Arquivo da Categoria: Susana

anúncio com uma lágrima de crocodilo no canto do olho

Há tempos deixei aqui este comentário:

a susana tem andado soterrada debaixo do trabalho e demais assuntos que foi deixando pendurados enquanto andou algum tempo dependurada nos blogues. lê regularmente o aspirina, que eu sei, mas evita comentar para não prolongar suspensões. vai deixar o aspirina por não fazer sentido estar não estando, mas ainda não encontrou vagar para escrever a sua lacrimosa despedida.

A verdade é que tenho andado a procrastinar. Por nenhuma razão especial além da apontada acima, associada ao desejo de deixar uma mensagem significativa do prazer que experimentei neste lugar e em tão boa companhia.
Assim, concluo agora o processo: saí.

o balido dos inocentes

A mão pousava os dedos espalmados na beira do balcão, com o braço a sustentar o peso do corpo em fuga ligeira à ortogonalidade. Está tudo sempre a cascar nos militares, mas queria ver se viesse a guerra. Quando é a guerra, aí já nos querem. Aí é que ficam a saber o horror da guerra, não é como imaginam. Olhe, digo-lhe: o meu amigo se houvesse guerra até me confiava a sua mulher para eu dormir com ela! Nas bochechas do rapaz, de uns vinte anos, vê-se um esforço de contenção que obriga a substituição do riso por um esgar de cortesia.
O homem na reserva debruça-se para a frente, olha de esguelha para mim e levanta o tom de voz. E a corrupção? Andam todos a meter dinheiro ao bolso, mas quando são os militares cai tudo em cima. Nós que somos os primeiros a castigar os nossos, nós que temos uma ética! Agora os políticos, e as estrelas, anda tudo à solta. O único que foi dentro foi o Vale e Azevedo. É sempre assim: os grandes safam-se, quem vai dentro é a lana caprina.

eu cá não dou um tostanito

No exame nacional de língua portuguesa, o meu filho não soube responder apenas à pergunta nº 7. Tive pena, porque o texto a que se refere* é belo e esperaria que ele tivesse sido capaz de uma qualquer interpretação do excerto apresentado, solicitação enunciada pela pergunta. Há tempos encontrei um apontamento dele, do ano passado, que rezava:

Eu acho que neste texto o autor brincou com a palavra «preciso», pois é preciso navegar para pescar no alto-mar, para haver peixe no mercado [ah, a actualidade desta frase…], para descobrir novas terras e para se viajar por mar para outros países. Além do mais se uma pessoa quer navegar tem que ser precisa, senão embate contra as rochas. Na minha opinião o verso «Navegar é preciso» é um verso interessante e bom e por isso concordo com ele. Já não concordo com o verso «Viver não é preciso», pois não há morte sem vida e o mundo seria uma desolação. Eu acho que este verso também tem um segundo significado, pois há pessoas que não fazem nada se não viver e outras que fazem tudo excepto viver. Por isso, apesar de não concordar com ele, acho que é um bom verso e merece ser explorado.

O puto tem indubitável paleio. Não entendo porque não terá ele sido capaz de engendrar uma resposta, por manhosa que fosse. E vós, mesmo de graça, quereis tentar?

7. No final do texto, o autor declara: «Sorrir assim, mesmo sem olhos que nos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue.»

*Encontrei aqui o texto, embora não na versão mais extensa (e também não integral) que surge no enunciado de exame.

a próxima a levar é a clix

Há coisas que me irritam. Coisas que irritam a ponto de apetecer descarregar. Quando fico assim apetece dar pontapés em objectos pela rua fora. Antigamente havia sempre umas pedras da calçada soltas ou uma garrafa, ou uma lata, até uma carica para pontapear nos passeios. Mas agora só cagalhotos de cão escapam ao zelo varredor das funcionárias que cumprimento todas as tardes aqui na rua, trabalho ingrato. Isso também irrita, que se vão os detritos pontapeáveis e fiquem os dejectos que não dá jeito nenhum tocar com a biqueira, mas ainda encontra alguma compreensão e louvor.
O que verdadeiramente me irrita é a TMN e as trocas de pontos. Nas operadoras francesas pode-se trocar os pontos todos pelo telefone xpto que se quiser e o número dos ditos comportar, e assim é que devia ser. A transacção reduz-se ao valor simbólico de um mísero eurito e assim é que deveria ser sempre. Gostava de me sentir compensada pelo esquema. Ou bem que têm uma legítima vontade de beneficiar o cliente que exagera nas chamadas e nas mensagens escritas e ainda abusa do gprs, ou andam na palhaçada. A fidelização é um logro e a minha queda de cão fiel inevitável.

