Todos os artigos de Luis Rainha

Onde mora o mal

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Na luta em redor do próximo referendo, a Igreja e seus apaniguados querem à viva força ocupar o trono da virtude imaculada, remetendo todas as demais opiniões para o Inferno. E isto não promete melhorar até dia 11 de Fevereiro, antes pelo contrário. Querem ver com que linhas é que se cose esta malta? Dêem um salto ao “Blogue do Não” e arrepiem-se com um despudorado desfile de aldrabices, calúnias, falácias e omissões. Tudo coisas que nunca imaginaríamos em criaturas tão puras e virtuosas.
Comecem por ler o que um tal Vacas escreve: “para os defensores do SIM, o facto de criar uma criança sair mais caro que abortar é razão suficiente para liberalizar o aborto. É imbatível esta lógica. E arrepiante.” Arrepiante é sim alguém querer fazer passar este asco por uma ideia. Porque se não dedica a criatura a pensar antes de escrever? Ou, pelo menos, que trate de citar quem defenderia tal absurdo. Mas claro que é mais fácil atribuir ao inimigo (generalizando, claro) ideias monstruosas do que explanar argumentos próprios.
Depois, outra luminária, a assinar “Ferreira Martins”, garante-nos, com a solenidade de um la Palice involuntariamente cómico, que “A vida começa no princípio”, esquecendo-se de nos explicar se o espermatozóide e o óvulo estão falecidos ou coisa que o valha, no momento da concepção. Que eu saiba, “vida” já existe bem antes de o João e a Maria decidirem coisar.
Há também espaço para as descobertas fulminantes, como esta de Francisco Mendes da Silva: “o Ministro Correia de Campos assegurou que em nenhum caso o SNS efectuará um aborto a uma mulher que não se queira identificar”. Fantástico: quem diria que é preciso um documento de utente para usar o SNS?
A única coisa que me consola nesta parada de monstros, de mentiras flagrantes e de má-educação é que ninguém parece inclinado a dar-lhes muita atenção. Talvez seja mesmo uma boa forma de lidar com o mal (sim, com minúscula, que isto não passa de gente chunga e pequenina).

Chuva de verão

Tivesse eu ficado na Sibéria, onde há ventos, e nuvens, e bosques de vidoeiros. E bolcheviques a sério!
O servidor sentiu-me lá por fora e interditou-me a página. As gaivotas entupiram-me de filhos as caleiras, entrou-me em casa uma chuva de verão. O alarme ligado parasitou a bateria, o carro nem se mexe. A paragem do 30 ficou desactivada, por causa dumas obras. Um amigo chegado tomou-se de maleitas, resolveu ir-se embora. Pontual só o talão registado, do imposto de Setembro.
E ainda não fui ver da metafísica, a alma da família, o estado da política. E as pechinchas literárias, nalgum escaparate.
Sai um homem à procura do exotismo do mundo, e ele a dormir-lhe em casa.

Jorge Carvalheira

Retardantes

De modo que resolveram organizar um simpósio. Não digo internacional, seria exagerado. Uma coisa assim transfronteiriça, para ser mais rigoroso. Custeada a fundos de coesão.
Vieram alcaldes espanhóis, bombeiros dum lado e doutro, delegados da protecção civil, e autarcas raianos ou nem tanto. Estava um representante do centro distrital de operações de socorro e alguns futricas avulsos. A mim, por lhes constar que entendo de palavras, que é uma coisa que não vem nos catálogos, encarregaram-me de resumir as actas.
Alugaram a sala de conferências do hotel Continental, e iniciaram a sessão com um atraso maçador.

– Frequência e dimensão dos fogos florestais na paisagem moderna
– Causas e consequências
– Papel fundamental dos retardadores de fogo no combate à catástrofe

Antes da ordem do dia, o moderador introduz um ponto prévio. Quer saber dos ilustres presentes quem não é membro do corpo social de entidade devotada ao mercado de retardantes do fogo. E fosse ele o imprevisto da pergunta, o intrincado da formulação, ou distração momentânea, o caso é que ninguém se pronunciou. E entrou-se finalmente na agenda dos trabalhos.
Durante o dia inteiro discutiram argumentos, cruzaram fórmulas químicas, compararam resultados. E lamentaram todos não poder fazer milagres.
Eu deixei-os falar e fui tirando notas. E antes de encerrarem os trabalhos já tinha pronta a acta. Eram todos, menos um, industriais do ramo.
Foi ali um pandemónio. Porque afinal eu não passo de iletrado.

