãmente convencionais.
E assinalemos a coisa. A Poesia, digo.

O TEU RETRATO

O cabelo é uma onda feita em espuma
Na areia da praia da Vieira de Leiria
A fronte é uma eira dentro da bruma
Entre a Senhora do Monte e a Abadia

Os olhos são candeias sempre acesas
Nas casas onde a nossa vida recomeça
São poemas colocados sobre as mesas
Um teatro que em cada dia é uma peça

A tua boca tem o calor de uma lareira
Com brasas que não morrem noite fora
Um fogo a arder sem queimar madeira
Uma luz que se prolonga e se demora

A tua voz é alta, pode ir até ao infinito
Com palavras que não ficam sozinhas
O meu poema é um espaço tão restrito
Abrevia o teu retrato em poucas linhas

José do Carmo Francisco

Vai uma anedOTA?

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O método é do mais arbitrário, do mais tendencioso, enfim, do mais revoltantemente foleiro. Mas pode ajudar a encher logo o serão.

Acaba, de resto, inspirado num gracioso artigo (mas brincando, brincando…) ontem no «Público», que se intitulava «Uma ‘brincalh’OTA’», e que ensinava onde se constroem bons aeroportos.

E, depois, a estes achados costumam estar associadas umas elevadas somas publicitárias – ou estou a dizer alguma inconveniência?

Pois bem: aqui se lança este inocente jogo de sociedade. Eu entraria modestamente com:

PalhOTA
CambalhOTA
PorcalhOTA

Dinis Machado, o poeta obscuro

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No dia 13 de Fevereiro de 1994, Dinis Machado ofereceu-me um poema manuscrito intitulado «II Soneto para Cesário», com uma dedicatória: «oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário». Segundo me explicou mais tarde, sabia os seus poemas de cor, mas nunca os publicou, porque entendia que não valia a pena.

A edição especial de O que diz Molero vai ser apresentada no próximo dia 21 de Março, dia da Primavera e do 77º aniversário de Dinis Machado. Ao que sei (telefonaram-me), a Bertrand vai fazer uma festa no Tivoli nesse dia.

Como o Dinis espalhou alguns poemas no articulado do «Molero», penso que uma boa homenagem a ele (e a todos nós) será divulgar o tal soneto do poeta obscuro Dinis Machado. Espero que gostem:

Se te encontrasse, agora, na paisagem
Nocturna dos fantasmas da cidade
Contava-te dos nossos pobres versos
No teu rasto de sombra e claridade.

Contava-te do frio que há em medir
A distância entre as mãos e as estrelas
Com lágrimas de pedra nos sapatos
E um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te – sei lá – desta rotina
De embalarmos a morte nas paredes
De tecermos o destino nas valetas.

De uma história de luas e de esquinas
Com retratos e flores da madrugada
A boiarem na água das sarjetas.

José do Carmo Francisco

Álvaro Carvalheiro ou os limites da terra e da água

Há nas fotografias de Álvaro Carvalheiro (Torres Novas, 1938), em exposição no Centro Comercial Fonte Nova de Lisboa, a insistente presença do Homem em diálogo com a Natureza. Desde 1999 que acompanho com interesse e emoção o seu percurso de poeta da imagem. Autor de poemas. Que outra coisa não são as suas fotografias destinadas a ligar de novo aquilo que o tempo separou. E todo o poema é esse projecto de religação.

Nas fotografias de Álvaro Carvalheiro, o Homem defronta o Mundo e as suas mais inquietas perguntas em três Cabos (o Cabo Carvoeiro, o Cabo de São Vicente e Cabo da Roca) e numa praia – a mítica Praia da Consolação. A praia para onde ia todos os anos o poeta Ruy Belo. As silhuetas que enterram os pés na areia ou que fazem a pontuação humana junto aos limites da água e da terra são vírgulas, reticências e pontos de interrogação em forma de gente. A vida e a morte, a alegria e a tristeza, a luz e a sombra, a memória e o esquecimento – são estas as quatro linhas de força que empurram para a ribalta os protagonistas das fotografias de Álvaro Carvalheiro. É um mundo envolto em harmonia, em paz, em bem-estar.

A objectiva do fotógrafo captou não apenas um registo mecânico, mas a carga subjectiva dum ser humano nas perguntas mais essenciais: quem somos, donde vimos, para onde vamos? Não por acaso entre terra e água, em silhueta porque somos pó da terra, mas é a água que nos dá a vida.

