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Em parte incerta

Gostei muito deste bocadinho. Garanto que gostei. Tive mesmo momentos de entusiasmo, daqueles em que o Mundo, contra todas as chances, bateu certo.

Mas outro momento chegou. O da partida. Sem dramas nem estados de alma, deixo o Aspirina. Desejo-lhe longos dias. Longos e cheios.

Cá o Degas ficará onde sempre esteve, onde é o seu lugar, e onde estará sempre melhor. Em parte incerta.

O túnel do Rossio já não cheira a fumo

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Uma das nostalgias da minha meninice é o cheiro a fumo do túnel do Rossio. Nostalgias, e entendam-se não aquelas que nos chegam depois, mas as que não esperam e logo nos dão na altura. Eu passava meses lembrando-me do cheiro desse fumo bem real, o que a máquina ia lançando lá à frente, e penetrava pela menor frincha. Suspirava por Sintra, pelo outro comboio, que levava à Praia das Maçãs.

Hoje, o túnel está iluminado – e mais respirável. Aspiro fundo, e nada. Nem uma lembrança, nem uma impressão. A minha infância está, ali, agora iluminada. Se mais respirável, não sei.

Não compre este livro! (para já…)

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O livro tem algum interesse, isso garanto-lho eu. Simplesmente, a edição já disponibilizada, numa livraria perto de si, vai ser retirada do mercado. Não é por nada, mas não está tecnicamente apresentável. A editora, a perfeccionista Assírio & Alvim, vai muito em breve repor a obra. Perfeitíssima. Como é seu timbre.
 
Agora a boa notícia. É que Último Minuete em Lisboa será apresentado na terça-feira 1 de Abril, pelas 19.00 horas, na Casa do Alentejo (Rua das Portas de Santo Antão, ao Coliseu), em Lisboa. A apresentação será feita por Francisco José Viegas.
 
E, como uma alegria nunca vem só, na mesma ocasião serão apresentados os Bilhetes de Colares, de José Cutileiro,  recentemente saídos na mesma editora, e que o autor do primeiro livro organizou. O apresentador será, aqui, Henrique Granadeiro.

Uma cama em Bruges

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Morreu ontem o escritor belga Hugo Claus. Nascido em 1929, era romancista e poeta. Está em português o seu espectacular romance «O Desgosto da Bélgica». Era,  a par do holandês Harry Mulisch, um eterno nobelizável de língua neerlandesa. Um dos seus mais célebres poemas, «Een bed in Brugge», vai aqui, em tradução publicada em 1997.

Uma cama em Bruges

«Sou empregado dos Produits Chimiques, meu caro senhor,
empregado na morte lenta.
Ao fim de dez anos pode ter-se a reforma
por causa do gás no bandulho.
Estou lá há catorze já, meu caro senhor,
há dois deles como motorista.
E nesses dois não precisei de vomitar nem uma vez,
por causa do ar fresco.

Nós, belgas, somos os melhores condutores da Europa inteira,
e eu já estive em todo o lado.
Porque somos perigosos a guiar.
E assim temos mais em conta os outros
que também são perigosos a guiar, mas sem quererem sabê-lo.

E sabe a coisa mais linda que estes olhos já viram?
E repare que estive na Capela Sixtina,
e que vi o rabo da Gisela do Mocambo ─
bom, foi numa loja de Bruges,
uma cama carmesim. Em Empire. Ou seria Luís XV?

Aí deitado, com a Gisela, havia de esquecer os meus três filhos
e o calendário inteiro.
O amor, caro senhor, tem de ser de cetim.
E a morte, caro senhor, é o que se sente no estômago
quando se sabe que nunca poderá comprar-se uma cama dessas.»

tradução do neerlandês
Fernando Venâncio

Mon cher Antoine

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O seu carro descontrola-se, e você atropela o seu escritor favorito, digamos José Rodrigues dos Santos? Em legítima defesa, você dispara um laser paralisante, e atinge, por estúpida coincidência, o seu cantor favorito, digamos Mickael Carreira? Chato, muito chato. Foi o que sucedeu a um piloto de guerra alemão, que abateu – sem sabê-lo – o escritor que mais o deleitava: Antoine de Saint-Exupéry. O nome soa-lhe familiar, mas não o liga a nada? Pense n’O Principezinho, e está lá.