Jorge Carvalheira

Fotógrafo

Já o conhecíamos, ao João Camilo, como magnífico poeta. Veja-se A Ambição Sublime (Fenda, 2001). Menos conhecido, mas a merecer mais, é o ficcionista. Veja-se O Grande Frémito da Paixão (Fenda, 2002) ou a edição refundida de um livro de 1975, Retrato Breve de J.B. (Fenda, 2006), comentado por António Guerreiro no último Expresso.

Agora descobrimo-lo fotógrafo. Coimbra tem destas sortes.

O Médio Oriente redesenhado

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O semanário holandês Vrij Nederland (Holanda Livre), órgão da resistência durante a segunda guerra mundial, hoje leitura habitual do intelectual de esquerda, publica dois mapas, concebidos, segundo se informa, pelo exército norte-americano e aparecidos inicialmente no Armed Forces Journal.

Mostra o Médio Oriente na actualidade e, em seguida, como o desejam, ou sonham, no futuro. O clou da coisa: as fronteiras étnicas. Resultado: um Curdistão, uma Jordânia maior, menores Irak, Paquistão e Turquia, e um Israel dentro dos limites de 1967.

Pequeno glossário: groot grande, vrij livre, heilig santo. A oeste da Arábia Saudita, surgiria um Heilige Islamitische Staat, um Santo Estado Islâmico. O Irak seria dividido num Irak Sunita e num Shiitistão Livre. Design your own world.

Actualização: leia-se um comentário abaixo, de Hugo Oliveira, para suplementar informação.

A boa acção do dia

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Ela veio sentar-se à minha frente, no eléctrico, em assento duplo, à janela. Era um daqueles eléctricos articulados, cinco módulos, longuíssimos, como há agora em Amsterdão. Cruzou os braços e olhou para fora. Não estava nem triste nem contente, devia ser o vulgar dela. Só nos olhávamos de relance, como bons desconhecidos. Não era nem bonita nem feia, só tinha um rosto marcado. Agruras? Sonhos fugidos? Andaria pelos quarenta.

Era o início daquela carreira, em frente da estação central, e entrava mais gente. Foi assim que outra mulher se sentou ao lado dela. Também uns quarenta feitos, nem bonita nem feia, marcada da vida, há mais disso. Quando calhava olharmo-nos, tinha um mortiço brilho, mas tinha algum.

Foi quando reparei em como as duas eram parecidas. O mesmo olhar, as mesmas fanadas cintilações. E os traços repetiam-se, pela fronte, pela boca, pelas faces. Pensei: são irmãs, encontram-se sempre neste eléctrico, nem precisam de falar-se. Só que os minutos passavam e elas ignoravam-se muito bem uma à outra.

O carro arrancou. A viagem não era longa. Eu trabalho no exacto coração da cidade, ou sou eu que o coloco lá. Mas chegou e sobrou para uma preocupação. A cada metro avançado, mais me convencia de que as duas mulheres eram aparentadas, decerto primas, mas quem sabe se irmãs, e não se conheciam. Era isso: tinham crescido juntas, mas um drama qualquer tinha-as separado, para nunca mais se encontrarem. Até àquele momento. Mas não o sabiam, as tristes. Sabê-lo, só eu.

Deveria, pois, dizer-lho? Começar por perguntar: são família? Não seria grave se o não fossem, riríamos do fantasista, e o episódio morria ali. Mas bem podia eu ter acertado, e elas encontrarem-se então, ao fim de dezenas de anos de buscas. Mana. Mana querida. Quanto tempo. Sim, quanto tempo esperei. E tudo o mais deixaria de existir: o mundo lá fora, o eléctrico, eu.

Não disse nada, nem então nem depois. Quando saí, já na segunda paragem, eu só me repetia: não disseste. E dizia-mo como um alívio. Compreendam-me bem. Tudo o que eu fosse causar, de tudo isso ficava responsável. O reencontro, as alegrias, um resto de existência sem sobressalto. Mas também, recordava-mo, todo o desestabilizar de duas vidas, os conflitos que haviam dormido, os infindáveis ajustes de contas.

Elas lá terão continuado, desconhecidas, mas livres de pesadelos. E eu não mexi no mundo. Foi, quero acreditar, uma boa acção para o dia.