Raúl Brandão dizia que a ternura é húmida. Álvaro Carvalheiro vem dar razão ao nosso escritor de há cem anos. Porque as suas fotografias respiram a humidade da ternura com que a sua objectiva aborda e regista o homem entre a terra e a água.

José do Carmo Francisco

O decano

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Ele mora – ao que me dizem – na mesma cidade que eu. Não sendo o burgo nenhuma metrópole, é ainda assim grande o bastante para que não nos cruzemos. Até hoje. Aqui. Na blogosfera.

José Rentes de Carvalho escrevia já no blogue de Rui Ângelo Araújo, o antigo director da Periférica, de nunca suficientemente chorada memória – a revista, entendem.

Pois foi no passeio (quase diário) a A Origem das Espécies que fiquei informado: Rentes tem um blogue dele mesmo, Tempo Contado, título já dum diário seu, aparecido há anos. Mas mais: sabe-se agora quem poderá ser o decano de todos nós, blogueiros. Mais importante ainda: ele é um dos nossos grandes prosadores vivos.

Sirva de engodo este curtíssimo post:

AMAR MENOS
Ela diz:
– Sinto que o amo menos agora do que há três anos,
quando voltámos para a Holanda.
Aceno compreensivo, mas no íntimo pergunto-me:
entre amar menos e já não amar, qual é a diferença?

Álvaro Cunhal não fugiu de Caxias

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A revista tem Denzel Washington na capa e chama-se Certa – mas, pelos vistos, às vezes não acerta. É distribuída nos supermercados Continente, publicada pela Edimpresa e tem como director José Fortunato. Os seus temas-base são: TV, Beleza, Culinária, Moda, Saúde e Actualidade.

Dentro da actualidade, surge uma coluna com sugestões para a quinzena. São três os livros referidos em breves notas de leitura: Salva-me, A criança que não queria falar e Máscaras de Salazar. Pois aqui é que bate o ponto. Sobre este terceiro livro, de Fernando Dacosta, há um texto que termina deste modo: «O ex-Presidente do Conselho não caiu de nenhuma cadeira, conservou, escondidas, duas cápsulas de cianeto fornecidas por Hitler, a PIDE matou Delgado sem o seu conhecimento, foi ele que sugeriu a fuga de Cunhal da prisão de Caxias.» Aqui está um erro crasso. Álvaro Cunhal fugiu sim, mas de Peniche.

No dia 3 de Janeiro de 1960, lembro-me muito bem, estava o meu pai no Montijo a descansar, e veio um guarda dos Serviços Prisionais chamá-lo a casa (na Rua Sacadura Cabral) para ir com um grupo de homens montar guarda ao cruzamento de Pegões. O meu pai não era polícia, mas sim motorista assalariado do Ministério da Justiça. Lá teve que ir, mas a resmungar, pois não fazia nenhum sentido Álvaro Cunhal e os outros fugitivos do forte de Peniche irem aparecer no cruzamento de Pegões, onde se juntavam as estradas do Porto Alto, da Marateca, de Vendas Novas e do Montijo.

Salvou-se disso tudo um bom vinho branco que eles trouxeram de Santo Isidro de Pegões. Ainda hoje quando sou entrevistado, digo que o meu vinho preferido é o branco de Pegões. Mas não confundo Caxias e Peniche.

José do Carmo Francisco

Fórmulas do paraíso

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‘Música das esferas’, ‘melodias celestiais’: terá a música a ver com a eternidade – ou, mais, terá a eternidade a ver com a música? Um dia, lá em cima, é um dizer, teremos nós um iPod de memória eterna?

Enquanto as perguntas ficam, fatalmente, no ar, vai-se fazendo o que se pode. E daunlôuda-se a doce engenhoca dos sonhos sonoros com uma eternidade aos pedaços. O meu aparelhinho, um Zen da Creative, permite repetir um número até um fulano cair de podre. Não se diga que não é, então, um reflexo da eternidade.

Esta tarde saí (o tempo começa a imitar a Primavera) e eternizei-me em All by myself. Não o de Celine Dion (mas podia ser, e daí a capa do CD), sim a versão instrumental de James Last com o piano de Richard Clayderman. O autor da peça, fiquei a saber aqui, é Eric Carmen. O que eu já conhecia era a paternidade de Rachmaninoff para o primeiro tema, o da ‘estrofe’. Ele é autor de algumas das mais – bom, digamos – celestiais melodias cá em baixo, e talvez só superado por Tchaikovsky e Mozart.