Pois foi. Num voo de patrulha, na costa sul de França, a 31 de Julho de 1944, Antoine, com 44 anos, pilotava um Lockheed P38 Lightning (na imagem). Terá visto um Messerschmidt Me109, que andava perto, colocar-se atrás dele. O que sentiu depois – «c’est ça, la fin» – já não pôde contar-no-lo, ele que em Vol de Nuit descrevera angústias de arrepiar.

Não se suicidou, como se chegou a pensar. Matou-o Horst Rippert, piloto da Luftwaffe, que, hoje com 88 anos, revelou o caso. Passou sessenta e quatro deles, consciente dia e noite de que, sem sabê-lo, pusera fim à vida de alguém que tanto adorava ler.

Por nós, havemos de saber tudo em Saint-Exupéry, l’ultime secret, um livro a aparecer brevemente.  

À noite logo se vê

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Não é provável que qualquer dos dois, PSOE ou PP, consiga a maioria absoluta. Não há espanhóis suficientes a reconhecerem-se quer num quer noutro. E, no entanto, uma maioria absoluta será sempre indispensável ao PP para ser governo. É que com Rajoy ninguém quer governar. E nem tanto por causa de Rajoy – na realidade, um fraco – mas porque ele não passa do homem-de-mão dum Aznar que, da sombra, ainda mexe tudo.

Como o espectro político espanhol não possui um partido de extrema-direita, nem no parlamento nem fora, toda a cambada nazi e fascista se juntou, e pesa muito, no PP. Aí está um partido que, inicialmente de vocação centrista, tem disponível gente muito sensata e capaz, mas hoje trucidada por cavaleiros de tristíssima figura. O aberto apoio episcopal torna a organização ainda mais sinistra. É o Valle de los Caídos em superprodução.

O PSOE, esse, tem reais chances de continuar governo. Todos os outros partidos, nacionais ou autonómicos, estão dispostos a apoiá-lo, pelo menos a tolerá-lo. Cada um deles procura, sem dúvida, o mais largo assento parlamentar em Madrid. Mas isso não ameaça a Zapatero, antes pelo contrário. Todo o voto que não for PP é voto útil.

Logo à noite saberemos mais, provavelmente saberemos tudo. A nós, resta-nos esperar. E ir pondo uma velinha à Senhora. Ela, melhor que ninguém, sabe quantos bispos há já no Inferno.

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P.S. Em vão se procurará, nos últimos dias, na «Opinião», e até nos «Editoriais», quer do Público quer do DN uma reflexão sobre estas eleições gerais espanholas. A malta não dá peso a estas coisas, se é que a malta entende sequer estas coisas. Qualquer baptizado principesco ocupa mais mentes portuguesas.

Ter-se-ão eles já instalado tão bem que não os vemos? Será a invisibilidade do «espanhol em nós» afinal um facto? 

«A Terceira Atlântida» de Fernanda Durão Ferreira

A história começa em 26-7-1880, quando o súbdito britânico Gordon Mason, viajando de Southamptom para o Rio de Janeiro, em escala técnica na Ilha Terceira, assiste com o imediato do navio «Santa Helena» a uma tourada na Vila Nova. Depois da tourada o lanche, depois do lanche a conversa e, chegada a noite, o amigo terceirense do imediato do navio emprestou dois cavalos e cedeu um criado para os acompanhar até Angra do Heroísmo.

No caminho, encontraram dez homens da «Justiça da Noite» que se dedicavam a derrubar um muro e um portão com marretas e cordas. Passado o susto inicial, com a preciosa ajuda do criado, o viajante (e o imediato) seguiram viagem e, já a caminho do Rio de Janeiro, ouviu a bordo um professor de História afirmar: «Esses e outros costumes são quase tão antigos como a própria Ilha. Ilha que há muitos, muitos séculos tinha um outro nome e possuía outra cultura.»