Famas largas

Depois disso o viajante recolheu à pousada e foi ler os seus roteiros. Logo soube estar em terra de famas muito largas, nem todas neutras, como esta do padre Costa. Parece hoje uma lenda de almanaque, e está na torre do tombo. Mas as terras antigas são assim, guardam histórias que nos não cabem na cabeça.
O padre Costa tinha sessenta e dois anos e era prior desta terra em 1487, quando se viu degredado das ordens sacramentais. E em vistas de ser arrastado nos rabos dos cavalos, esquartejado o corpo e postos os seus quartos em diferentes distritos, cumprindo-se a sentença que da pena do juiz lhe veio cair em cima. Dando hoje de barato a barbárie dos tempos, tão diversa da brandura com que se vêem tratados diferentes malfeitores, é de crer que houvesse no caso maroscas de relevo. Fiquemo-nos nós pelos quesitos provados, que o caso espanta, se não arrepiar.
O padre Costa dormiu com vinte e nove afilhadas, e fez nelas noventa e sete fêmeas e trinta e sete varões. Em cinco irmãs engendrou dezoito meninas. De nove comadres teve dezoito raparigas e trinta e oito rapazes. Sete amas conceberam dele, e deram-lhe cinco filhas e vinte e nove filhos. Duas escravas, que também alcançaram, pariram sete fêmeas e machos vinte e um. Falando biblicamente conheceu Ana da Cunha, uma tia de quem teve três meninas. E nem a própria mãe se viu desobrigada, que dele acabou a conceber dois varões.
Ser pai dos próprios irmãos era exagero que nenhum cânone tornava obrigatório. Do virtuoso preceito constava apenas ser pai na generosidade, e irmão no sofrimento. Porém em separado. Mas o padre Costa não entendia assim. E o viajante, metendo o nariz onde não é chamado, acha cruenta a sentença mas acaba a concordar com o tribunal. Muito melhor decidiu el-rei João II, que tinha um reino inteiro a governar e poder para o fazer. Perdoou a morte ao padre Costa e mandou-o libertar, por tanto se esforçar a povoar a região das altas beiras, tão ermadas ao tempo como agora voltam a estar.
É caso para dizer que um forte rei fortalece a fraca gente. E não faltarão cobiças por aí, de tais cometimentos. Não é o caso deste viajante, que finalmente adormeceu tranquilo.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 4

A feira é todas as sextas, mas na quinta à noite começam a chegar. Carrinhas às dezenas, com vidraças cegas para se dormir lá dentro, na tarimba de cima. As mulheres têm saias compridas e acendem fogareiros, os garotos correm entre as árvores, e os homens têm bigode e fumam, conversando. Alguns montam as bancas, espetam no chão os prumos dos toldos, a adiantar serviço. Outros ficam-se a ouvir uns lamentos gitanos, com palmas e castanholas, debaixo dos negrilhos. Depois a noite cala-se, e ao amanhecer o campo está todo mudado. As carrinhas são mil, arrumadas a esmo, e ninguém as viu chegar.
Despejaram caixotes de roupas contrafeitas, e botins de vaqueiro, e sapatos de borracha de fabrico artesanal, e camisas de algodão temos os números todos, e sutiãs de peito avantajado, e saias a cinco euros, e sapatos de pele genuína porque o nacional é bom, e meias de fibra à dúzia, e óculos que protegem dos raios violetas, e perfumes Chanel e Dune e Armani, e serviços de faiança, e cutelarias finas, e bouquets de flores que parecem verdadeiras, e ventoinhas de pé alto, e relógios de parede para pendurar lá na sala, e colares de pechisbeque dos artistas de Marrocos, e bonés de bico de pato à maneira americana, e chás para o costerol, e os problemas da prosta, e para as pernas cansadas e a má circulação, e este pau de cabinda para acabar com as tristezas, e as artroses da coluna, e este chá de quebra-pedras, e frascos de emagrecer, e ténis de boa marca, e chapéus de palha à antiga, e facas de serra alemã, e suportes de garrafas e tudo o mais que é preciso no lar, e discos do Leonel ó Maria dá-mo tu, e tapetes de gazelas, e vergas feitas à mão, e canapés de bambu, e flutes para a champanha, e gomas e caramelos, e DVD’s com dinossauros, e cassetes da Romana aperta aperta com ela, e fatos de casamento, e masseiras de madeira, e sandálias ortopédicas para quem sofre dos pés, e boinas à espanhola, e bermudas para o calor, e vestidos indianos, e buganvílias em vasos, e azeitonas andaluzas, e cintos de cartucheira, e tesouras de podar, e mochilas de viagem, e cantis de caçador, e ancinhos de jardinar, e carpetes de leões, e mobílias de salão, e motas-miniatura para maiores de 14, e canas para ir à pesca, e medidores de tensão, e narguilés de berbere, e ratoeiras de mola, e oliveiras cordovil, e panelas de três pés, e enxadas de cinco arráteis, e queijos de cabra caseira, e barbies que dão à perna, e almofadas de coração, e discos da Floribella mexe mexe que é tão bom, e meadas de algodão, e helicópteros apache, e óculos de visão nocturna, e casacos camuflados, e atafais para o jumento, e ferros de picar pedra, e melões pele de sapo que chegaram de Almeria, e molhos de couve troncha, e sacos de hipericão, e camisolas do Ronaldo, e presuntos de Lamego, e o melhor lombo para assar, e bandeiras da selecção, e toalhas de Barcelos por dez euros leva quatro, e pipas de carvalho francês, e manjedouras de ferro, e pimentos do Padrón, e tanques americanos para ir à guerra dos mouros, e cassetes do Tó Costa tu tens que me dar o pito, e figos lampos do Douro, e gaiolas de plástico que já trazem melro dentro, e bordados da Madeira que isto hoje é para rebentar…
O povo discute preços, e às vezes fala francês enquanto vai passando. Os pregões afogam-se uns nos outros e a gritaria não pára. Mas ao meio dia a energia esmorece. Há corpos transpirados que abancaram sob os toldos, mandam vir frangos assados. Eu encolho-me num banco, peço um jarro de palheto e escrevo as minhas notas. Que remédio, se estamos no mesmo barco. Ficou-nos este esqueleto sem chegar a ganhar corpo, e o comboio da Europa passou por cá sem parar. De alguma forma temos que viver.
À tarde o campo está outra vez vazio, durante uma semana. E os lixos ficam para a câmara, que se cobrou das derramas.