Absolutamente genial na versão Last-Clayderman é o coro feminino que irrompe quando menos se espera, e que ressoa como numa imensa catedral.

A música das esferas, portanto? Talvez. Celestial é.

Nós que não somos de vaidades

Ainda a noite é uma menina – e noutros lugares do Planeta ainda vai alto o Sol. Assim, é de supor que esta mesma madrugada o Aspirina receba o seu passante número 1.000.000. Diz-se «passante», e não «visitante». Há quem venha aqui ter porque busca a página, você por exemplo, mas também quem ande aí ó tio ó tio pela blogosfera, e caia aqui por engano. Tudo isso está nesse número respeitável.

Mas mesmo as visitas se aproximam dos 500.000. Isto, em um ano, três meses e quinze dias, tem a sua graça.

Passa pouco da meia-noite, o marcador indica exactamente 999,864 passagens.

Traduzindo em letras: Durma bem.

Actualização

Pois é, assim não dá gozo. Esta profecia era das fáceis.

Gabriel Alves já não vai pedir desculpa

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Leio no Diário de Notícias deste sábado (10-3-2007) uma notícia: «Gabriel Alves deixa a RTP em litígio». Esta situação interessa-me, não pelo assunto pessoal em si, mas porque agora, fora de RTP, Gabriel Alves já não vai pedir desculpa. E tinha desculpas a pedir. Trata-se do seguinte.

Aqui há meses, a RTP transmitiu um documentário feito por ingleses e por brasileiros no qual Gabriel Alves papagueou umas palavras mentirosas sobre o que se passou em Julho de 1966 em Inglaterra. Dizer que um defesa português «arrumou» Pelé é mentira – e uma mentira, mesmo repetida muitas vezes, não deixa de o ser. Na verdade em 19-7-66 Morais não «arrumou» Pelé porque ele já estava arrumado desde 12-7-66. Nesse dia, o búlgaro Voutsov teve uma entrada violenta sobre o avançado brasileiro. Por isso, em 15-7-66, contra a Hungria, ele não jogou e foi substituído por Tostão.

Contra Portugal, em 19-7-66 o treinador brasileiro arriscou muito, pois, além de ter colocado Pelé (ainda lesionado) em campo, fez jogar vários estreantes: Manga, Fidelis, Brito, Orlando, Rildo, Denilson, Lima, Silva e Paraná. Quase uma equipa inteira num «tudo por tudo» que, como é natural, não resultou. Daí a provocação miserável de atirarem as culpas do insucesso para as costas dum jogador português chamado Morais.

Gabriel Alves papagueou sem hesitações esta mentira e agora pelos vistos já não vai a tempo de pedir desculpa. Não só a Morais, mas a todos nós que ainda temos memória e sabemos como as coisas se passaram. É que, segundo a notícia do Diário de Notícias, Gabriel Alves tem 60 anos. O mesmo é dizer,idade para ter algum juízo e saber a diferença entre a verdade e a mentira. Se eu tenho 56 e me lembro, ele tem a obrigação de saber o mesmo que eu.

José do Carmo Francisco

Pensamentos para o serão

Escrito a meio de ler «Como se morre, Adolfo?», poema de Jorge de Sena, de 1972, à memória de Casais Monteiro:

Um dia acordarás
dizendo esta coisa
«olha, estás vivo».
Será uma coisa nova
que nunca ninguém te havia dito.
E assim todas as manhãs.
Chuva ou sol.

Até ao dia em que
estupidamente
ninguém houver para
dizer-to.

8 de Março de 2007

A PAVOROSA

“O Mundo é feito de histórias, não de átomos” – Muriel Rukeyser

Só um bruxo dos bons, mas não necessàriamente diplomado em artes cabalísticas, poderá saber exactamente que ideias malvadas andarão nas cabeças dos criadores e utilizadores da Grande Pavorosa. E passemos à definição. Por Pavorosa entenda-se: no geral, a organização coberta e inteligente responsável pela divulgação, no melhor estilo da Intriga Histórica, da pseudo-notícia que nos mete medo e nos deixa tontos ao ponto de não sabermos para que lado fica S. Bento; e no particular, que agora interessa porque aparece nos jornais constantemente, o noticioso quotidiano, a concentração do tiro propagandistico num alvo favorito e central; o martelar constante, o hábito e mania dos títeres do verbo e da imagem nos informarem, sem que lhes encomendemos, de como vai o progressso tecnológico do Irão no que respeita à sua capacidade para pôr o carimbo de “pronto” numa bombita atómica.