As touradas à corda são hoje uma prática igual à que foi descrita por Platão com os dez pastores a serem a memória dos dez reis da Atlântida. A «Justiça da Noite» que funcionou até à segunda metade do século XX é a memória da justiça dos dez reis da Atlântida, pois nesse tempo, como escreveu Platão, «o rei não era senhor de condenar à morte sem o assentimento de mais de metade dos dez reis.»

O próprio rei D. Afonso V, numa carta de mercê ao cavaleiro Fernão Teles de 10-11-1475, escreve o seguinte: «Faço mercê de quaisquer ilhas que achar, ilhas despovoadas, ilhas povoadas e ilhas povoadas que ao presente não são navegadas nem achadas nem tratadas por meus naturais.» Como se percebe pelas citações, este livro tem muito que se lhe diga sobre as raízes da tradição Atlante nos Açores. Mas ficamos por aqui, lembrando só o que Vitorino Nemésio escreveu um dia: «A Geografia para nós vale tanto como a História».

Editora: Zéfiro
Prefácio: José Fonseca e Costa

Buena suerte, Zé Luís! [actualizado]

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– Tá, Zé?

– Oi, Zé Luís. Outra vez?

– Desculpa, pá, desculpa. É que eu ando um bocadinho…

– … nervoso, eu percebo. Mas, vais ver, domingo à noite, isso passa-te num sopro.

– Talvez, talvez. Mas, até lá, muito pode acontecer. E é até por causa disso que te estava a ligar.

– Homem, lá por isso, tens aqui um país inteiro solidário.

– A sério? É que, desculpa lá, mas há uns zunzuns de que afinal ides, até domingo, reconhecer o Kosovo. E isso…

– Eu sei, não é o que ficou combinado.

– Pois, e diz-se que, na vossa imprensa, há umas pressões…

– Pressões, Zé Luís? Francamente, até parece que não me conheces. Além disso, a imprensa aqui não abre o bico sobre a questão. Acagaçam-se, como sempre. Cheira-lhes a esturro.

– Mas tu vê lá, ãh? É que, se vocês reconhecerem, isso custa-me, a brincar a brincar, duzentos mil votos. E, tu sabes…

– Eu sei. Faziam imenso jeito ao Raxói.

– A quem?

– Ao Rajoy. O gajo não é galego?

– Tá bem, entendam-se lá na vossa língua. Os meus problemas são outros.

– Não, a sério, Zé Luís. Comigo podes contar. Antes da meia-noite de segunda, não vai haver reconhecimento. Depois, sinto-me desligado do nosso acordo.

– Zezinho, calma aí. Isso não me ajuda por aí além. Não querias esperar mais um mesezinhos? Pelo menos até ao referendo do Ibarretxe?

– Pá, Zé Luís, isso é que já vai ser mais fodido de explicar à malta. Mas, tá bem, pronto, vou ver o que se consegue arranjar. E olha, por agora, buenas tardes y buena suerte. Não é como tu dizes?

– Ah, já me apanhaste essa. És um gajo sabido. Então, até…

– Até domingo à noite. Hei-de ser o primeiro a…

[caiu uma chamada, algures entre a Moncloa e São Bento]

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Actualização

Este «post» foi publicado antes do assassinato, por terroristas, dum socialista basco, facto que conduziu à suspensão da campanha eleitoral espanhola. Perante a morte, toda a humana leviandade, também a do autor deste «post», é ridícula.

A próxima vítima [actualizado]

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Geert Wilders, fixem esse nome. Vão ouvir falar mais dele. Quem é?

É um deputado holandês que há dois anos foi expulso do Partido Liberal, e hoje preside no Parlamento a um grupo próprio. Houvesse hoje eleições, e Wilders (o «i» soa como ê) seria o chefe do quarto partido político, se não do terceiro, do país. Essa popularidade de Wilders vem-lhe, sobretudo, da frontal oposição ao Islão.

Estamos na Holanda, país que, em matéria de liberdade de expressão, não recebe lições. Vivem nele meio milhão de islamitas, mas Wilders tem a plena liberdade de exprimir-se. Não como eu, ou como o meu vizinho. Não, ele é, depois da Rainha, o cidadão mais protegido no país.

