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Primícias 3

Lá fora batem rijos os aços do comboio furando a noite, alguém lhe chamou idêntica, será verdade. Do que não há que duvidar, se ela própria o afirma, é chamar-se Geneviève esta mulher, e regressar a casa depois duma semana inteira de lições numa escola de sociologia, malquista ciência esta em Portugal, se todas, há séculos, o não são. E de novo lhe aflora ao rosto uma surpresa, agora sim, real e verdadeira, quando sabe serem portugueses estes viajantes de gesto polido, de semblante cortês um pouco melancólico, que falam bem francês e se dirigem a Paris. Dos portugueses, que há anos povoaram a França, tudo quanto lhe consta é serem eles muito sofridos nos trabalhos rudes e elas porteiras humílimas, quem é que falou um dia em rainhas destronadas, uns e outros vivendo em bidonvilles, e a salvarem às vezes da lixeira, a horas da madrugada, bonecos manetas e ursinhos de olhos vazados, com que os filhos hão-de brincar. De Portugal tem sabido alguma coisa pela imprensa, no último ano falou-se bastante duma revolução de flores com militares à mistura, ou duma estranha revolução de militares misturados com as flores. Ao dizer isto a mulher riu-se do jogo de palavras, e logo tropeçou no ar subitamente sério de Gabriel, que não apreciou o trocadilho, para socióloga andará a senhora pouco atenta às realidades do mundo, chama-se a isso na minha terra espeto de pau em casa de ferreiro. Geneviève acusou o toque, faiscou-lhe no olhar uma vibração imperceptível, um virar subtil de agulha, e foi então que deixou cair o pedido cortês, fala-me da tua revolução.

Gabriel apanhou do assento a revista que pusera de lado, alisou-lhe a palma lenta da mão sobre o joelho, ganhou alguns segundos na busca deste fio de novelo emaranhado, e começou a responder.

A minha revolução é uma história marcada há muitos anos num calendário antigo, minha cara senhora, a minha geração tinha-a inscrita no destino desde há séculos, como se os portugueses vivessem ainda no tempo das tragédias gregas, suspensos da mão de fados caprichosos. Nessa história muitos lances dariam para rir se tão trágicos não fossem, alguns de nós se habituaram há muito a olhá-los como farsa e viram costas, por lhes parecer este o modo mais fácil de os esquecer, quem vai agora averiguar razões. Ademais não se deslinda em meia dúzia de palavras, sem esforço e muito tempo, ainda bem que Paris fica longe, a uma noite inteira de caminho.

E, se por algum lado havemos de começar, dir-lhe-ei que existiu em Portugal, um dia, um rei magnânimo e beato, ninguém lhe veio a chamar rei-sol porque um francês qualquer se antecipou, o qual se divertia a assistir aos autos-de-fé dos padres na ribeira do Tejo, e gastou o melhor da vida a povoar o reino de bastardos, que semeou a esmo nos abrasados ventres da freiria incontável de Lisboa. Um dia chamou para lhe estudar o reino o senhor Merveilleux, naturalista suíço, reputado de fama e promissor de nome, pois quem não tem ciência paga por ela, toda a vida assim foi, mormente em se tratando do rei de Portugal que não tem precisão de olhar a despesas, assim se mantenham firmes os filões de oiro do sertão do Brasil.

Comprovam os achados botânicos da utilíssima genciana, curadora de pestes e abundosa nos altos lugares da província da Beira, que o suíço meteu pés aos caminhos e fez o que dele se esperava. Mas não ficou por aí. Homem atento e oportuno, vindo a saber das descargas de salitre que os mercadores traziam da Holanda, concebeu o plano de explorar os abundantes filões de Alcabideche. E apresentou os seus empenhos numa noite, ao serão com o velho marquês de Fronteira, vedor da fazenda, presidente do desembargo do paço, membro do conselho de estado e mordomo-mor da rainha austríaca. Havia de parecer adquirido o desembargo da empresa, melhor porta não havia onde bater. Porém, em vez do bom despacho, o que o homem ouviu foi apurada lição de ciência política, e a prova cabal, se falta cá fizesse, de como em Portugal é subtil e engenhosa a arte de governar.

Diz o marquês que numerosos estrangeiros vêm apoquentando el-rei com suas memórias e propostas, visando enriquecer-se a si próprios e ao reino através da agricultura ou das manufacturas, ignorantes de que tais iniciativas e empreendimentos não convêm ao bem do estado, e menos ainda ao sossego e à ventura dos seus habitantes. Pois já que Deus fez do reino o dono de todo o ouro que se tira do Brasil, quase sem ter de cavar, e pois que esse ouro está distante, a mais de duzentas léguas para o interior, o único perigo à vista é a cobiça dos países estrangeiros, que, assaltando os nossos portos, poderiam vir a privar-nos do desfrute de tais tesouros. Nada disso acontecerá, porém, enquanto os ingleses dispuserem do país como vazadouro dos produtos das suas terras e indústrias, caso em que verterão o seu sangue até à derradeira gota, para nos defenderem.