Jornais e televisões de ontem e de vários ontens contam-nos, em repetição nauseante e convencida de que é possível vender impunemente peixe moído ou pão duro como corno, que os cientistas do Irão estão a seis meses de conseguirem pôr a funcionar engenhos atómicos capazes de destruirem a civilização Ocidental – e Israel como contrapeso, incluindo Gaza e redondezas, e peixes cristãos que por lá nadam no mar da Galileia e um ou outro gafanhoto distraído. Já nos andam a dizer isso, ou algo parecido com isso, há quanto tempo? Ponham as cabecitas a trabalhar os cidadãos menos confusos e digam-nos se já não é, pelo menos, desde o dia em que a Pavorosa se compenetrou de que o Iraque e o Afeganistão provaram ser ossos duríssimos de roer e que os petróleos roubados nem dão para encher os depósitos às máquinas de guerra. Na precipitação de nos venderem o Programa, até se têm esquecido de nos actualizar sobre a Coreia do Norte, uma gaja mais perigosa porque fica mesmo ao lado da China – a tal que o capitalismo anda a cortejar depois da queda propositada do Império Soviético do Oriente.

Reparem os menos preparados em Fisica Nuclear que aqui há cerca de dez anos, ou talvez mais, já os mesmos gajos dos mesmos jornais e das mesmas televisões e das mesmas agências noticiosas tipo “andamos-todos-a-trabalhar-para-os-mesmos-barões-endinheirados-mas-não-se-nota-muito” – directamente controlados pelos mesmos cérebros da Pavorosa oficial, nos andavam a querer convencer, enchendo-nos de cagaço e terror, de que a Internet albergava entre as suas páginas negras informação científica, pormenorizada em planos bem desenhados, que permitiria a dois ou três badamecos com umas luzes de física, e ajudas dum serralheiro e dum soldador, construirem uma bomba atómica rudimentar. Quantos milhões teriam bebido desse cálice e depois arrotado em agradecimento é coisa que ninguém sabe ao certo.

E agora somos informados pelos mesmos operadores da máquina do susto colectivo e da propaganda que os molengões cientistas do Irão precisam de mais seis meses, em cima dos anos todos que já perderam nessa estafante procura do poder atómico destrutivo. Parvalhões, essa persalhada, é o que apetece dizer. Tudo isso poderia ter sido conseguido com uma perna às costas em três ou quatro semanas se tivessem ido à Internet, conforme a Pavorosa diligentemente nos contou para manter o cagaço à temperatura ideal. Onde é que estes fundamentalistas do diabo aprenderam a usar com eficiência as suas inteligências de físicos-nucleares? E depois, reparamos, não há solidariedade alcorânica de espécie nenhuma. Porque poderia haver. Da parte dos generais paquistaneses de muito boas relações com as ciaieis, por exemplo. E porque não? Os próprios americanos (Roosevelt e companhia) têm a fama de ter passado esse segredo aos russos antes do fim da Segunda Mundial! Incrível? Bom, tiveram que condenar os Rosenbergs à morte – tradicionais mártires do bode-expiatorismo e da espionagem por amor à causa – mas isso deve ter sido para compor o ramalhete, para dar um arzito de grande avanço científico aos camaradas da União das Repúblicas Proletárias. Guerra Fria, a quanto obrigaste, grande rameira enganadora!

Entre o nervosismo de papagaios atómicos muitos agressivos para ajudar a manter as fervuras nos mercados colaterais da opinião,sobressaiem as duas preocupações que mais afligem aqueles que necessitam de convencer-nos de que existe ameaça e perigo real de invasão das terras santíssimas, cristianíssimas e filistiníssimas pelos infidelíssimos Maometanos. A primeira dessas preocupações, sempre vital para a sobrevivência da Intriga, geradora e mantenedora dos enormes lucros políticos, é a de não acordarem de sonos profundos as princesas mamalhudas das imprensas e canais da informação super-anedótica e estercorosa; e a segunda, ainda mais importante, é a de encontrarem a melhor maneira de fazer frente militar a esse perigo com que nos apavoram sem causarem grande estrago às suas reputações que já andam pelas ruas da amargura mesmo que só acreditemos nas versões autorizadas da história recente. .O operático dilema posto aos falcões apologistas da futura guerra, que já tem guernicas preparatórias de sobejo, é de reduzir qualquer general de cinco estrelas a uma enorme pilha de nervos: bombardear o Irão com mini-bombas atómicas de fazer buraco de vinte metros e com fallout de nem sequer causar eczemas superficiais; ou, alternativamente, usar bojardas megatónicas, tipo Grão-Rabino Mark II, de arrasar burgos e agriculturas e empestar ecologias mas sem fazer grande mossa nas cavernas (vinte, eles até já sabem que são vinte!) reforçadas com betões armados da espessura de cinco elefantes?.