Até aqui tudo bem.

Mas Wilders quer mais. Quer contar ao Mundo inteiro a desfaçatez e o perigo que é o Islão, e isso sob a forma dum filme, Fitna, que ele espera ver passado na TV. Por ele, simples questão de dias. Simplesmente, até ao momento, nenhum canal holandês se prontificou. Wilders afirma que nada no filme viola a lei holandesa, o que é de admitir, já que é das mais permissivas do Planeta. Caso a TV recuse, sobra-lhe a vasta Internet.

Na opinião pública, ninguém acredita que Geert Wilders faça tudo isso só para proteger-nos do Islão. Pode fazê-lo, lá num recesso do seu íntimo. Mas o fito dele é o Poder. O que é absolutamente legítimo. Simplesmente, de momento, e de confessável, só os seus anseios apostólicos.

Entretanto, os holandeses que vivem e trabalham em países muçulmanos – cooperantes, pessoal médico, professores, pequenos empresários – começam a ficar preocupados, e não só um bocadinho. Um qualquer deles, não o vigiadíssimo Wilders, poderia ser a próxima vítima. A próxima, depois do cineasta Theo van Gogh, nas ruas de Amsterdão.

Muitas vozes se erguem na Holanda, a começar pelo primeiro-ministro, rogando a Wilders que não use a grande liberdade que aqui se vive para pôr em perigo vidas de compatriotas, aqui, ou Mundo afora. Mas Wilders repete sempre o mesmo: que nada fará de ilegal.

Pode ser. Mas, sabendo-se o que do Islão ele tem dito, no Parlamento e fora dele, é altamente provável que o filme vá ferir convicções, e sentimentos, de muitos. E seria ingénuo pensar que Wilders não percebe que isso é uma provocação aos mais débeis e fanáticos entre esses muitos.

Nas numerosas, diárias «Cartas ao Director» sobre o tema, em todos os jornais do país, uma fez-me particular impressão. Perguntava uma senhora se era exagerado medo, o seu, de achar-se um dia, por um estúpido acaso, no local em que Wilders fosse alvo dum atentado. Essa senhora incarnava, pode inferir-se, qualquer cidadão holandês. Nem ela nem eu temos a mínima vontade de virmos, um dia, a ser condecorados em condições um nadinha esquisitas.

Resta-nos, pois, por entre as bênçãos à liberdade de expressão, rezarmos um poucochinho. Por Wilders, também, claro. Mas esse sempre tem os seus guarda-costas.

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Actualização [6 de Março]

Geert Wilders anunciou que vai mostrar o filme, em finais de Março, na sala de imprensa do Parlamento. 

Entretanto, esta manhã, a polícia holandesa entrou na segunda mais alta fase de alerta. Significa uma «chance real» de haver um atentado terrorista em solo holandês. (A primeira é para depois do atentado).

Alarmismo? Medo? Quem falou em tal? Mas ninguém acha sumamente interessante ir pelos ares aos bocadinhos, só porque lhe calhou viver num país que – de tão tolerante – não desarma o braço a um louco.

Fora do sítio

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Às seis e meia da tarde de domingo, vi Clara Pinto Correia actuando na pista de «Dança Comigo», da RTP. Senti dó. Horas depois, já quase meia-noite, vi Rosa Lobato de Faria na série «Aqui não há quem viva», da SIC. Voltei a sentir dó. De bailarina, Clara não tem nada. De actriz, Rosa nada tem.

Clara escreveu, em 1985, um dos nossos grandes romances das últimas décadas, Adeus Princesa. Rosa, também ela, escreveu, em 1996, um dos nossos grandes romances das últimas décadas, Os pássaros de seda. Uma e outra escreveram muito mais, e conseguiram, aqui e ali, encher-nos de novo as medidas.

Posso ser eu o esquisito. E sei que os biscates das senhoras não são da minha conta. Mas preferia não vê-las assim.