Jorge Carvalheira

«Uma guerra sem fim»

Hoje, no «Público», com o título ‘Uma guerra sem fim’, escreve Pedro Paixão um texto de exemplar formato. Algumas passagens:

«Quando, em 1948, a fundação do Estado de Israel é declarada, o país é de imediato reconhecido pelos EUA e a União Soviética e atacado, no dia seguinte, por quatro países árabes vizinhos. É nesse combate que a independência e existência de Israel se consolida. As armas para Israel são cedidas por Estaline.»

«Do lado de Israel os que sonham e combatem por um “Grande Israel” são os aliados de facto dos grupos terroristas do lado palestiniano. A possibilidade de uma paz defensável moral e politicamente depende da desistência dos colonatos e do reconhecimento de um Estado palestiniano ao lado do Estado de Israel. O povo palestiniano, particularmente através da primeira Intifada, mostrou não só ser digno como ser justo ver a sua soberania reconhecida.»

A ilusão literária

A obra do poeta José do Carmo Francisco (também jornalista, com actividade cívica no centro de Lisboa) foi estudada pelo crítico Ruy Ventura em «José do Carmo Francisco – uma aproximação», com a chancela da Mastigadores do Mundo. O próprio estudado mantém na «Gazeta das Caldas» uma crónica quinzenal. Duma delas extrai-se o que aqui segue.

Tudo começou com as histórias do meu avô em Santa Catarina ao lume nas noites frias de Inverno. O meu fascínio pela literatura começou, assim, pela literatura oral. O meu avô punha um púcaro com vinho ao lado do borralho e, com vinho quente e açúcar, não há frio que resista. Só comecei a interessar-me pela literatura enquanto tal no chamado Ciclo Preparatório com o livro de leituras «Mar Alto». Foi aí que descobri a poesia de Cesário Verde e os contos de José Loureiro Botas. Dito de outra maneira: os calceteiros lisboetas de Cesário e os pescadores vieirenses de José Loureiro Botas.