Ninguem gostaria de ter a responsabilidade duma decisão dessas no seu livrinho de deveres distribuídos, nem mesmo os homens com os peitos militares cheios de medalhas ganhas em campanhas heroicas da Pavorosa e muito menos os vários generais e almirantes americanos que ameaçam demitir-se se o Presidente decidir não acatar os conselhos do Departamento de Psiquiatria do Mount Sinai.

Quando esta crise do Irão finalmente passar à história, porque passará, depois das bombas ou frases bombásticas, outras conversas e sustos virão para delícia e entretenimento dos sindicatos obreiros, das manuelas do aborto libertador e das josefinas Verdes da Natureza que trabalham para o príncipe Carlos da Albiónia, que por coincidência também é amante de focas e baleias e gosta de falar com as plantas. Aliás, já andam por aí uns assobios inquietantes sobre misseis e radares europeus que muito irritam os russos pela ameaça que representam para o seu vastíssimo território. E que bom sinal que isso é, esse reavivar das zaragatas entre os imperialismos manipulados, a doce garantia de que não iremos ter escassez de caganeira jornalistica para mais um ou dois anos até os 8 Grandes se encontrarem novamente num palácio qualquer e limarem todas as diferenças entre si mais as dificuldades com a concessão de dois quilos de mandioca e um par de sandálias a cada habitante descalço e esfomeado do continente Africano.

Como um bomerangue, os temas queridos e as querelas favoritas estão a regressar à velha Europa – a Mãe natural de filósofos incompreensíveis e santos maquiavélicos, parideira de holocaustos falsos e verdadeiros, teatro triste e orgulhoso das enormes guerras de sempre, ùltimamente muito agitada, de alto a baixo das suas camadas sociais e duma ponta à outra das suas cambadas políticas, pela invasão das burkas em escolas e lugares públicos. Foi nela que se inventou a politicamente correcta e utilíssima Pavorosa e é nela que a Intriga tem o seu quartel-general. O resto é conversa enganosa ou enganada muito bem baratinada pela baronada iluminada..

“O Mundo é feito de histórias, não de átomos”. Foi a Muriel que o disse. Mas não se se ficou por aí a poeta comunista, feminista e activista americana, amante de homens e mulheres, forma muito prática de amar a Humanidade sem dar nas vistas. Também achava que não basta sermos “contra a guerra”, é preciso sermos também contra as suas fontes. Tudo muito bonito de se dizer, mas infelizmente, todos estes anos depois, ainda se anda a investigar isso pelos cantos escuros das bibliotecas, às cabeçadas, empurrados pelas opiniões históricas dos editores encobridores. E outra coisa: como é que ela, já nessa altura, sabia que o átomo não passa de mero produto das nossas imaginações?

TT

Das fragilidades da nossa vida

Não sou pessoa para andar por aí com uma mala cheia de angústias. Já paguei a última prestação da minha casa no mês de Setembro de 2005. Não tenho, portanto, um problema de habitação. Em termos financeiros tenho feito os possíveis para equilibrar as contas sem grandes angústias e com o recurso sistemático à conta ordenado. Em termos de saúde vou aguentando o barco tentando queimar os açúcares em excesso com longas caminhadas pelas ruas de Lisboa. Os meus filhos não me dão problemas de nenhuma espécie. Todos empurram a sua própria vida com responsabilidade e com equilíbrio: a mais velha é arquitecta e trabalha em Londres, o do meio está a fazer um mestrado em história dos descobrimentos e a mais nova frequenta o quarto ano do curso de arquitecta paisagista.

Um destes dias a minha casa sofreu uma inundação. Durante muitos anos pensei que as inundações eram só nas caves dos prédios. Esta semana descobri que se pode morar num quarto andar e sentir um calafrio terrível ao ver que os livros, as revistas e as fotografias de uma vida aparecem a boiar no meio da água. Os meus chinelos de quarto ficaram ensopados. A explicação é simples: foram os pombos que sujaram o algeroz e a água chegava das telhas e, como não tinha saída para baixo, entrava pela parede e só parava na cozinha e no meu escritório.