As mulheres de 53 anos aparentam 35

Uma das memórias mais doces e mais permanentes da minha infância é a das quadras das cantigas de roda da escola primária no Montijo. As meninas cantavam assim:

Fui lavar ao Rio Lima
Cheguei lá sem o sabão
Lavei a roupa com rosas
Ficou-me o cheiro na mão

Um dia destes, uma querida amiga (que aprendi a conhecer melhor numa revista literária onde ambos fizemos tarimba jornalística) fez 53 anos. Logo me lembrei de lhe dedicar uma quadra de sabor popular sugerindo uma estrondosa troca de algarismos. Foi assim:

Trinta e cinco na verdade
São os anos que respiras
O bilhete de identidade
É um poço de mentiras

A resposta via SMS foi um longo «Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!» seguido de um «Bom dia!»

Também me lembrei de uma quadra famosa do João de Deus feita a pedido de um vizinho que, perante a morte de um cunhado, se deslocou a casa do poeta com o irmão do falecido pedindo um epitáfio, mas onde eles constassem. O poeta fez num instante a vontade aos dois vizinhos. Assim:

Aqui jaz João Morgado
Homem honrado e benquisto
Seu irmão e seu cunhado
Mandaram aqui pôr isto

Tudo isto para dizer que fica sempre bem dizer a uma senhora de 53 anos que na verdade tem 35, e que o erro é do BI.

Um infindável Sporting-Benfica na minha vida

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*

Esta confissão tinha que sair um dia. Sim, foi uma pulhice, essa minha, foi uma gratuita safadeza, foi uma criancice em todos os sentidos.

Teria eu sete, no máximo oito anos. E era um sábado. Seria pedir muito que fosse, como hoje, também dia de ‘derby’ (vejam-me esta linguagem), tanto mais que, então, raramente se jogava fora do domingo. Ao sábado, trabalhava-se.

Terá sido, pois, um fim de tarde de sábado, esse em que a minha mãe regressou a casa com um enorme embrulho. Nós éramos pobres, sem sermos miseráveis (isto passa-se na Rua Pedro Dias, em Lisboa, «ali às Cortes», como dizíamos), e um embrulho assim não era visão comum. A minha mãe trazia um retalho para um casaco de inverno. Isso já ela andava anunciando havia meses. Seria um retalho de ‘papa’, já o sabíamos, quentinho, para aqueles invernos bons de antigamente.

Aberto o embrulho, ali em cima da cama dos meus pais, vem o meu espanto, vem a minha fúria. O retalho era verde. Verde. Dum verde leve, quase alegre. Poderia eu perdoar aquilo à minha mãe?

Eu era – e aqui começa a confissão – era do Benfica. Não pelo Benfica, que não me interessava nem um niquinhas, mas pela razão mais simples e devastadora: o meu pai era (e, para felicidade nossa, é ainda) um sportinguista. Eu era um Édipo em calções.

A partir daqui, estou filmando um miúdo de sete, oito anos no máximo, nuns calções efectivamente muito curtos, que sai do quarto, vai desencantar algures uma tesoura, das grandes, das de costurar, e que volta ao quarto, agarra no tecido e faz nele um valente rasgão. Ouço, e gravo, gritos, duma mãe, duma maninha mais nova, dumas tias, dumas vagas primas. Volto a ver, e a filmar, correrias, desvairos.

A fita de gravação salta, a película de filme solta-se. Dias depois, o rasgão há-de ficar resolvido, elegantemente camuflado como bolso.

Mas a vergonha, essa que ninguém jamais conseguiu filmar, perscrutar sequer, continua a projectar-se. No escuro, no vazio. Até hoje.

«O império dos pardais» continua no Rossio

Depois de ter escrito a biografia do rei D. Manuel I, o historiador João Paulo Oliveira e Costa acaba de fazer um livro em tudo diferente. Chama-se O império dos pardais é uma edição Círculo de Leitores e faz do Rossio o palco privilegiado para as personagens se misturarem, se envolverem e se defrontarem. Este Rossio que ainda hoje continua a fervilhar de gente das mais desvairadas caras, raças, cores, credos e nomes.

Hoje, como no tempo do romance, os pardais continuam a aproveitar os bocadinhos de pão que sobejam da luta entre as gaivotas e os pombos. No romance as potências da Europa são a França, o Império Alemão e a Inglaterra. Como hoje, afinal.

