«Aquilo que José Sócrates alega para não ir a julgamento é altamente suspeito, penso eu, o não querer ir a julgamento. Qualquer pessoa que estivesse descansada obviamente quereria ir a julgamento. [...] É por isso que ele hoje tem pretextos para, de facto, continuar a tentar impedir que a Justiça funcione. E isto é desastroso para a confiança dos cidadãos no próprio sistema de Justiça.»
Balsemão paga a Ana Gomes para ela gastar 25 minutos da SIC Noticias por semana a revelar ao povo o que lhe vai na alma. Desta última vez, estava já a chegar ao limite do tempo quando a jornalista alertou para o tema Sócrates. Era assunto que a comentadora tinha preparado e não queria que o planeta continuasse a girar sem tornar público. Se bem o pensou melhor o disse, pois o que vocalizou foi escolhido pelo editorialismo da casa como destaque na página. Sim, perto de 24 minutos a falar de tudo e mais alguma coisa, de Soares à Síria, passando pelos bombeiros, e o que foi escolhido pelo “jornalismo” como mais importante diz respeito a Sócrates.
Pois bem, vamos a isso que é curto e grosso. São duas as suas acusações: a de que a “pessoa que estivesse descansada obviamente quereria ir a julgamento” (i) e a de que Sócrates impede que “a Justiça funcione” (ii). Em seu abono, têm o mérito de serem dois chavões que estamos constantemente a ouvir na imparável campanha de influência sobre os juízes que ponham a mão na Operação Marquês. Quão maior a má-fé e/ou estupidez daqueles que participam no linchamento de Sócrates, mais provável é que repitam o que Ana Gomes repetiu.
Proclamar que pessoas “descansadas” querem ir a julgamento calhando serem acusadas de alguma coisa com essa eventual consequência, dito por uma ex-candidata a Presidente da República, tem tectónicas implicações. É, simultaneamente, uma declaração que visa deslegitimar o direito à defesa e a lógica do devido processo legal. Para Ana Gomes, as garantias de direitos fundamentais e a protecção contra arbítrios e erros do próprio sistema de Justiça devem ser anuladas tratando-se do cidadão José Sócrates. Ela pretende que este acusado deva abdicar da sua defesa e dirigir-se mudo e manso para um tribunal de excepção, onde a Constituição não terá entrada para ser tudo fácil e rápido. Qualquer laivo de contestação, qualquer vestígio de desacordo, será visto como sinal de não estar “descansado”; que o mesmo é afirmar serem, para Ana Gomes vedeta da SIC, os actos da sua defesa a prova “óbvia” da sua culpabilidade.
Partindo daqui, onde trata Sócrates como um criminoso que apenas tenta adiar o inevitável, chegar à afronta de o acusar de impedir que “a Justiça funcione” é um nanómetro. Esse impedimento estaria a nascer, então, do uso dos recursos legais, exercendo plenamente os seus direitos constitucionais. O que leva a concluir que para Ana Gomes, tratando-se deste alvo, uma Justiça a “funcionar” ao seu gosto corresponderá exactamente ao oposto: a abolição do Estado de direito.
Porque este é um processo essencialmente político, embora com indícios de crime que justificam a abertura da investigação judicial, qualquer dano infligido a Sócrates é um triunfo delirantemente festejado. Foi assim com a sua detenção, foi assim com a sua prisão, é assim com cada manchete ou comentário onde o pintem desgraçado, será assim se for a julgamento. Na fúria de o castigar e dilacerar, seres como a Ana Gomes não se inibem de expressar uma visão medieval do Direito, chafurdando em concepções análogas ao ordálio, onde a prova da inocência (a existir) vinha de “Deus”. Neste caso, o ordálio consistiria em Sócrates sujeitar-se à vontade corporativa ou politicamente motivada de procuradores e juízes sem nada fazer para se defender. Uma fantasia que deixa a senhora a babar-se de gozo. E uma concepção do mundo onde a submissão acrítica seria imposta aos cidadãos, e onde a Justiça seria um sistema totalitário.
Claro, se berbicacho parecido lhe tocar a ela, ou a alguém que lhe seja importante, Ana Gomes aparecerá em público como uma das mais fabulosas paladinas da liberdade e do Estado de direito democrático que a história da civilização já testemunhou. Mas só se lhe tocar a ela, calma. Por agora, há que justificar o que o tio Balsemão lhe mete no bolso.