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Adeus

Criei, ou criaram de mim, uma imagem a que não estou habituado. Talvez esta seja a verdadeira. Tanto pior se o for, e tanta mais razão para que eu deixe o espaço por conta apenas dos puros de coração. Ao contrário do Fernando Venâncio, não direi que gostei de estar aqui. Se gostasse, continuaria. Desejo-vos, sinceramente, o melhor na vida.

Trezentas e quarenta palavras

TREZENTAS E QUARENTA PALAVRAS
(Em memória do Capitão Salgueiro Maia e do cantor José Afonso)
Conheces o gosto da anona? E o cheiro do incenso em flor nas noites húmidas? Talvez.
Mas com certeza não serás capaz de os explicar. Nem eu nem ninguém.
Existem coisas assim: os sabores, os cheiros, as cores, os sentimentos… Há muitos milhares de palavras, mas nenhumas são suficientes para dizer aquilo que só quando se sente se sabe como é.
Eu gostaria de inventar as palavras que faltam à nossa Língua, a todas as línguas do Mundo, para falar de Abril. Em Portugal. Num dia com cravos a florir nas espingardas, porque ninguém queria usá-Ias para matar.
Estavam cansados da guerra, uma guerra má como todas as guerras. Em Angola e em Moçambique e na Guiné. Era o medo em Portugal. Havia verdades que era proibido dizer. Havia muita gente que mal tinha que comer. Havia muita gente sem casa onde morar.
Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Os homens que mandavam neste país, e que não queriam que ele mudasse, talvez dormissem àquela hora sem sonhar com o que ia acontecer. No rádio, uma canção começou: “Grândola, Vila Morena”. (Uma revolta que começa com uma canção, sobretudo uma canção como aquela, tem de ser uma revolta boa). Era o sinal combinado. Os militares saíram dos quartéis para dizer ao governo que não o suportavam mais, mas ainda não se sabia quantos portugueses estavam no mesmo lado. Logo se percebeu que eram quase todos, afinal.
E a revolução tornou-se numa festa tão bonita que esse dia foi um dos mais belos da História de Portugal. Foi uma alegria tão grande que se chegou a pensar ter valido a pena tanto tempo de sofrimento e medo para que ela acontecesse…
Mas não! A água mais apetecida é a que se bebe depois de uma longa e penosa sede, e ninguém se deixa estar dois ou três dias sem beber só para ter um gosto enorme ao beber…
Se eu pudesse inventar as palavras que faltam à nossa Língua para dizer isto melhor, nunca mais haveria alguém capaz de duvidar de como foi lindo aquele dia, nunca mais ninguém haveria de permitir que alguma coisa, neste país, se parecesse com as coisas ruins de antes. E muito depressa se mudaria o que ainda não houve tempo de mudar.

“Eu Acho” que ele tem razão

Este comentário de um leitor que assina “Eu Acho” resume, quanto a mim, a situação de uma sociedade que perdeu completamente a noção de que há valores que devem prevalecer sobre os instintos. Por isso o transcrevo para aqui. Assumo a responsabilidade de todas as suas palavras, mas de modo algum o mérito de lhe ter dado mais visibilidade..
Daniel de Sá:
Quando os “residentes” não querem perceber, são os comentadores que passam por não terem percebido. Pois eu acho que percebi muito bem. O Daniel tem apenas razão quando refere a “vulvização” – à qual eu acrescento “vaginação”, “clitorização” e tudo o que diz respeito ao sexo dito sem tabus. Trata-se de uma moda – e de um negócio – a indicar-nos que estamos na Era do Sexo. Muitos dos que escrevem em blogs e noutros locais entendem que para além desse tema não existe mais nada com interesse. Que não há inspiração que suplante o sexo. É o sexo que vende. É o sexo que chama o leitor e, ao que parece, o comprador de “arte”. É moda e é um modo de estar na vida. Quanto mais chocante e desbragado, melhor
Eu acho que com um pouco mais de decoro, de respeito, daquela “reserva” de outros tempos, ainda recentes, todos ficaríamos a ganhar. O sexo tornar-se-ia mais apetecível, quer figurado, quer descrito por palavras. Assim, a tocar pública e abertamente as raias do promíscuo, do chocante, do obsceno, do provocante, do indecente, do sem-regras, vamos de mal a pior. Não havia, por exemplo, tantos casos de mães com 11 ou 12 anos de idade e pais com 13 ou 14 anos. Vamos chamar a isso “evolução” de costumes”? Tudo o que ultrapassa os limites é exagero. Lésbicas e homossexuais sempre os houve. Aberrações também. Não será daí que vem maior mal ao Mundo. Mas não a falta de decoro a que se assiste actualmente, o exibicionismo barato, ostensivo e chocante, que nos bate à porta todos os dias.
Outra coisa: não utilize tantas vezes a palavra «ironia» para tapar buracos. Nem sempre o leitor está à altura de detectar as suas “ironias” nos seus comentários. Chamar, em certos casos, a “ironia” para resolver situações mais controversas, é quase como dar o dito por não dito.
Susana:
Pois terá sido a moral «que impediu representações belíssimas do sexo e do corpo de virem a público». Estou de acordo. Não vem daí novidade. Mas como vamos nós incutir nos nossos filhos a moral que não temos? Os princípios que não nos regem? Que desplante será o nosso ao exigir-lhes condutas que não seguimos? Mesmo que o corpo não seja tabu entre pais e filhos? Sim, porque isso é outra coisa.
O sexo sempre foi tema na arte: pintura, escultura, literatura. Mas não atirado de qualquer maneira à cara de cada um! Hoje, qualquer bicho-careta aborda o tema, quer figurado, quer pela escrita, com grosseria, sem qualidade, sem beleza. Antes com obscenidade, sem pudor, sem preconceitos, como pseudo-arte. Porque é moda? Porque toda a gente o faz? Por dinheiro? É essa a liberdade de expressão artística de que usufruímos hoje?
Poderá dizer que o meu ponto de vista pertence a um passado conservador. Pergunto: passa a evolução das sociedades pelo arrasar de preconceitos lógicos, estéticos e morais? Não vamos, certamente, comparar, na pintura, um cesto de morangos com a representação de uma vagina. O pintor pode ser o mesmo e a sua arte também. Mas ir tão longe, mesmo tendo em conta o «impedimento moral de vir a público» – com as consequências que se entendem por morais ou de bom-senso – poderá tornar-se imoral, ou não?