Para além das descrições vivíssimas da zona portuária do Tejo, para além da importância decisiva da Irmandade de Moura, o grupo dos amigos do então duque de Beja, para além das peripécias dos serviços de espionagem e de contra-informação, a mim fascinou-me em particular a morte de um marinheiro, «mestre» Felício, em Beja. O rei D. Manuel I visita-o no leito de morte para garantir que está ali por gratidão e respeito para lhe agradecer as viagens de exploração pelo oceano que não foram registadas pelos cronistas nem tiveram direito a diário de bordo.

Na história continua a haver tempos nebulosos e personagens difíceis que nunca vão sair dos subterrâneos do esquecimento. São pessoas que deram tudo por uma causa mas não foi conveniente divulgar os seus nomes, os seus trabalhos e os seus dias.

Este livro deixa-me reconciliado com uma certa ideia de Portugal. E não falta um estrangeiro (um dinamarquês) para nos dizer lucidamente aquilo que nós não somos capazes de descobrir. Até nesse pormenor este é um livro profundamente português.

Saramago passou-se?

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Foto sacada aqui.

José Saramago apoia abertamente José Luis Zapatero. Normal? Inesperado?

Leia A discreta viagem rumo à outra margem de José Saramago.

Com vénia para aqui.

P.S. O autor deste «post» acha que até está muito bem. Que tudo vale para travar Rajoy & Aznar. Mesmo uma conversão de Saramago conjunta à Cientologia, à Opus Dei e à Igreja do Maná. Mas confessa que, até hoje, acreditara naquela velha, rabugenta firmeza.  

Carta a Marina por causa do galego – 6 (e última)

Cara Marina,

Disse-lhe eu, na última carta, que muito nos restava a fazer, tanto na Galiza como em Portugal. Esta é a parte menos festiva da minha carta. Começo por nós.

Aqui no país, entre os linguistas, o interesse pelo galego como idioma anda a roçar o zero absoluto. Nos últimos trinta anos, nenhum autor português produziu qualquer obra de divulgação, ou sequer um artigo, sobre a situação do galego na actualidade. E o único estudo comparativo sobre português e galego actuais é, ainda, o de Maria Helena Mira Mateus, sobre fonologia, de 1984. Quanto ao idioma, é tudo.

Acerca das concepções vigentes em Portugal sobre a problemática do galego, há mais alguma coisa. Temos um opúsculo de Ivo Castro, Galegos e Mouros, de 2002, e um de Clarinda de Azevedo Maia, O galego visto pelos filólogos e linguistas portugueses, do mesmo ano.

Sobre a Galiza e sua relação com Portugal, existem a importante obra do antropólogo António Medeiros, Rio de memórias e de esquecimentos. Nacionalismos e antropologias na Galiza e em Portugal, de 2002, e uma tese de mestrado de José Paulo Raposo de Sousa, Discurso literário e identidade nacional – O caso de Portugal e da Galiza, de 1999.

Dos estudiosos portugueses, os únicos que algum dia afirmaram a identidade de galego e português foram Manuel Rodrigues Lapa († 1989) e Luís Lindley Cintra († 1991). Os outros linguistas, até hoje, sempre consideraram que português e galego – a partir de 1400, o mais tardar – se tornaram idiomas diferentes. Como demonstração, aduzem, contudo, diferenças que, mesmo forçando, mal dariam para identificar ‘dialectos’. Sejamos sucintos: o tema nunca os interessou nem um bocadinho.

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«As mulheres são todas parvas» ou a apoteose do equívoco

Ter graça, cair em graça ou ser engraçado – não é para quem quer, mas sim para quem pode. E nem todos podem. Há tempos corria uma tarde amena e, perante três mulheres (de 22, 30 e 57 anos de idade) que folheavam um tratado de Botânica, julguei oportuno atirar para o ar uma frase irónica e disse com o ar mais sério que me foi possível arranjar: «As mulheres são todas parvas».