o grelo e a pedra

A bicicleta passava ainda era dia e noite. Encostava-a à parede e seguia a pé para o campo, atrás do carro de mão. Aparece-me ligado à memória do lugar, paisagens substituídas. Um rosto afogueado a emergir dos feijoeiros, galochas avistadas por entre as videiras, som de borracha sobre o saibro. Uma sombra de viúvo pairava no ar dele, largos anos antes de a mulher lhe sobreviver. A ela só conheci um nome: a mulher do Francisco, por quem perguntava sempre. Na resposta descrevia meteorologias somáticas, porque a senhora trazia todo o tempo uma dor acoitada no corpo, em geografias diferentes.
Encontrava-o e apresentava-me o pulso. Eu gostava de lhe apertar a mão cheia de calos, as unhas contornadas por uma linha preta fechada. Havia nelas o atrito da terra, colada pelo suor. Na banda filarmónica tocava triângulo. O orgulho levantava-lhe o queixo feliz ao fazer tinir os ferrinhos, já com as faces congestionadas dos copos de vinho branco.
Num dia em que lhe dei umas roupas de homem, um pouco usadas mas de boa medida, deu-me um saco de supermercado cheio de nabos e dois de batatas. Apanhava-os num bocado de terra que roubara às silvas, deitando-lhes fogo, e onde cresciam sem cuidados que não os da chuva e da compostagem de folha e mato cortado que para ali se arrastava.
As batatas eram daquelas que acodem ao nome de tubérculos. Grandes e com formas variadas de saliências múltiplas. Por dentro havia porções nodosas e escuras, tive que as retirar com a ponta da faca, e descascá-las era tarefa de minúcia. Grelaram em pouco tempo. Os nabos não respeitavam o cânone do bolbo invertido e há muito que não tinham rama de nabiça, quanto mais grelo.
A lógica da batata é a de crescer para fora. Nós, grelamos por dentro. O Francisco trazia no bolso uma das pedras que expelira dos rins. Descrevia a agonia com caretas, a saltar de um pé ao outro como se estivesse aflitinho para deitar outra fora. A pedra era então retirada do bolso das calças e mostrada sobre a palma aberta. Uma minúscula batata de compra fossilizada, irregular e porosa. Fazia menção de lhe pegarmos. Quando não lhe devolvi a mão que me estendia recolheu o braço e fechou devagar os dedos, com medo de magoá-la. Sorriu primeiro com uma metade da boca e depois com a outra, invertendo a comissura. Baixou as pálpebras e deu meio passo atrás, condoído de si por simpatia com a pedra. Companheira do sofrimento físico a que se submetera, e que tanto lhe dava a contar, a pedra era tanto causa como consequência. Não era símbolo nem medalha; era o sintoma da sua bravura.

ao lado da ementa da semana, colado no portão da escola

afecto

Desde que comera o pai, após o seu suicídio, habituara-se a farejar os mortos em busca da proximidade mórbida. Não era gula que sentia, apenas a necessidade de preencher um espaço sombrio que se insinuava entre o ventre e o coração. Ora, como era frágil de estômago, vomitava quase de imediato. E embora não tivesse público, sentia-se sempre envergonhada. O velório do marido foi, assim, uma vitória pessoal. Perante uma assistência relativamente vasta, comeu primeiro o nariz, depois uma orelha, e por fim, na euforia da recém descoberta capacidade de retenção, atacou com volúpia a coxa direita do homem. O sucesso foi notório. Todos vomitaram, excepto ela.

eu sei que tu sabes quem sou

no sábado

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Não se deixem enganar pelo Carlos. É de carols que se trata. Aquelas peças de canto coral que fazem crescer as crianças inglesas no amor à música enquanto lhes afinam a voz e a sensibilidade. Razões de cultura que permitem a revelação de fenómenos como este e que tão pouco alimento têm nas nossas imediações. Vale a dedicação de uns poucos e a atenção que lhes dermos se queremos um tanto para nós. Quando os nossos filhos vêem meninos como eles a fabricar tecido musical com instrumentos tão acessíveis como a voz, o futuro tem mais mundo. Para nós o garante de umas lágrimas comovidas; eu, pelo menos, choro sempre.