Ora acontece que, por mero acaso, descobri num livro de Vitorino Nemésio («Jornal do Observador») uma frase muito certeira que vem mesmo a calhar para esta ocasião. Repare-se na exactidão e na profundidade do juízo crítico: «A glória literária é uma ilusão. Pensar que se dura mais do que o comum dos mortais, só porque se deixou palmo e meio de livros da própria lavra na estante, é uma puerilidade, senão uma presunção! Enquanto durar a nossa língua! Pois sim…» Mais à frente e reflectindo já mais em concreto sobre a obra poética, Vitorino Nemésio adverte: «A mensagem poética é como a carta de prego levada pelo navio de que, logo à saída do porto, tivesse morrido o capitão. Meia hora depois morria o imediato… Poesia, de certo grau ou nível semiótico para cima, é comunicação estanque, código para meia dúzia de decifradores generosos».

Este texto de Vitorino Nemésio não o leio como um murro no estômago, mas como um alerta de quem já viveu muito tempo e já mastigou muito mundo. Aqui há tempos publiquei uma crónica com o título de ‘Eu comovido a Oeste’ na qual reflectia com alguma tristeza nostálgica e com alguma ironia à mistura, o facto de em tempos terem dito que eu não tinha nome para escritor, tal como já o tinham feito antes com o José Loureiro Botas e com o Tomás Ribeiro Colaço. Colocado num «blog», o texto da minha crónica mereceu um «post» de Nicolau Saião nestes termos: «Para me congratular e irmanar com JCF felicitando-o por este texto, abandono por um minuto o meu exílio voluntário e deixo aqui este apontamento referente a gentes que não querem que ele tenha nome de escritor (estatura tem-na ele e grande): considerável tempo atrás houve um fulano escrevedor que, posto perante a minha alta estima por ele, me disse esta coisa nefanda: ‘Não ponha esse indivíduo tão alto… ele nem é licenciado!’ O nome não o deixo agora por uma questão de piedade. A JCF e Ruy Ventura a estima e o apreço sempre renovados por parte de alguém que também não tem nome de escritor e mesmo assim anda contente na existência!».

Já agora, para quem tiver curiosidade em ler mais em pormenor, o nome do «blog» é Alicerces1. Vitorino Nemésio diz que a glória literária é uma ilusão. Eu ao menos, e pelo menos, tenho uma vantagem: nunca tive ilusões…

José do Carmo Francisco

O que falta ainda

A ler, no «Público» de hoje, o artigo de João Teixeira Lopes, sociólogo, «Um massacre é um massacre é um massacre é um massacre». Aqui vai um excerto.

«Eu que detesto os teocratas iranianos e a sua idolatria; eu que abomino o caudilhismo de Chávez e a cleptocracia angolana; eu que em nada defendo a presunçosa e secular ditadura Síria; eu que afirmo, como a esquerda a que pertenço, que não há nenhuma sociedade modelo ou “farol da humanidade” – nem o falecido “comunismo real”, nem o autoritarismo dinástico cubano, nem a horrenda monarquia norte-coreana, nem o capitalismo selvagem da China; eu que nunca defendi ou apoiei ou armei taliban e Saddam Hussein no massacre a curdos, xiitas e comunistas, como fizeram sucessivas administrações americanas e o Governo português no tempo de Cavaco primeiro-ministro com Durão Barroso à frente dos Negócios Estrangeiros; eu que denunciei, como milhões de cidadãos e cidadãs no mundo e do mundo, a guerra contra o Iraque e a intervenção no Afeganistão, e que vejo, agora, a guerra civil, o ódio disseminado, o caos flagrante, as chacinas diárias; eu que escrevo contra essa nova vanguarda de extrema-direita, a tribo neoconservadora, detentora da luz que iluminará o mundo, os novos cruzados do império americano e da ideia pura de democracia e do seu proselitismo, os acólitos da ideia de guerra de civilizações, os tementes do relativismo e da democracia avançada (a tal que, felizmente, tudo questiona, porque não há nada que não deva ser questionado, apesar do medo que isso lhes causa), os que defendem Washington como se defendessem Roma contra os bárbaros, desculpando, é claro, e omitindo, sempre que possível, os desmandos do império, como as grosseiras e constantes violações dos direitos humanos (vejam o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão – laboratórios inteiros em que, à custa da morte de centenas de milhares, tais peregrinas ideias se desfizeram em destroços – o que querem mais para além da prova, mais que científica, mais que experimental destes cenários de horror, o que falhou, que guerras são ainda precisas, digam-nos Helena Matos, digam-nos, José Pacheco Pereira, digam-nos, José Manuel Fernandes, digam-nos, João Carlos Espada, mas digam-nos de uma vez por todas, o que falta ainda?»