Julguei então que o facto de a palavra latina ‘parva’ aparecer com frequência nos nomes científicos das plantas, dos arbustos e das árvores ajudaria a abrir as portas para um sorriso cúmplice e, já agora, em triplicado.

Equívoco total o meu. As duas mulheres mais novas sorriram, mas a mais velha fez beicinho e advertiu de imediato: «São todas parvas se forem como eu. Eu sou parva porque penso mais no outros do que em mim».

A partir daqui estava tudo explicado. A brincadeira só existe se for compartilhada. Até lá, até à sintonia de ideias, é um equívoco prolongado com cada um no seu papel e a puxar para o seu lado. Neste caso, eu estava na ironia e a terceira senhora estava num registo (digamos) sério e olhando apenas ao óbvio.

Um dia o grande escritor Santos Fernando (autor do belíssimo «Os grilos não cantam ao domingo») escreveu que o «humor não passa de uma lágrima entre parêntesis». Pelos vistos a ironia também. Ele tinha todas as razões para escrever esta magoada constatação: eram seus amigos de peito os escritores Luiz Pacheco e Ferro Rodrigues. Eles também sabiam que ter graça, cair em graça ou ser engraçado não é para quem quer.

Kosovo & alii. Pátria ou demagogia?

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Leio José Pacheco Pereira hoje, no Público:

«A maioria da opinião pública e de muita da comunicação social (aqui o PÚBLICO é excepção) permanece indiferente à política externa portuguesa quanto ao Kosovo. O mesmo se poderá dizer da indiferença com que o PS e o PSD tratam esta questão, ainda por cima numa zona onde há tropas portuguesas que foram para lá baseadas num mandato que afirmava que o Kosovo era parte da Sérvia… Quem é que quer saber disso para alguma coisa? Agora o que eu queria saber é que pressão está a fazer o directório europeu, França, Alemanha, Reino Unido, para que países como Portugal reconheçam o Kosovo? Porque estão de certeza a fazê-la e eu estou longe de considerar que o reconhecimento do Kosovo corresponda aos nossos interesses nacionais. Por muito que isso pareça contra-intuitivo em relação à nossa história, não é do interesse nacional qualquer coisa que ajude à fragmentação da Espanha.»

E releio:

Por muito que isso pareça contra-intuitivo em relação à nossa história, não é do interesse nacional qualquer coisa que ajude à fragmentação da Espanha.

Não sei se concordo. Não sei se discordo. O meu entendimento bloqueia aqui.

E, no entanto, eu queria que Portugal existisse, se ainda não o houvesse. E posso crer que Pacheco Pereira, ele próprio, também. Mas não sei. Não sei onde acaba a Pátria e começa a demagogia.

Carta a Marina por causa do galego – 5

Cara Marina,

Escreveu você, na mensagem que, haverá duas semanas, me inspirou esta série: «Fico lixada com essa cena de intregracionismo». E ajuntava: «O galego de Castelao, do Rivas, da Rosalia, é lindo, esquisito, rural, e não quero que seja portunhol». Eu intervim no seu texto, esclarecendo – para o leitor português – que ‘esquisito’ devia ser entendido como ‘refinado’.

Antes de prosseguir a conversa, importará explicar àquele português e meio que nos venha lendo que «cena» é essa do «intregracionismo». Serei breve.

Existe um movimento intelectual galego que aspira a ver o idioma da Galiza reconhecido como pertencendo ao âmbito do que actualmente se conhece por português. Um âmbito que, lembram, já foi o seu. Por isso se denominam reintegracionistas. Trata-se, atenção, dum movimento linguístico e, mais amplamente, cultural – não duma opção política. O reintegracionista galego não se envergonha de ser espanhol, menos ainda o esconde. Vinca sim – e não é pouco – que existe uma parte da Espanha que, escapando culturalmente ao projecto geral espanhol, deve participar, com naturalidade, num projecto doutro âmbito, aquele em que se inserem Portugal e outros países de fala portuguesa.