Organizem excursões familiares, convençam estranhos na rua, gritem aos quatro ventos. A Aula Magna tem de encher. O coro infantil merece-o e com a escassez crescente de apoio ao ensino da música, eis uma oportunidade de mostrarmos que estamos desse lado. Entretanto fica um perfume de outras interpretações do mesmo.

na bica de água

Ontem, na feira do livro. Espero na fila da bica de água, distraída com os meus filhos e as suas reclamações. Não vejo quem está à frente. Ambos bebem e depois é a minha vez. O papel estava colado pela água, rasgado, um pouco desfeito, mas reconheci-lhe a escrita. A lápis, astucioso. Secou sobre a relva, enquanto comíamos churros.

Desejo

Vendo-o assim na beira do passeio, bengala hesitante, acorri.
Prontamente, ofereci-me para amparar o seu andar cego, fascinada pelo olho abjecto, cor de borracha rotring. Sem uma palavra, peguei na mão dele e poisei-a no decote. Senti-lhe as pernas a fraquejar. Não foi difícil conduzi-lo então ao beco, onde o abandonei, acto contínuo.
Ao longe, fiquei a admirá-lo, deitado no chão, a borracha rotring perplexa por entre os pontapés dos dois homens.

eu sei que tu sabes quem sou

fuck buddy

A amiga andava carente, faltava-lhe o sorriso bonito. E elas não descansaram até lhe arranjarem um amigo colorido. Primeiro sondaram no círculo de amizades mais próximas. Depois foi a vez dos anúncios nos periódicos e dum périplo pela internet. Acabaram por descobri-lo no centro de Lisboa, mesmo ao lado da caixa registadora, num estabelecimento do pequeno comércio tradicional.
Quando entraram não deram logo por ele. Vaguearam, indecisas, entre os expositores. Ao balcão, onde se dirigiram para perguntar se a loja dispunha de gabinete de provas, foram recebidas por um riso nervoso. E foi então que o viram, altaneiro, mesmo ali. Uma disse para a outra que embora os homens não se medissem aos palmos, aquele tinha um bom palminho de caras. Estava encontrado o amigo colorido. Era roxo, e usava pilhas AA. Em volta via-se o que pareciam ex-votos para a impotência, ou pilas de defuntos. A outra disse para a uma que se fosse viúva daquele, do lado esquerdo, também o teria entregado às mãos do taxidermista.
Radiante, a amiga agradeceu muito. Agora tinha um marido de bolso que, ao contrário dos homens, perdia status ao passar a objecto de segunda mão. Tinha a desvantagem de lhe sussurrar aos ouvidos como um robot de cozinha, mas isso até aumentava a familiaridade, dando-lhe a sensação de se conhecerem há muito. Entrou imediatamente ao serviço, embora na primeira noite não tenha entrado na totalidade.

entre dois folhetos publicitários presos pelo limpa-pára-brisas

ternura

O que mais a incomodava não era nem a saliva viscosa, nem as unhas dos pés amarelecidas. Era apenas um velho, que pouco mais trabalho lhe dava que uma ejaculação octogenária por semana.
O que já não suportava, isso não, era a ternura do olhar dele no momento de se vir. Nessa tarde, foi com alívio que, imediatamente antes do clímax, lhe poisou a almofada sobre o rosto, expiando para sempre o afecto. Nada lhe coube em herança, bem entendido.

eu sei que tu sabes quem sou

heterotopia salicílica

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Temos um post, no Aspirina, agendado para um futuro incerto, data marcada. Já se falou em apagá-lo, mas eu quis preservar-lhe a presença. Com o sugestivo título «Desta não estava à espera», mantém-nos expectantes, mesmo sabendo que esta não chegará. A escrever direito por linhas tortas. Cada dia que passa, o futuro fica mais grávido. Gosto de assistir a este fenómeno: a vida a somar-se e o tempo que falta aumenta. Um devir a inflar, uma data prevista cada vez mais distante. Longevidade acrescida, esperança de vida eterna. Envelhecemos e o nosso tempo aproxima-se do infinito. Rica cenourinha.
Se mais provas faltassem para a sua existência, certificamo-nos, aqui, de que Deus anda pelo Aspirina B.