Não têm outra escolha os ingleses, senão trabalhar e proteger-nos, e lá terão a paga assegurada, chega a dizer-se que o ouro do Brasil não alcança a pôr pé em terra portuguesa, que sai das nossas naus para entrar nos porões das armadas inglesas. E assim será, porém do mal o menos, antigamente eram as fragatas holandesas o baú do ouro das Índias, sem mais contrapartida. Pois nós damos aos ingleses maior lucro do que todas as outras nações juntas, sendo eles os únicos a embarcar os nossos vinhos do Douro e as nossas tenras vitelas do Barroso, para uns e outras nos falta a nós aguçado paladar.

Havemos, isso sim, de temer-nos de franceses, prosseguiu o marquês, de quem gostamos mais que dos ingleses, já que somos da mesma religião, e até lhes damos a casar as nossas filhas. Mas a protecção duns nos é mais útil do que a amizade doutros. Os franceses podem fazer-nos guerra sem ferir o seu comércio, e já o teriam feito se não se temessem, no que seriam prontamente ajudados por outras potências marítimas, zelosas das parcas moedas de ouro que os ingleses lhes deixam. E se estes não levam tudo é por mera artimanha política, já que poderiam fazê-lo, dispondo, como dispõem, abundantemente, de toda a qualidade de mercadorias que nos convêm.

Iguais são os motivos por que não desejamos dar-nos à exploração das minas de cobre do Algarve, e das minas de estanho e prata das partes setentrionais do reino, pois assim iríamos arruinar um dos ramos do comércio inglês. Vós sois suíço, vindes dum país que não tem interesse em contender connosco. Por isso vos falo com o coração nas mãos, e vos revelo o político segredo em que assenta a nossa ventura. Só com Roma não podemos manter altercações, já que Roma, embora precisada de nós, nem por isso deixaria de nos prejudicar. Demasiada bulha vem fazendo el-rei, sem falarmos agora do dispêndio de fazendas, só para que os núncios de Sua Santidade em Portugal tenham direito ao chapéu cardinalício. Para açular a inveja dos nossos vizinhos, bastam as bênçãos que Deus nos distribui no Brasil. Havemos, pois, de viver em paz com toda a cristandade, e governar-nos por tal forma que, se uma parte das nações conspirar em perder-nos, a outra se desunhará para nos defender. Deus nos valerá!

Mas não valeu.

A ninfa

Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo. O lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primtivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer, era a aldeia inteira que a exigia.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia do mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as gaifonas atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio e seguia para Trevões havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. Ela deixou-se ficar, rendida a semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de gentilezas, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A ninfa ainda cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, encolheu-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha, depois apagou a luz, ergueu num braçado a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se num silêncio. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia, de lágrimas, de sangue, de suores.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa, era ainda madrugada, foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e era caso resolvido.
Quando o outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do Criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, encostado no alpendre. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não queria acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e começou a ladear, a ver se era bem verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, e havia gente que parava nas hortas, a olhar silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem correr estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo de um deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.

O sultão

A donzela, digo eu, terá os seus quinze anos. Vai sentada do lado da janela, enquanto masca a chicla ruidosa, num estalar de beiços. Sujeita-lhe a gaforina um par de óculos espelhados, de tartaruga pintada.

Ele vai sentado ao lado, um pé no banco da frente. Vai tão indiferente ao mundo, tão alheio à companhia, faz-me lembrar um sultão.

Os olhares da donzela vão na rua, mas volta e meia cai numa agitação. Debruça-se para ele, varre-lhe a face com a linguita rosada, arrasta-lhe nos lábios um beicinho. Passa-lhe o dedo na cana do nariz, morde-lhe o lóbulo frio, dá-lhe dentadinhas a fingir. E afunda-lhe a língua no fosso auricular que lhe está mais à mão.

Ele queda-se impassível, desdenhoso, e eu fico extasiado a seguir-lhes os maneios. Se não sei muito bem em que mundo me encontro, menos ainda sei de que mundo eles vêm. Ela faz-me lembrar escravas dos haréns. E ele um califa de costumes modernos, que veio à rua arejar a favorita.

À saída não fico mais tranquilo. Ele passou adiante, imperturbável. Porém as calças dela, que são de gancho curto, deixam-lhe a descoberto os balões das cadeiras, a explodir obesidade. Ela enfeitiça-me os olhos com os mistérios do umbigo, antes de me estoirar nas fuças o balãozito da chuinga.

Segue ele à frente, ela atrás, para contentar o profeta. Eu aproveito-lhe o contentamento, e desço de novo à terra.