Falares de homem

Mas certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai dar a um logradouro sem saída. Entre duas casas de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam três homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores de sabugueiro a espreitar em dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe as escadas e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara. Isto cogita o viajante, abrindo caminhos à imaginação, enquanto desce, emocionado, sem certezas nenhumas.
– Que tem que fazer aqui?!
A pergunta vem de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta conflitos, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
– Quer comprar?!
– Que ideia! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua…
E já foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que nela está lhe pertence, menos as casas velhas.
– Você entra por aqui, sem dizer nada… sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para reconhecer os corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
– Não quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber um copo em sociedade é por aqui o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se, com o anfitrião, no vasto palanquim de cimento que este construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da ribeirinha em frente. Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há desassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las, quando os donos baixarem o preço.
– Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. A única revolução na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, se pudesse acrescentar o que por dizer ficou, o viajante estaria de acordo.

Jorge Carvalheira

Bombardear, claro!

Na sua coluna de hoje no «Público» (que poderá provavelmente, mais tarde, reler-se aqui), Rui Tavares responde a um leitor, que lhe perguntara que proporia ele, se Portugal fosse atacado a partir da Galiza:

[…] Espanha foi alvo de terrorismo durante décadas, e sabia que a ETA se escondia no País Basco francês. Nunca bombardeou Saint-Jean-de-Luz. O Reino Unido foi alvo de terrorismo durante décadas e sabia que o IRA se organizava na República da Irlanda. Nunca bombardeou Belfast, muito menos Dublin. Há menos de um mês, sete atentados simultâneos mataram mais de duzentas pessoas em Bombaim. Há fortes suspeitas de que os autores tenham vindo da Caxemira paquistanesa. Todos os ocidentais louvaram a contenção da Índia; e, no entanto, ao contrário do Irão, o Paquistão já tem armas nucleares e partilha uma fronteira terrestre com a Índia.
A lição é clara: o terrorismo é uma questão de segurança, policial, judicial, política. Pode ser atacado, com mais ou menos sucesso, por qualquer destas vias. Quando passa a ser uma questão militar, perpetua-se.

A conspiração da pedra

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Fosse eu apaniguado de teorias da conspiração, ia jurar que os arquitectos andam feitos com a indústria da pedra. A pedra tem nobreza, quem o nega, mas nisto de brasões é como em tudo. Quando é demais, engrossa a linfa nas veias.
Passe um homem pela Guarda, é um supor, vai-se a ver o D. Sancho, a ver a sé. E se tiver caído geada de manhã, o que é comum em tempo, por força acaba a patinar, até à sacristia em S. Vicente.
Ache-se alguém em Trancoso, vai ver as Portas de El-Rei. Se se esqueceu do andarilho em casa, pode contar com um tornozelo estorcegado, com uma bacia partida. Nem a Dona Isabel vinha lá de Aragão para se casar ali, estou eu em crer.
– Isso é lá nos cus de Judas, onde nem Cristo andou!
Pois vão ali à Praça dos Cavalinhos, no coração do Porto. Já verão o que é uma eira de secar milho, sem o idílio campestre das irmãs mais antigas. Ou cheguem aos Aliados, que os arquitectos mexeram ultimamente. Deixaram lá um descampado pífio, deslavado, para não dizer deprimente. Há-de ser um bom lugar para grevistas da fome. Senta-se um homem naquelas cadeiras roubadas do campismo, e acaba a morrer de inanição. Os pombos, à cautela, desertaram.
Eu vou-me ali às Caldas de Vidago, antes que seja tarde. Ouvi dizer que já rondam paisagistas. Lá se vai o último romântico, o último salgueiro. Logo ali, onde um rei se ressarcia da piolheira corrente.

Jorge Carvalheira

Foto, Avenida dos Aliados, Porto
fonte A Cidade Surpreendente
Observe-se a situação «antes» e «depois»
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Para quem não tem o Público à mão

Vemos, ouvimos e lemos
Isabel do Carmo
Médica

Quantas vezes ouvimos dizer que durante a II Guerra Mundial as populações desconheciam o que se estava a passar? Agora todos os dias “vemos, ouvimos e lemos” e até “não podemos ignorar”, mas a nossa impotência é a mesma. Como é a mesma a indiferença dos que não temem o julgamento histórico: apostam no apagamento da memória, na precariedade das imagens que nascem e morrem em fracções de segundo. Julgávamos que tínhamos visto tudo e agora temos de novo o Líbano aqui tão perto, geograficamente, culturalmente.