fim de semana musical entre dois pólos

Consegue obter-se uma índice máximo de anuências gestuais num concerto de metal. Em nenhum outro género musical faz mais sentido a expressão «abanar a carola». O metaleiro deve ter boas vértebras cervicais para dançar como um verdadeiro strobe humano. A luz vem dos reflexos no cabelo. Há uma percentagem maior de cabelos compridos num concerto de dark metal do que no Maria Lisboa. Cheirando o ar, entre o fumo tabágico e a cerveja, detecta-se um perfume adocicado. Não, não é erva. Já sei: champô. Amaciadores. Mousse e gel wetlook. Alguns com aroma de frutas. Os metaleiros são fofinhos.
E a música? Muito boa. Não é a minha onda, mas gosto sempre de ouvir bons músicos. E o tom épico das melodias condiz muito bem com os rugidos à rei leão. O som estava fraquito, e agora quero poder assistir, em boas condições acústicas, a outro concerto dos Desire. Cheguei à conclusão de que o dark metal, e até o doom, são muito mais bonitos que o vulgar metal.

missa de sexta-feira à noite

A igreja de S. Domingos está em ruínas desde 1954. Ou será que o incêndio foi em 58? Alguns dizem mesmo que aconteceu em 59. Nos anos 90 trataram de pôr-lhe uma abóbada, agora esponjada com pigmentos naturais. Mas se pusermos a mão em pala sobre os olhos continuamos a ter as ruínas e tapamos a luz que se acende acima do coro, no altar, e que fere os olhos. Abaixo da mão, as paredes, fantasmagoria romântica, e os rostos. Testas, malares e cabelos iluminados pelo foco demasiado forte. Missa Tiburtina de Giles Swayne, peça difícil de executar. A missa cantada intercala com mensagens faladas, políticas. Não gostei dos textos. O coro grita protestos e sussurra lamentos, cantando. Estranho, belo. As mãos abertas recortadas sobre o negro dos livros de partituras, perdidas de quem pertencem, quando a luz se acende e a música recomeça. Uma família de músicos quase enche a igreja, entre actuantes e espectadores. Tanta família reunida numa igreja, parece um curioso casamento. Gostei de não gostar do que não gostei, por ter gostado tanto do que gostei.

anarca 100 pitadas manco

Cada nica 100 porta mansa
Croma 100 a pinta cansada
Rosna, mata 100 pica, dança
Narcisa canta 100 pomada

100 mainada pancas troca
100 psico-drama na catana
Da anca dá sã trip 100 moca
Ponta 100 risca cá da mana

Casa 100 picada na montra
Dá post 100 ar, anima cancã
Ama 100 pisca, anda contra
Ansa 100 cinta, madraço Pã

100 cara capta na sina dom
Trinca a 100 mosca panada
Catarina, pancada 100 som
Cinco atrás mapa 100nada

ontem foram as cerejas, hoje bom vento de frente, é só coisas benfazejas a alegrar a vida à gente

À distância de vários quarteirões, em zona urbana, nada nos chega no meio do barulho. A igreja fica num núcleo desenhado por Cristino da Silva sem fazer parte desta arquitectura. É pena. Trata-se duma daquelas igrejas que não convidam o rezador relutante: luzes fluorescentes, excessivas, e arestas finas nos detalhes das superfícies polidas. Não há recortes sombrios, sequer penumbras, nem gradações cromáticas a simularem uma glória luminosa mais clara que o branco.
O padre é um velho rijo que ensinou teologia. Esteve em missões diplomáticas, operações de algum risco ou melindre, e cobranças de promessas terrenas da igreja, relativas à ética de freis-tomás proverbiais. Conversador compulsivo que mistura a cada passo o espírito com a matéria, o sagrado com o pragmático, quase evidencia para o ouvinte distraído das suas dúvidas a existência natural de Deus. Baptizou o meu filho mais novo e por pouco não conseguiu atrair toda a família para as suas homilias.
Era de lá, hoje, que vinha o som. Devem ter usado amplificadores, mas o vento terá ajudado a trazê-lo até à minha janela. Numa tonalidade ancestral, como a melopeia dos amoladores, ou as toadas dos nómadas do deserto a medir as distâncias percorridas, ouço cânticos religiosos. A voz de homem sobe e curva, inflecte e sobe mais um pouco, pausa e declina, mais e mais grave.
As últimas palavras sobressaíram, estranha nitidez. Foi talvez milagre de Fátima a lembrar a primavera. Uma voz de homem ter vindo cantar aos meus ouvidos, baixinho. E a acabar por dizer, no fim de tudo, o nosso amor.