A minha Ota

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Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. Obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.

Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos, num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.

Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo duma ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, e no fim um abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.

Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.

A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjo da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajudas, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controle. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, gritaram que o médico viesse. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.

Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme de ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.

Lentamente foi amainando o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os serviços do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América. A gente sabe lá!

Jorge Carvalheira

Perplexidades de deus

Tinha jurado a mim mesmo que o não iria maçar com a tal opiniãozinha. Por uma questão de pudor. Mas quando larguei a obra, entrou-me na cidadela uma suspeita, por alguma porta da traição.
Deixou-me num desalento. Com a compostura da forma, com a pertinência do tema, com a estrutura bizarra, com o hibridismo do género, com o título duvidoso. Senti-me um aprendiz de feiticeiro. De modo que agarrei no manuscrito e fui meter-lho na mão.
Para meu conforto só restava uma certeza. A de que ao sétimo dia Deus não dormira a sesta, como dizem. Antes se foi à fala com o diabo, a ver se estava em ordem o correr dos rios, a fúria das ventanias. A ver se batiam certas as dunas e as marés, a tirar alguma pinga do telhado. E a perguntar que nome dar àquilo.
Jorge Carvalheira

Epifania

A frase primitiva é benesse dos deuses, há-de ser verdade, se o disse um francês. Aparece à hora mais acidental, e fica a iluminar o que obscuro andava, a ruminar saída na treva original. Umas vezes é primeira. Porém outras a última será, mas sempre definitiva e terminal.
Depois é dar as outras ao papel, que saem em torrente, antes que um vento as leve. É roçá-las nos lábios, devagar, para arredondar arestas. É impor uma cadência, sondar uma harmonia, tentear-lhes o ritmo, forçar um andamento. A língua do leitor há-de lambê-las com volúpia, e essa não é contorcionista, nem gosta de fazer saltos mortais.
Dizem que tudo parte dum bafejo dos deuses, e eu não sei como se avêm os ateus. Mas já me fui deixando de ateísmos.

Jorge Carvalheira

Paraísos perdidos

ao José Rentes de Carvalho

Nesta casa já se dançou a pavana, num tempo em que as damas da família sabiam dissimular o queixo delicado atrás de leques andaluzes, à sombra frondosa das nogueiras. Havia um piano vertical na sala das visitas. E entre a leitura dos folhetins recortados d’O Século, e a bruma evanescente de paisagens campestres a amanhecer no cavalete das aguarelas, por certo alguém, à tarde, punha a rodar na vitrola de corda uma ária do Caruso, uns acordes de zarzuela, enquanto duas donzelas ensaiavam coreografias de salão, entre javas e habaneras. Cheirava a terra a chuva de Setembro e os galos cantavam no ar de vidro de Janeiro, assim terá sido há muitos anos, antes de o mundo dar sinais de começar a morrer.
Quem primeiro morreu foi o patriarca que construiu a casa, ou a mandou fazer assim tão regular e adequada. Havia nela um tão exacto casamento entre função e forma, que por trás se lhe adivinha grande paixão e muita sabedoria. Depois foram as damas que partiram, e consigo levaram o piano, o Caruso e os anelos adocicados, para terras menos agrestes e remotas do que estes fins do mundo.

Jorge Carvalheira

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Ideias Fixas

Ainda ontem era governante, e já hoje pagaria para o não ser. Que desabou a máquina do mundo e a coisa é de arrecear. O presidente em sítio num quartel, o ministro descomposto, a secretária apavorada em casa. Há blindados a galopar nas ruas, multidões em alarido, comunicados que ninguém autorizou…
O homem deixou de entender o mundo, mas é secretário de estado. E o presidente reclama, na emergência, que alguém lhe desencante um interlocutor. Algum general de peso, não caia o poder na rua, tão frágil que é, o poder.
Arrisca até à praça sublevada, forceja entre a multidão, chega à fala com um soldado que dispara um ultimato ao megafone.
– Sou secretário de estado, trago um mandato do presidente do conselho!
– Apresente-se no PC e exponha as suas razões! – diz-lhe o outro, a fazer a continência.
O homem aguentou o abanão, mas esgazeia o olhar.
– Sempre são eles quem manda?!
O soldado abre um sorriso, dá ordens ao condutor, embarca o homem num jipe.
– Leva sua excelência ao posto de comando! Põe-me os olhos no caminho, que há gente de ideias fixas!
E esticou o prazo ao ultimato.

Jorge Carvalheira

Nocturno, em si, menor

Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso há-de acontecer só amanhã, lá pelo meio-dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, e leonesa, e castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, nesse tempo havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar lá para fora e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena, e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha dinheiro. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no restaurante, bebeu uma garrafa de vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros, mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E quando o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.

Jorge Carvalheira