Olharmos a linguagem do corpo como recomenda José Gil. Meta-linguagem que chega a ter códigos; flutuantes, culturais, icónicos. Mas não é só isso. Dizes. No que dizes está o teu pensamento, mas só és inteiro no pensamento de alguém. No teu és apenas muito pouco de ti.
Se te olho, te vejo, ganho o gesto. Revelação tua e no que te trai. Louise Bourgeois explicava, numa entrevista, como se equilibrava o domínio discursivo da jornalista com tudo aquilo que ela mesma captava e transmitia através da visão e respectiva cultura.
Ele falava comigo. Observava o movimento das bochechas, os olhos sem se atreverem a fixar-se em mim. As mãos dele agitavam-se, esfregou a face, nervoso. Eu descrevia para mim e pensava como tudo o que acontece é diferente do imaginável. Dizia ser eu aquela em quem pensava quando via uma nuvem e eu perguntava-me como podia ele confundir todas as nuvens que eram só tuas.
A acção tinha qualquer coisa incaracterística da vigília. Assistia como se inevitável, sem decisões. E havia ainda a ausência de tempo. Como um narrador externo, falava sempre contigo. E isto? Não é linguagem. Não sei o que vale. Valor talvez nem seja, valendo tudo para mim.
O teu rosto, sempre o teu rosto. E então entraste-me devagar e ficaste quieto a crescer. A encher-me as medidas. Não quero vir-me, guardo a tesão. Não sei o que seja. Mas vale um gesto.
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cinco maneiras de degustar Lindt Thins
Prosaica: colocar o quadrado dentro da boca e deixá-lo derreter, mastigando de quando em vez.
Geométrica: dar pequenas dentadas, a corrigir sucessivamente o desenho da sobra, procurando a razão de ouro de Fibonacci.
Certeira: segurá-lo levemente com os dentes e, com uma pressão da língua no centro, parti-lo em duas metades perfeitas. Nunca o ficam, vale a pena repetir.
Infantil: de olhos vendados, procurá-lo com a boca algures num corpo alheio.
Altruísta: mergulhar um canto do quadrado entre os lábios (os pequenos) até amolecer. Oferecer a alguém e deixá-lo lamber o resto.
na era das toalhitas
O mordomo d’ Os despojos do dia, texto comedido sobre a dignidade e a paisagem inglesa convertido em love story pelo cinema, colocava todo o apuro na limpeza dos metais.
Pequena de Verão, entrava na cozinha de pedra de casa da minha avó, numa penumbra muito zen, e ficava em contemplação. Havia a pequena jarra cerâmica no centro da mesa, ornada de dálias ou cravos túnicos, potes de barro sobre a bancada. Pendurados ao longo das paredes, panelas, tachos e púcaros dispostos em gradação de diâmetro, exibiam discretos o brilho, impecavelmente areados. Cobre e alumínio.
Nos dias de limpeza, mulheres e meninas juntavam-se à volta da mesa em divisão de tarefas. As pratas e os estanhos eram retirados dos armários e postos decorativos, para largarem o negrume imposto pela estação.
Agora, aço inox e teflon. Um açucareiro, duas cigarreiras, uma compoteira convertida em guarda-brincos, um tinteiro antigo e pouco mais, exigem cuidado anual com um produto sofisticado. Aplicado com meias velhas, é tão eficaz que, sem esforço, prateia moedas de cêntimo.
Tal é o esquecimento de preceitos antigos: precisei de limpar um candeeiro velho e fiquei embasbacada a olhar a prateleira, no supermercado. Já não sei o que se compra, quanto mais como se faz.
susana
virtudes do zapping
Apanhei ontem Zainab Salbi em entrevista à Al Jazeera. Detalhes da vida privada e do trabalho desenvolvido, salteados com a sua mensagem e reflexão. Afegãs, congolesas, iraquianas e bosnias oferecem à activista e autora biografias inconfessáveis, pedindo-lhe que as revele ao mundo, mas não aos vizinhos.
Relatou a experiência do medo, um medo tão familiar que se torna nosso e descobrimo-nos a cuidar dele, a encontrar-lhe conforto. A consequente necessidade de saber controlar as emoções até ao domínio da expressão fisionómica.
Saddam Hussein capturado trouxe-lhe um dia feliz, apesar da posição firme contra a guerra, porque a paz tem um preço muito mais baixo (e preço é polissémico…). Assumiu candidamente a incoerente ambivalência.
Treinada para dar, o maior desafio que encontrou na intimidade foi o de aprender a receber. Habituou-se a causas grandiosas e só há pouco tempo descobriu o encanto das pequenas coisas, aceitando agora o direito à maternidade.
De tudo falou, mesmo do choro – o seu -, sem despir o sorriso. Que bonita.
susana
cinco receitas para comer maltesers
Introduzir a esfera inteira na boca e mascá-la até ao fim. É o modo vulgar.
Comê-la em pequenas dentadas, mantendo constante o ratio de chocolate e malte.
