FCQJ - Armando Vara tornou-se o único preso em Portugal a cumprir pena por tráfico de influências. O que é que isto representa para a opinião pública?
MM - Em primeiro lugar, o sinal mais importante: o sinal de confiança na Justiça. Porque durante muito e muito tempo a ideia que existia na sociedade portuguesa era esta: "para a cadeia só vai a arraia-miúda, os poderosos safam-se sempre". Pois bem, Armando Vara é o primeiro exemplo a demonstrar o contrário. Porque ele foi todo-poderoso no Partido Socialista, na banca, em vários sectores, e agora 'tá na cadeia...
FCQJ - E foi mesmo...
MM - Foi, foi poderosíssimo.
MM - Segundo lugar, convém neste momento as pessoas não esquecerem duas outras coisas. Primeira, ele foi tão poderoso, tão poderoso, que fez parte de uma rede que durante vinte anos, ou mais, tentou controlar o Partido Socialista, a banca, a comunicação social, as grandes empresas (tipo a antiga PT) e a Justiça. Isto foi uma rede em que três das figuras cimeiras - isto há mais de vinte anos, começou há mais de vinte anos - são José Sócrates, Armando Vara e Carlos Santos Silva. E, portanto, esta prisão agora é apenas uma ponta do icebergue noutros processos, como a "Operação Marquês" e outros, veremos...
FCQJ - Na qual ele é arguido.
MM - É arguido... Veremos que isto, de facto, é, foi uma rede muito poderosa, e ainda bem que terminou.
MM - Segundo dado, convém também não esquecer. Este homem, Armando Vara, foi o homem todo-poderoso dos dois maiores bancos em Portugal, do banco público, Caixa, e do BCP, privado; onde, de resto, teve actuações desastrosas. Mas é preciso que se diga que ele foi o homem todo-poderoso destes dois bancos não foi apenas pela nomeação do Governo José Sócrates; essa já má, pois ele não tinha manifestamente aptidões de gestor para bancos a este nível. Agora, também o Banco de Portugal. O Banco de Portugal, que teve que dar o seu OK, deu a sua autorização, e isto, de facto, deu prejuízos enormes para o País. Portanto, neste momento, convém que as pessoas nunca esqueçam que uma rede muito poderosa finalmente acabou, e que o Banco de Portugal teve na altura, liderado por Vítor Constâncio, um comportamento, de facto, inqualificável.
Marques Mendes, Conselheiro de Estado escolhido pelo Presidente da República
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Dois minutos e vinte e um segundos. O tempo suficiente para Marques Mendes usar o império mediático do militante nº 1 do PSD para espalhar estas mensagens:
– Na condenação de Armando Vara não importa saber se ele é ou não culpado. Importa é celebrar a prisão de um “poderoso”, o primeiro que finalmente se conseguiu apanhar para mostrar ao povo.
– Na condenação de Armando Vara não importa perder tempo com a tipologia do crime invocado, tráfico de influências. A verdadeira razão pela qual a Justiça prendeu Vara relaciona-se com a sua pertença a uma “rede”.
– A “rede” a que pertence Vara tinha um trio dirigente: Sócrates, Vara e Carlos Santos Silva. Esta “rede” tentou controlar “o Partido Socialista, a banca, a comunicação social, as grandes empresas (tipo a antiga PT) e a Justiça”. Ou seja, Carlos Santos Silva tentou controlar “o Partido Socialista, a banca, a comunicação social, as grandes empresas (tipo a antiga PT) e a Justiça”. A posteridade ganhou esta maravilhosa acusação.
– A “rede” começou a operar com a protecção e cumplicidade de Guterres, Vítor Constâncio e, claro, António Costa. Mas também Sampaio, Alegre e Almeida Santos, entre dezenas de dirigentes com passagem pelo Rato, centenas de quadros partidários do PS e milhares de militantes socialistas. Tudo gente que viu o que Marques Mendes viu, e até melhor porque de mais perto e com as mãos metidas na massa.
– A “Operação Marquês” vai expor os crimes da “rede”, de que o primeiro a atingir Vara com 5 anos de choça é uma migalha comparado com o que se vai poder usar para prender os cabecilhas da “rede” e seus cúmplices. Outros processos judiciais, na forja, continuarão pelos anos seguintes, quiçá décadas, a expor os feitos criminosos da “rede” e a acumular condenados e penas de prisão.
– Se a “Operação Marquês” não for esse bacanal de condenações da “rede”, então saberemos que o juiz Ivo Rosa safou os maiores criminosos da História de Portugal por ter sido comprado ou já pertencer à “rede” desde o início.
Marques Mendes usa por três vezes um adjectivo que, nessa repetição, ganha o estatuto de substantivo. Vara, o “todo-poderoso” na CGD e BCP, “poderosíssimo”, transforma-se numa entidade com poderes divinos. No caso, diabólicos. Tinha mais poder do que os presidentes desses bancos e restantes colegas administradores e gestores todos juntos, a que acresce o Banco de Portugal, os partidos com presença na Assembleia da República, a comunicação social que resistia à asfixia do Carlos Santos Silva e qualquer instância policial e da Justiça nacionais, garante o conselheiro de Estado, ex-presidente do PSD e ministro favorito no Cavaquistão. Ao mesmo tempo, jura, Vara era absolutamente incompetente para ocupar os cargos de administração nesses bancos, por não ter capacidades mentais para tal. Portanto, era o rei da manipulação de tudo e de todos, por um lado, e é um tosco vindo lá de Vinhais que nem para vender castanhas assadas no Rossio teria cabeça, pelo outro. Faz isto algum sentido? A eficácia da patranha depende, precisamente, de não poder fazer qualquer sentido. O discurso não se dirige a uma audiência que esteja a receber racional e criticamente o sofisma. O que se pretende é dar a diferentes públicos diferentes âncoras emocionas. Para uns, funciona a alucinada diabolização, descrever Vara como o monstro enorme que devemos perseguir sem piedade, atrás do qual se podem esconder nomes e actos de um grupo que recolhe a lealdade e protecção de Mendes. Para outros, funciona o desprezo, achincalho e ultraje do alvo, satisfazendo a pulsão do ódio. Num mesmo público as duas deturpações grotescas podem conviver, pois o sujeito dá-lhes uma organização contextual onde se aceitam sem carência de prova porque vale tudo para destruir o inimigo. É a técnica retórica de Trump; sendo que Trump não a inventou, tem milhares de anos.
Em menos de três minutos, uma das personalidades públicas com mais poder em Portugal vem festejar a prisão de um adversário político por razões políticas, declara que o PS é um partido criminoso e ainda tem tempo para ameaçar um juiz. O despacho, entusiasmo e admirável profissionalismo com que faz de spin doctor ao serviço da direita decadente, a direita do poder pelo poder, não é um acaso, uma excepção nem uma irrelevância. O silêncio na imprensa e no PS que se segue a estes exercícios é a manifestação de um poder fáctico. Marques Mendes permite-se tourear os pategos, e cortar-lhes as orelhas, porque este conselheiro de Estado foi escolhido por um vero todo-poderoso para o papel. Um todo-poderoso que não dorme.