Neste movimento reintegracionista, damos com um agrupamento de razoável porte e diversificada actuação, a Associaçom Galega da Língua (AGAL), e com bastantes outros, aderentes ou não a ela, com um mais especializado programa. Na sua expressão escrita, utilizam, em maioria, a norma do galego desenvolvida pela Agal (a chamada Norma Agal) construída sobre o padrão português, este em que escrevo, enquanto outros adoptaram o padrão português puro e simples.

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Dominadores do dia

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Falo com os meus alunos da cadeira de «Línguas Regionais Europeias» na crescente pressão do inglês. Conto-lhes que, tal como na Holanda, também na tv portuguesa a seguradora Zurich, como tantas outras firmas, publicita em inglês. Because change happenz.

Lembro-lhes que um meu sucessor, falando a futuros colegas deles, naquela mesma sala de aula, talvez o faça em inglês. Uma tragédia? Não necessariamente. O que a nós hoje parece inconcebível pode ser amanhã óbvio. E recordo-lhes que, nesta mesma universidade, há muito, muito tempo, eu estaria a dar-lhes esta aula (ou uma parecida) em latim. E que, tempos depois, era o francês a dominar, aqui e em muita parte, a ciência e o seu ensino.

E falei-lhes duma fachada, pertinho da faculdade, em que se lê ’T Makelaers Comptoir, «O Escritório de Imobiliário». Alguns, mais ágeis de espírito, ligaram «comptoir» ao actual neerlandês «kantoor» (escritório). Expliquei que «comptoir» era a mesa onde se contava dinheiro. Um aluno ou outro até sabia que o francês «comptoir» derivava do latim «computator».

E, assim, pude expor uma genealogia do latim computator para o francês comptoir, para o inglês counter. E, segunda genealogia, directamente do latim para o inglês computer, para o… neerlandês computer.

O inglês – lembrei-lho – não é senão o actual dominador, depois de o francês e o latim o terem também sido. Isto pode não tornar as coisas menos graves, ou sérias, mas torna-as menos dramáticas. Também o predomínio do inglês terá, um dia, o seu fim. Não é provável que eu venha a saber qual o novo amo. Estes processos são lentos, e o inglês ainda está para lavar e durar.

Mas, quem sabe, um dos meus juvenis estudantes pode, num longínquo dia, ter de dar ali uma aula em… Não, eu desisto de adivinhar.

Só sei, com um arrepio, que, quando, em começos do século XVIII, um reservado grémio votou, numa cidade dos futuros Estados Unidos da América, sobre qual – inglês ou alemão – seria o idioma da nação vindoura, e o inglês ganhou, foi por  um voto de diferença.

Quando ensinar (e gostar) é suspeito

Isto não entra pelos olhos? Pois não, não entra. Daí que possa ajudar ouvi-lo dito por gente com tino. Por exemplo, Luís Campos e Cunha, hoje no Público. Destaque meu.

«É preciso acabar com a autogestão das escolas. A reforma das escolas vem sempre de fora para dentro. Meter na gestão da escola representantes das autarquias e dos pais é certamente uma ideia correcta. Vai nesse sentido o ministério e bem. Iria mesmo mais longe, os professores deveriam participar mas, eventualmente, sem direito a voto nalgumas matérias.

«Mais ainda e muito bem, o ministério defende a existência de um director. É fundamental que as instituições tenham uma cara e não um conselho, em que ninguém é verdadeiramente responsável.

«Com aquelas medidas acabava-se com as balelas propaladas pelos cursos de “ciências da educação” da gestão “democrática” das escolas e da avaliação contínua. São tudo conceitos em contradição com a ideia de Escola, em que quem sabe ensina e quem não sabe deve aprender. E na Escola, professores e alunos devem aprender de tudo, incluindo aprender a decidir, aprender a protestar e aprender a ser responsabilizado.»

Pois. Mas é tão incorrecto defendê-lo, não é? E não haverá maneira de torcer por uma vez o pescoço a essa gente para quem ter coisas para ensinar (e, escândalo, gostar também de fazê-lo) é imensamente suspeito?

Esta coisa parece certa: a máfia «pedagógica» – tão surpreendentemente autoritária, e tão supreendentemente elitista – que antigamente dominava o Ministério, e se ramificou pelas escolas, resiste ainda.