Partir a camada de chocolate com ligeiras mordidelas, de modo a soltá-la como à casca de um ovo cozido. Deixar o núcleo desfazer devagar sobre a língua.
Derreter o chocolate dentro da boca como um rebuçado. A seguir, partir o núcleo com os dentes da frente. Fazer uma pasta com estes pedaços, equilibrando mastigação e saliva.
Chupá-la e desfazê-la em simultâneo, pressionando-a contra o céu da boca. Quando quebrada, enrolá-la na língua, para sentir a mistura de sabores e o contraste de texturas. Escorrega para baixo, sem repararmos sequer que engolimos.
susana
baby blog
No balcão do banco, na vitrina da mercearia, em cima dos escaparates com jornais e revistas. Ontem dei com a desaparecida Madeleine McCaan a espreitar com ou sem sorriso, por todo o lado, além do écran do meu computador.
Volto hoje a ver o Rui Pedro no blog da Emiéle, onde tem estado. O rosto a que nos habituámos sempre adolescente ao lado de uma “previsão robot” desactualizada. Mil novecentos e noventa e oito. O mais mediático dos portugueses raptados terá já mais de vinte anos – se os tiver.
Os filhos vêm com espadas de Dâmocles. Todos os dias agradeço aos deuses que as minhas continuem pendentes.
Justiça corrente
Velho, cansado, a um passo da reforma. Desterrado para uma comarca irrelevante, o delegado dispunha agora de tempo para pensar em tudo o que não tinha vivido e na verdade que importava. O rumor aquoso do vento nas copas das árvores entrava pela janela aberta. Olhava o conflito das correntes no riacho ao fundo do talude, sabendo que as águas corriam num sentido sempre certo.
Quando o processo chegou, teve pena da mulher, mais uma vítima dos homens, da ignorância, do inelutável apego das leis ao rigor da palavra escrita. Mas não foi por isso. Folheou-o. Enganos e deslocações dos envolvidos eram responsáveis por um nomadismo do caso, atestado pelos sucessivos registos e anotações ao longo de vários anos. Sopesou-o: uns bons dois quilos, ou seria escassez de massa muscular.
Enfadado, dirigiu-se à janela. Num movimento brusco e que lhe pareceu poderoso lançou o calhamaço, vendo-o submergir e reaparecer. Rodopiou e vogou, embateu por instantes em ressaltos de pedra, atrasou-se nos ramos caídos. Olhou-o através da trama das silvas, até se perder na curva.
Algum tempo depois chegou a carta. Aparentemente o processo tinha desaparecido. Segundo o último registo disponível, teria sido enviado para ali. A resposta do delegado foi pronta e sucinta:
O referido processo esteve nas minhas mãos. Segue, agora, o seu curso natural.
gravitas/gravidu
A isenção da taxa moderadora para a prática do aborto vem confirmar o estatuto de doença grave conferido ao estado outrora interessante. Não só grave, gravíssima, de gravidade maior que as demais doenças graves que exigem intervenção mediante o pagamento da taxa.
A cura pelo parto é muito cara, comparada com o aborto, mas tem a vantagem de investir na Segurança Social, a longo prazo. Se bem que comporta um longo período de convalescença, ainda mais debilitante do que a própria doença. Não esqueçamos que a mulher passa a viver com um parasita desgastante. E que os parasitas são coleccionáveis.
Justifica-se, assim, a atribuição duma baixa remunerada (sugiro a duração de três anos, nove meses incluídos) a todas as vítimas deste flagelo sexualmente transmissível. Estava-se mesmo a ver: com um nome desses só podia ser grave, a gravidez.
típico…
rosa soft
Os primeiros olheiros a assinalar a minha contribuição cromática para o blog foram os seus comentadores mais assíduos, os marginalíssimos da vitamina B exponenciada. Porque são dotados de feminil intuição, como se nota pelas iniciais tão simbolicamente sexy. E feministas, também, ou não teriam uma barbuda assumida como guru.
Quando o Valupi me convidou para escrever aqui até chorei, tal foi a comoção que se gerou. Estava a tomar o pequeno almoço. O temporizador da torradeira está avariado e o pão tinha dois dias. Chamuscaram-se as torradas. Depois de raspadas as migalhas mais escuras para cima da louça por lavar, sobrou um rebordo acastanhado e duro. Curtia, na altura, o drama magoado do fim da Sociedade Anónima. No instante da proposta a surpresa lançou uma lasca de côdea a caminho do meu esófago. Engasguei-me e tossi. Tossi muito, até me virem as lágrimas aos olhos. Só pararam de rolar ao terceiro gole de café com leite morno. Pude então passar às manifestações de modesta incredulidade.
A indecisão durou umas semanas, ou estaria a fazer-me difícil. Iniciada pelo misto Afixe, de quotas rigorosamente equitativas, e treinada pelo hiper-ultra-mega feminino Sociedade Anónima, estranho-me agora num blogue de gajos. Como não são meus filhos, prometo não oferecer medicação acertada, menos ainda regular. Remédio, não tenho. Espero apenas efeitos secundários.