As imagens de destruição do Líbano trazem-nos à memória (mas a quantos?) essas dilacerantes descrições de Sebald na História Natural da Destruição onde corajosamente nos fala do não-dito: a destruição das cidades alemãs, a morte em massa dos civis, praticada pelos bombardeamentos dos aliados, neste caso os ingleses, quando a guerra já estava ganha, mas as bombas também já estavam feitas e não podiam ser desperdiçadas. Toda a Alemanha assumiu a culpa, ninguém escreveu sobre isto e, como diz Sebald, só algumas dezenas de anos depois alguns escritores falaram sobre o assunto sob a forma de parábola. Já a história de Hiroxima tomou outra amplitude e ficou claro que aqueles japoneses não tinham culpa do eixo nazi-fascista.

São sempre as crianças, as mais inocentes, cujos rostos vão ficando como um rastro desta diabolização que o ser humano assume. Ficam-nos as imagens das faces inocentes das crianças que partiam para os campos de concentração, tristes, mas sem perceberem. Ficam-nos todas as imagens do Holocausto, que não atingiu só judeus. Foram os comunistas (liquidação física da totalidade do partido), foram os socialistas, os ciganos, os oligofrénicos, os homossexuais. Mas podemos ignorar as crianças do outro lado? Das descrições de Sebald fica um flash terrível: a das mães sobreviventes dos bombardeamentos que transportavam em malas de viagem os cadáveres dos filhos mortos. Passageiras loucas e perdidas de destino nenhum.

E agora, a destruição do Líbano fica-nos a imagem dos montes de cadáveres de crianças embrulhadas em sacos de lixo à porta do hospital de Tiro, à espera que as famílias as identificassem. Mas quais famílias? As mortas? Dos internados do hospital, das crianças mortas, dizia o médico que ninguém dessa gente era do Hezbollah. Também o médico é suspeito? Necessariamente não o eram as crianças.

Há quem tenha a coragem de escrever por aí que Israel só está a bombardear os territórios onde já esteve – o Sul do Líbano e Gaza. É deles? Ora Israel não esteve em sítio nenhum ou esteve vagamente há 2000 anos. Por isso “esta guerra começou em 1948 e tem tido vários nomes”, como diz o dirigente israelita. E não se sabe quando vai acabar. Como todas as guerras de ocupação, colonização e racismo vai acabar mal. É certo que há uma situação de facto que tem que ser considerada. É certo que nada justifica acções terroristas, como são praticadas pelo Hamas e o Hezbollah, com morte de civis. É certo que o Irão tem um dirigente louco. Mas tudo isto é uma espiral. É bom não esquecer como nasceu o Hamas. É que as conspirações são como as bruxas, há a “teoria”, mas lá que as há, há… Quem percebe disto é o John le Carré. O que acaba por suceder é que esta espiral conduz a que o fundamentalismo obscurantista (igual aos cristianismos de há pouco tempo) seja a bandeira dos injustiçados.

Como sempre é dramático que os movimentos anti-sionistas de Israel não tenham visibilidade, como se o país fosse uniforme. As várias organizações israelitas de mulheres pela paz – Bat Shalom, Mulheres de Negro, Mulheres e Mães pela Paz, Novo Perfil, Liga internacional das mulheres pela paz, Tandi, (movimento democrático de mulheres pela paz fundado em 1951), NELED (mulheres pela coexistência), Machsom Watch (obervatório das barragens). Algumas dizem: “Os generais não sabem tratar de paz, deixem as mulheres tratar disso.” Quase todos estes movimentos estão em ligação com as mulheres palestinianas. E há os corajosos movimentos de refractários dentro do Exército (Yesh Gvoul! “Há um limite”), que levou a julgamentos e prisões.

Estes são os movimentos, as pessoas, invisíveis, porque não têm voz internacional. São israelitas e não são sionistas. A estes não os vemos, porque não nos deixam ver. No entanto, é suficiente aquilo que “vemos, ouvimos e lemos”. A comunicação já não é a da II Guerra Mundial. As crianças refugiadas com a casa às costas têm o mesmo sorriso triste, mas perguntam ao repórter português pelo Figo e pelo Ricardo. Então é porque hoje “vemos, ouvimos e lemos” mais depressa. E como diria a Sophia, “não podemos ignorar”. Nem arranjar desculpas.