A feira é todas as sextas, mas na quinta à noite começam a chegar. Carrinhas às dezenas, com vidraças cegas para se dormir lá dentro, na tarimba de cima. As mulheres têm saias compridas e acendem fogareiros, os garotos correm entre as árvores, e os homens têm bigode e fumam, conversando. Alguns montam as bancas, espetam no chão os prumos dos toldos, a adiantar serviço. Outros ficam-se a ouvir uns lamentos gitanos, com palmas e castanholas, debaixo dos negrilhos. Depois a noite cala-se, e ao amanhecer o campo está todo mudado. As carrinhas são mil, arrumadas a esmo, e ninguém as viu chegar.
Despejaram caixotes de roupas contrafeitas, e botins de vaqueiro, e sapatos de borracha de fabrico artesanal, e camisas de algodão temos os números todos, e sutiãs de peito avantajado, e saias a cinco euros, e sapatos de pele genuína porque o nacional é bom, e meias de fibra à dúzia, e óculos que protegem dos raios violetas, e perfumes Chanel e Dune e Armani, e serviços de faiança, e cutelarias finas, e bouquets de flores que parecem verdadeiras, e ventoinhas de pé alto, e relógios de parede para pendurar lá na sala, e colares de pechisbeque dos artistas de Marrocos, e bonés de bico de pato à maneira americana, e chás para o costerol, e os problemas da prosta, e para as pernas cansadas e a má circulação, e este pau de cabinda para acabar com as tristezas, e as artroses da coluna, e este chá de quebra-pedras, e frascos de emagrecer, e ténis de boa marca, e chapéus de palha à antiga, e facas de serra alemã, e suportes de garrafas e tudo o mais que é preciso no lar, e discos do Leonel ó Maria dá-mo tu, e tapetes de gazelas, e vergas feitas à mão, e canapés de bambu, e flutes para a champanha, e gomas e caramelos, e DVD’s com dinossauros, e cassetes da Romana aperta aperta com ela, e fatos de casamento, e masseiras de madeira, e sandálias ortopédicas para quem sofre dos pés, e boinas à espanhola, e bermudas para o calor, e vestidos indianos, e buganvílias em vasos, e azeitonas andaluzas, e cintos de cartucheira, e tesouras de podar, e mochilas de viagem, e cantis de caçador, e ancinhos de jardinar, e carpetes de leões, e mobílias de salão, e motas-miniatura para maiores de 14, e canas para ir à pesca, e medidores de tensão, e narguilés de berbere, e ratoeiras de mola, e oliveiras cordovil, e panelas de três pés, e enxadas de cinco arráteis, e queijos de cabra caseira, e barbies que dão à perna, e almofadas de coração, e discos da Floribella mexe mexe que é tão bom, e meadas de algodão, e helicópteros apache, e óculos de visão nocturna, e casacos camuflados, e atafais para o jumento, e ferros de picar pedra, e melões pele de sapo que chegaram de Almeria, e molhos de couve troncha, e sacos de hipericão, e camisolas do Ronaldo, e presuntos de Lamego, e o melhor lombo para assar, e bandeiras da selecção, e toalhas de Barcelos por dez euros leva quatro, e pipas de carvalho francês, e manjedouras de ferro, e pimentos do Padrón, e tanques americanos para ir à guerra dos mouros, e cassetes do Tó Costa tu tens que me dar o pito, e figos lampos do Douro, e gaiolas de plástico que já trazem melro dentro, e bordados da Madeira que isto hoje é para rebentar…
O povo discute preços, e às vezes fala francês enquanto vai passando. Os pregões afogam-se uns nos outros e a gritaria não pára. Mas ao meio dia a energia esmorece. Há corpos transpirados que abancaram sob os toldos, mandam vir frangos assados. Eu encolho-me num banco, peço um jarro de palheto e escrevo as minhas notas. Que remédio, se estamos no mesmo barco. Ficou-nos este esqueleto sem chegar a ganhar corpo, e o comboio da Europa passou por cá sem parar. De alguma forma temos que viver.
À tarde o campo está outra vez vazio, durante uma semana. E os lixos ficam para a câmara, que se cobrou das derramas.
Jorge Carvalheira
Outra vez este escritor Pimba? Isto está a ficar muito foleiro!
Do alto da cidade de Évora, perto do templo romano, avistam-se as terras dispostas em seu redor: Arraiolos, Portel, Viana do Alentejo, Alcáçovas, Redondo, Azaruja…
Ontem à noite (eu não estive lá, mas sei que), quem lá estivesse à meia-noite, veria o que eu um dia vi e que considero um raro espetáculo: desde o centro da cidade e desde aqueles distantes pontos habitados da planície alentejana, fogo-de-artifício despontava no céu, desenhando jarros de flores no horizonte escuro.
É bonito. Não porque seja mais bonito do que este, ou menos bonito do que aquele, quem se fica por essas apreciações perde a completa vivência do que se vive seja em que instante for. É bonito porque, para além do que se vê, que sim, é bonito, aquele sincronismo de populações diferentes é fruto da vontade de populações diferentes em festejar um momento que os une desde as entranhas: o 25 de Abril!