O Ilhéu da Vila

Já que é para abandalhar o Aspirina, abandalhemos todos. E que me desculpem a rudeza deste soneto aqueles que me julgavam mais comedido.
Não fiz mais do que atender a um pedido do inefável Dr. Luciano da Silva, homem famoso pela sua crença no Colombo português, embora eu não seja vilafranquense. Explico. Ele descobriu uma notável semelhança entre o ilhéu de Vila Franca e os órgãos reprodutores e suas vias de acesso femininos, com um farilhão ao lado que é evidentemente um símbolo fálico. (E eu que ainda não reparara nisto nem no resto… que incultura sexual!) E desafiou os poetas de Vila Franca a fazerem poesia inspirados nesse tema. Mas, melhor que esta explicação, será consultar o texto do próprio, no endereço que vai abaixo.

http://www.dightonrock.com/ocolondavilafancadocampo.htm

Ilhéu da Vila

Uma erótica vulva de basalto,
Redonda, bem formada, como um halo.
Contempla-a, sombrio, um negro falo
Que a seu lado se vê bem posto ao alto.

Que angústias viverá em sobressalto!
O erecto, viril membro, é como um galo
Com franga que não pode consolá-lo
Porque ele não consegue dar o salto.

Imutáveis estão, e assim se fitam:
Ela ardendo em desejo, ele cismando.
(Quantos seres humanos os imitam!)

Para não desejá-la, o pobre rijo
Enquanto a olha vai imaginando
Que o mar à sua volta é todo mijo.

A sombra luminosa

Poemas: Marta Furtado (jovem poetisa natural da Ribeira Grande, publicação póstuma) e R. Tagore;
Título e outras citações: Armindo Trevisan (teólogo brasileiro);
O texto restante é meu.
“Num campo de Nada
os olhos minúsculos de uma besta
enredada no escuro
tremem de medo dentro do corpo
enorme colossa.l”
Um campo de nada que poderia ser de tudo. O vaso vazio é mais fácil de encher se for pequeno, mas se a alma humana é grande, imensa, nada a saciará nunca. Como um
“Minotauro embevecido,
(que) consigo
ao espelho, no dia em que se viu
tornou-se frágil narciso
e perdeu o sentido.”
O espelho, a luz-sombra do eu inquieto a que só a perfeição basta. Mas não pode partir-se o espelho. Nem obrigar o espírito às limitações do reflexo. Talvez num qualquer Nirvana. Talvez Rabindranath, o sublime, capaz de o sentir quando disse
“Mesmo que eu tivesse o céu
com todas as suas estrelas
e a terra com os seus tesouros sem fim,
eu pediria mais.
Se ela fosse minha, porém,
qualquer cantinho neste mundo me bastaria.”
A poesia é uma das formas primordiais do Belo. A comunicação por excelência das ideias imperecíveis. O próprio Cristo a terá usado, seguindo a tradição do seu povo habituado a guardar a sabedoria onde não poderia perder-se: na memória colectiva.
“Existe nos Evangelhos uma dimensão poética essencial”
mas o próprio
“Jesus não encontrou uma página em branco que devesse ser inaugurada; a página já estava escrita.”
O que é preciso é mudar as formas, se necessário acrisolá-las até, para as adaptar às exigências de quem ouve, ainda que sejam apenas um solilóquio. Ainda que, se fossem cores, tivessem de ser feitas de todas as cores para conterem todas as ideias. Porque “o poeta, por definição, é alguém que deixa em aberto suas palavras, fugindo às definições.”
O poeta é alguém que é maior do que a sua própria vida, como se não coubesse nela e tivesse de criar um espaço de poesia que acolhesse a sua liberdade condicionada. Um pequeno mar onde possam desaguar os seus sentimentos, porque “só a poesia resguarda aquela área em que o sentido pode ficar /…/ fecundo, engendrando novos sentidos.”
Muitas vezes, quase sempre mesmo, a inquietação que aflige o poeta não é a sua própria, mas a dos outros.
“O suor dos escravos
ou a seiva dos algodoeiros
entranhados na Terra?”
Esta é uma forma excelsa de sabedoria: a consciência de que o mundo somos nós todos, de que não há lugares de privilégio previamente reservados.
“É a primeira vez que venho ao mundo
daí que não saiba nem sinta absolutamente nada.”
Mas a forma suprema da sabedoria é o amor. Que não se aprende, faz parte da vida. Quem o nega não renuncia aos outros, renuncia a si mesmo.
“A Humanidade
ou está numa mata de ouro
ou num matadouro
conforme convém à loucura.”
Para isto é preciso um corpo com todos os seus sentidos, pois estes é que são as portas da alma.
“Que farei eu só com a minha alma?”
Estes poemas da Marta, como os de Michel Quoist, são para rezar. Por isso, contrariando a lógica, mais que a resposta dada à pergunta feita
“Nada “
pode dizer-se, sem receio de errar: Tudo.

