A bicicleta passava ainda era dia e noite. Encostava-a à parede e seguia a pé para o campo, atrás do carro de mão. Aparece-me ligado à memória do lugar, paisagens substituídas. Um rosto afogueado a emergir dos feijoeiros, galochas avistadas por entre as videiras, som de borracha sobre o saibro. Uma sombra de viúvo pairava no ar dele, largos anos antes de a mulher lhe sobreviver. A ela só conheci um nome: a mulher do Francisco, por quem perguntava sempre. Na resposta descrevia meteorologias somáticas, porque a senhora trazia todo o tempo uma dor acoitada no corpo, em geografias diferentes.
Encontrava-o e apresentava-me o pulso. Eu gostava de lhe apertar a mão cheia de calos, as unhas contornadas por uma linha preta fechada. Havia nelas o atrito da terra, colada pelo suor. Na banda filarmónica tocava triângulo. O orgulho levantava-lhe o queixo feliz ao fazer tinir os ferrinhos, já com as faces congestionadas dos copos de vinho branco.
Num dia em que lhe dei umas roupas de homem, um pouco usadas mas de boa medida, deu-me um saco de supermercado cheio de nabos e dois de batatas. Apanhava-os num bocado de terra que roubara às silvas, deitando-lhes fogo, e onde cresciam sem cuidados que não os da chuva e da compostagem de folha e mato cortado que para ali se arrastava.
As batatas eram daquelas que acodem ao nome de tubérculos. Grandes e com formas variadas de saliências múltiplas. Por dentro havia porções nodosas e escuras, tive que as retirar com a ponta da faca, e descascá-las era tarefa de minúcia. Grelaram em pouco tempo. Os nabos não respeitavam o cânone do bolbo invertido e há muito que não tinham rama de nabiça, quanto mais grelo.
A lógica da batata é a de crescer para fora. Nós, grelamos por dentro. O Francisco trazia no bolso uma das pedras que expelira dos rins. Descrevia a agonia com caretas, a saltar de um pé ao outro como se estivesse aflitinho para deitar outra fora. A pedra era então retirada do bolso das calças e mostrada sobre a palma aberta. Uma minúscula batata de compra fossilizada, irregular e porosa. Fazia menção de lhe pegarmos. Quando não lhe devolvi a mão que me estendia recolheu o braço e fechou devagar os dedos, com medo de magoá-la. Sorriu primeiro com uma metade da boca e depois com a outra, invertendo a comissura. Baixou as pálpebras e deu meio passo atrás, condoído de si por simpatia com a pedra. Companheira do sofrimento físico a que se submetera, e que tanto lhe dava a contar, a pedra era tanto causa como consequência. Não era símbolo nem medalha; era o sintoma da sua bravura.