Eu nunca o vivi, o primeiro 25 de Abril, não estava lá. Mas talvez não viveria de todo se não fosse esse dia. Falo a sério, pois talvez o meu pai nunca tivesse vindo do ultramar, talvez ficasse por lá, talvez não voltasse para quem voltou, talvez…
E quero festejá-lo com todas as pessoas, pois que essa festa que encontrei um dia em Évora foi a que mais me fez sentir que eu e todos os que estavam lá estavam a festejar o nosso país, aquilo que queremos fazer juntos, as razões pelas quais concordamos todos os dias (ainda que não o façamos conscientemente) que queremos estar aqui a fazer esta unidade de pessoas.
Mas, no sítio onde me encontro hoje, este festejo é ostracizado, ridicularizado, secundarizado a uma festa da flor que é feita com flores importadas da Holanda! Festa esta cheia de cor, beleza natural, mas vazia de conteúdo, oca de sentimento (excepto o muro da esperança, gosto do muro da esperança, acontece espontaneamente, surje belo). Mas aquela beleza em nada se liga ao que as pessoas que cantam canções de Abril sentem quando as cantam no 25 de Abril.
Sou Ser Humano, sou homem, sou filho, irmão, amante, pai. E sou português! E tudo isso conta, tudo isso tem valor! Pelo menos para mim tem.
Um dia, o meu pai, professor, explicava aos seus alunos do 3º cicloo conceito de orações principais e orações subordinadas, isto na gramática portuguesa. Porque subordinada pudesse ser uma palavra difícil, ele explicava como, por exemplo, no Governo Regional, os secretários regionais eram subordinados do Presidente do Governo Regional (ele, na altura, usou os nomes próprios das pessoas referidas). Simples exemplo, este, diria mesmo eficaz. Pois, por um tal exemplo, não sei porque voltas, uns dias depois uma colega e amiga dele (‘por acaso’ militante do partido no Governo) dizia-lhe, querendo dar-lhe uma achega e um conselho de amigo: amigo, “cuidado, que a PIDE ainda não acabou…” Decorria o ano de 1987…
Desta vez, não assino como costumo, não uso o meu nome própio, como demonstração da coação atroz e subreptícia que existe nesta Região (subreptícia é a palavra, cabal qualificadora, da coação e de quem a faz acontecer). Uma região que ainda por cima deve a sua “autonomia” ao 25 de Abril. Coação que provavelmente também existiria mesmo se aquele dia não tivesse acontecido como corajosamente aconteceu, pois que as pessoas que a fazem perdurar, também a procurariam e a fariam acontecer dentro da União Nacional.
Gosto muito de deambular pelas feiras, assumo completamente aquela fraqueza que é o observar os outros enquanto “enfeiram do bom e do barato”. Não critico, só gosto de ver, acho que se aprende muito.
Devia haver um mestrado em Marketing de Rua, tipo Shopspotting ou algo assim. Não há anúncio que bata o “ó menina leve lá que foi roubado hoje do Corte Inglês” ou “é a camisa da moda, o Engº Socras tem uma igual”.
De facto as feiras são sempre uma fonte de inspiração para vários campos. Não é por acaso que os políticos não perdem uma, mas acabam por sair de lá pouco inspirados, infelizmente. Mas para outros campos pode ser um centro de análise importante. Neste caso, houve arte e engenho. Gostei do conto. Continue.
Gsotei dos comentários do Aspirina B à minudência que se passou ontem nos aeroportos de todo o mundo.
Ficaram amuados??
O curioso é que a marosca foi deslindada precisamente na véspera.Uff!
as feiras são mesmo assim: um viveiro de gentes… e no interior têm uma função de convívio social também. é nessas barraquinhas c
de comes ebebes que se encontram os amigos das terras vizinhas.
Ó Júlio, Alá é mesmo grande, porra!
Você desta vez conseguiu vir aqui sem deixar pontapés capitais na gramática!
Júlio:
Com todo o respeito, eu podia muito bem deixá-lo a falar sozinho. É o que faço ao cão, sempre que ele se põe com liberdades.
Mas uma caixa assim aberta como esta impõe obrigações, a quem entra e a quem sai. Abro, por isso, para mim uma excepção, e para si uma benesse. Aproveite-a.
Se eu escrevesse para vender produtos a cavalgaduras, dançava ao sabor dos seus caprichos. Ocupava-me da parte vaga, inventava umas intrigas em ambiente mundano, era mesmo capaz de ir masturbar-me atrás duma cortina, só para fazer tesão ao respeitável público, que V. tão bem exemplifica.
Mas acontece que eu não vendo produtos, nem venho aqui como quem vai à feira. Escrevo sobre aquilo a que dou importância no momento, e posso avaliar a qualidade estética do que lhe deixo, a si, na manjedoura. E quando tenho dúvidas, não é aos seus critérios que recorro.