No Nordeste, em S. Miguel

Naquele tempo, o Nordeste ainda era longe. Dentro do concelho a viagem fazia-se numa estrada de que, em dias secos, se erguia um pó amarelado, finíssimo, constante. Nada nem ninguém se movia nela sem assinalar a passagem com nuvens de poeira. Que persistiam, insidiosas, se não havia uma aragem que as desfizesse sobre as searas, contra as casas, nos vales e nos outeiros.
Pela primeira vez o viajante foi além da Vila. Passou a Lomba da Pedreira, presépio armado durante todo o ano. Ficava para outro dia percorrer as suas ruas como pastor em Belém. E, de súbito, poucos quilómetros adiante, a mais inesperada das surpresas. A estrada alargava-se e era de asfalto. Haviam ficado para trás os barrocais das míticas ribeiras do Nordeste – a da Mulher, a Despe-te Que Suas, a do Guilherme… Perdidas, nas milhentas curvas do caminho e da paisagem, as tremendas arribas da Achada, das Feteiras, da Algarvia… Por aquelas bandas a ilha é sempre com mar ao fundo, mas apenas a servir de moldura, longe, como se a ilha e o mar nada tivessem que ver entre si. Como se vivessem desavindos e só por acaso e a contragosto se tocassem na orla das escarpas.
Da estrada de asfalto o viajante não sabe o prodígio que a deitou ali, no mais improvável dos lugares, porque não se vê vivalma que a use ou ao menos lhe ponha a vista em cima. Mas ela continua a revelar um mundo cada vez mais estranho e mais fascinante. Ali, onde a ilha começou a ser feita há mais de quatro milhões de anos, tudo acontece à semelhança do final de um poema sinfónico, em que o tema se repita no ribombar de toda a orquestra. A cada curva passada o viajante olha à procura da diferença. E esta surge-lhe, mais que todas, no espanto de uma ribeira que, como as outras, desce dos lados onde o Pico da Vara galga o céu.
O viajante pára. Alguém dos que o acompanham disse: “Ninguém fale.” Mas não era preciso. O único que se atreveu a falar foi aquele que pediu silêncio.
Não sabe o nome da ribeira que contempla, extasiado. Apenas percebe que ela desce a montanha como se tivesse pressa de fugir das alturas da Tronqueira. Depois acalma um pouco, e a falha geológica que aproveita para deitar-se ao mar alarga-se sem poupar espaço. As margens, até ao leito que se não vislumbra, estão adornadas com quase todas as espécies de árvores que há na ilha. A completar o espectáculo, o canto de milhares de pássaros. Nem um se avista. Nem de um sequer se distingue a voz, que assim de longe ecoam todas em uníssono.
Depois há-se saber que aquela ribeira é a dos Caimbos, porque, ao atravessá-la, os primeiros que por ali andaram usavam uns ganchos para se agarrarem às margens quando as subiam. Quanto à estrada que primeiro o surpreendeu, dizem-lhe que foi obra dos Serviços Florestais, que fizeram no Nordeste talvez os melhores actos de amor à Natureza de todas estas ilhas. (E naquele pico de onde a ribeira desce, o do Bartolomeu, que seria morada digna de duendes, há-de fazer-se um miradouro de conto de fadas.)
O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou até chegar ali. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. Mas ama-os, na sua velha modéstia, deleita-se no contraste da sua pequenez com a imensidão do cenário. E tem confiança de que tudo há-de mudar. Só não imagina que será tanto e tão depressa. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como os incensos e as conteiras nas ravinas mais inacessíveis.