Tudo isto tem a ver com um sinal dos tempos: há muitas velhas solitárias nos prédios vizinhos que todos os dias atiram pão aos pombos. Estranha maneira de viver a solidão, ligando mais aos animais do que às pessoas. Os animais já têm o hábito de estar por ali à espera de quem lhes atire o pão. É por isso que sujaram tanto o algeroz do meu prédio e eu acabei por sofrer uma inesperada inundação num quarto andar.

José do Carmo Francisco

Proibido andar sobre a relva

Fiquei chocado, surpreendido e mesmo revoltado quando, há uns tempos, ouvi na televisão a notícia da morte do escritor Ferro Rodrigues anunciada como sendo a de «um colaborador dos Parodiantes de Lisboa». Para mim não está em causa que o escritor Ferro Rodrigues, tal como por exemplo o escritor Santos Fernando, fosse amigo dos Parodiantes de Lisboa e tivesse colaborado com os seus programas «Graça com todos» e «Parada da paródia». E nem me interessa se esta notícia foi feita por ignorância ou por má-fé. Para mim, Ferro Rodrigues é o autor de três livros: Noite sem estrelas, Lusitânia Expresso e Proibido andar sobre a relva. E nem está em causa se ele era o pai do outro Ferro Rodrigues que exerceu funções governativas e foi secretário-geral de um partido. Isso não está em causa. Para mim, o problema está em que a notícia refere a sua ligação aos Parodiantes de Lisboa e circunscreve as suas actividades a essa colaboração. Isso é que está mal, isso é que é incorrecto, pois quem elaborou a notícia não pode ser refém de preconceitos.

Parece-me que a notícia deveria ter sido assim: «Faleceu Ferro Rodrigues, autor dos livros Proibido andar sobre a relva, Lusitânia Expresso e Noite sem estrelas. Foi amigo do escritor Santos Fernando, com quem manteve parcerias no teatro de revista do Parque Mayer, e colaborou nos programas dos Parodiantes de Lisboa.»

Para dar uma ideia, vou transcrever duas linhas do livro Proibido andar sobre a relva. Numa casa de fados alguém dirige-se a uma fadista e pergunta: «Rapariga queres uma letra para um fado novo?» E esclarece: «É um fado humorístico. O gozo dum fidalgo sem vintém que se vendeu à filha dum lavrador alentejano a troco duns cornos de cortiça.»

É humor, um humor povoado pela tristeza, porque Ferro Rodrigues sabia que «o humor é uma lágrima entre parêntesis».

José do Carmo Francisco

De que falamos quando falamos de cultura

Bastou um rápido olhar às páginas de um jornal de Lisboa para me aperceber do estranho uso da palavra «cultura» e do adjectivo «culto» em diversos anúncios do mais diverso teor.

Na região de Setúbal procuram um casal de caseiros para uma quinta, mas exigem bons conhecimentos de língua inglesa. Alguém com uma menina deficiente para cuidar exige uma pessoa culta, jovem e livre de compromissos familiares para tomar conta da dita menina. Mais à frente é um cavalheiro (são sempre cavalheiros, não sei se já repararam…) que se proclama culto e deseja conhecer uma senhora culta com idade entre 40 e 50 anos para assunto sério. Para não haver empate há uma senhora (são sempre senhoras, não ficam atrás…) que se proclama também culta e procura um senhor entre 60 e 65 anos, igualmente culto e com vida estável para assunto sério.

Será tudo isto porque as pessoas se arrepiam com as respostas dos concursos televisivos onde a cultura é bem escassa e os resultados não mentem? Será porque a cultura, como a água potável, é um bem cada vez mais escasso na nossa sociedade? Todas as explicações terão a sua lógica. A relação das pessoas com a cultura é, em geral, complicada.

Há anos, recebendo eu convites para as diversas exposições da Biblioteca Nacional de Lisboa, questionei as pessoas do secretariado para não me tratarem por doutor, mas a resposta deixou-me sem resposta: para eles a lógica era outra. Sendo eu amigo do director da Biblioteca Nacional, não fazia sentido que não fosse também doutor. Os envelopes continuaram a conter esse título. De nada valeram os meus argumentos em sentido contrário. A lógica venceu a verdade.

Não sou doutor, mas sou tratado como tal. Afinal uma questão de cultura.

José do Carmo Francisco