Entendo muito bem que um certo povo, a si, lhe cause nojo, porque se lava pouco. Talvez porque você, podendo, o não ensinou a tomar banho.
Mas você não é obrigado a gostar, claro, ponha na borda do prato! Não faça é figuras tristes, a propósito e sem ele, pode alguém confundi-las com alarvice ou falta de chá.
E produzir os textos que você aqui encontra, não é como ir passar uma noite às meninas. Veja se percebe ao menos isso.
O menino foi à feira da Ladra? Eu também lá costumava ir, na minha juventude, tomar um café com o gajo que me tinha roubado o telemóvel na véspera.
olha, poesia no seu melhor…
(tudo à batatada claro mas isso a gente já sabe do Asterix, faltam-nos os romanos…)
ora eu tinha fikado baralhado com umas deklarações do presidente do Irão, sobre o Delenda Israel, mas já me disseram que não era bem assim, e depois é o que se viu lá para os lados dos Cedrus…
E a minha barba é parecida com a dele.
Os meus romanos são os “arbustos” das américas, que gostam de assinar sentenças de morte, à falta de melhor
Senhor Jorge Carvalheira
A sua linguagem faz-me lembrar a do anúncio skipp. Se há cantores Pimbas, também há escritores pimbas. E o senhor é um deles.
Julinho,
O querido é de grandes, profundas convicções. Mas acontece esta coisa inaudita: elas aparecem em frases singelas, decerto merecedoras de melhor entendimento nosso. Ah, porque é que não nascemos mais inteligentes!? E você mais compreeensivo.
Júlio:
Se V. fosse criatura de levar a sério, eu chamava-lhe uma besta.
Assim vou poupar o meu tempo.
Eu sou uma senhora e não gosto de me meter nestas coisas de gentinha, mas enfim, cada um é para o que nasce e uma mulher como eu tem obrigações. Tenho muita pena do Jorge (nome de pobre)que escreve estas histórias de cordel no género “Simplesmente Maria”. Tem uma linguagem do Seixal, ainda parece que vai com a mãe vender fruta. Ó rico, faça uma plástica, compre roupinhas de marca, mas deixe essa linguagem de esquerda carroceira que é tão pobrezinha. E o pior querido, não é ser pobre, é ser pobre e parecê-lo…
A intervenção da estimável Lili veio desfazer qualquer dúvida minha. Tal como a «Lili», também o «Júlio» é riapa. Miserável, este trapaceiro! Mas o Luís tinha razão. Again.
Riapa ? O que é isso? O nome de algum remédio que vocês tomam para a caganeira? E a Lili, a Caneças? Está lindo este Blog, cheio de bimbos!
Sempre gosto de vir por aqui e ler textos seus. Não tenho por hábito criticar. Observo e sempre que há lugar, aprendo.
Tenho lido escritos seus de qualidade muito superior, como um texto postado recentement: “Falares de Homem”.
Perdoe-me a obervação, mas parece-me que os ambientes de feira (não sabemos se este é aquele que melhor conhece, quem sabe desde que nasceu…)lhe sejam os mais benéficos.
E dar resposta ao Júlio!… Bem, não acha perca de tempo?! Bem, tambem é verdade que uma vez por outra devemos “descerregar a bílis…”
Arevo-me a fazer aqui a descrição duma feira da minha infância, que pese embora os anos que passaram ainda a recordo como se ontem tivesse tido lugar.
Era diferente daquela que descreve, Carvalheira.
Era uma feira em que se negociava de tudo. Vendia-se e comprava-se gado: porcos; vacas e cavalos. A carne destes tambem era vendida em pequenos cubículos pomposamente chamados de talhos. Era a mais barata. Às 6 da manhã já se fazia fila para a comprar. Era a carne dos pobres, exceptuando as miudezas de vaca: bofes, fígado, goela, etc., que hoje abundam nos pratos dos cães, outrora, nesses tempos, faziam com eles guisados os mais pobres. Mesmo ao lado vendiam-se socas com solas de pneu, para que a rudeza dos caminhos não desgastasse rapidamente o “calçado”. Mais adiante umas roupas cuja origem se desconhecia por completo.
Umas alfaces, couve portuguesa e galega, repolho e espigos; o alho francês era à parte (legume de gente rica)salsa e cidreira aos molhos.
E para os fedelhos mais afortunados de quando em vez lá aparecia o vendedor de algodão doce branco, que as cores só muito mais tarde vieram a colori-lo.
Às 3 da tarde pouco restava a não ser umas folhas amarelecidas e excrementos de animais que logo de seguida os lavradores de perto apanhavam para ajudar ao adubo do campo.
Muito mais se poderia dizer, mas o tempo passou e a feira já é igual a todas as outras.
Era a feira da Triana
Aragem:
Retribuo, em dobro, a gentileza.
Os textos, bem vê, cada um no seu lugar.
Este da feira é um relatório dorido. Duma certa vida que resiste, mesmo se condenada.
Já os comentários… tantas vezes se disfarçam de gente assombrações… que havemos de fazer?