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A cidadã que concorreu para ocupar a chefia do Estado, ser a mais alta magistrada da Nação e garantir o regular funcionamento das instituições, a pessoa disposta a ir jurar pela sua honra tudo fazer para que a Constituição da República Portuguesa se cumpra, é o mesmo organismo pensante que – menos de um mês depois – espalha no espaço público a ideia de existir uma espantosa e mirabolante conspiração que envolve o actual Presidente da República, o Governo, a Assembleia da República e todos os magistrados, unidos num pacto secreto para que um grupo de altos criminosos (sem qualquer condenação, alguns sem qualquer acusação ou sequer mero estatuto de arguidos) consiga fugir à Lei através da figura da “prescrição”. Ana Gomes descobriu esta “realidade” não se sabe como, talvez em sonhos ou nas vísceras de um pássaro, e isso chega-lhe (pun intended) para despachar exuberantes e sistemáticas denúncias. É que Ana Gomes não mente, senhora seríssima e incorruptível como ela é, pelo que podemos ter a certeza absoluta de que nos está a contar a “verdade”. Ela olha para o regime, contempla a sociedade e, à excepção de Rui Pinto, só consegue identificar bandidos, ladrões e gatunos.
Como sempre com os caluniadores profissionais, o caso subjectivo é o que menos interessa, até merece respeito antropológico. Se é por serem videirinhos ou maluquinhos que vão por essa via deturpadora e ignóbil é irrelevante para o que mais importa: responsabilizar e criticar quem lhes paga e/ou quem os utiliza. Ver o Correio da Manhã ou o Observador pagar a caluniadores profissionais não justifica o gasto de uma caloria com o assunto, está de acordo com a lógica e a expectativa. Mas se for o Público ou o Expresso, ainda mais grave se for a RTP pela sua missão pública e dinheiros estatais, então devemos expressar uma saudável reacção de indignação pela intolerável antinomia com o que essas entidades alegam representar estatutariamente, o infelizmente risível conceito de “imprensa de referência”, e a prática sectária, sensacionalista, caluniadora e irracionalizante a que se dedicam como negócio, como agenda política, ou com ambos os propósitos.
O que nos leva para Pedro Nuno Santos. Este valente, entretanto caído na armadilha de acreditar na sua própria marca de líder viking para um futuro PS “de esquerda”, não quis perder a oportunidade de aproveitar o desastre que foi a candidatura presidencial de Ana Gomes: Das presidenciais de ontem às lições para o futuro. O “Dirigente do PS. Ministro das Infra-estruturas e da Habitação” utiliza o resultado das presidenciais como caixote de madeira para se elevar e voltar a aparecer fantasiado de candidato a secretário-geral do PS assim que Costa deixar o lugar. A sua finalidade é meritoriamente neutra; ou seja, é lá com ele e com os militantes e simpatizantes do partido. O berbicacho está nos meios de que se serve, os quais passam por esta absurda e nefanda declaração:
“Deixámos a tarefa de defesa dos valores do socialismo democrático a Ana Gomes, uma distinta militante do PS que, sem o apoio da nossa organização, corajosamente defendeu quase sozinha a matriz do nosso ideário.“
Ora, custa a perceber por onde começar a comentar a puta da frase. Sim, Ana Gomes é uma “distinta militante do PS”, para nosso azar, pois é alguém que, assim que viu haver mercado para tal, geriu a sua carreira partidária fazendo do “combate à corrupção” uma bandeira publicitária que nunca, mas nunca de nunca, gerou qualquer resultado positivo que dê para exibir. Já insinuações, difamações e calúnias há alguidares e paletes delas com a sua assinatura. O que também nunca de nunca alguém ouviu de Ana Gomes foi a defesa “dos valores do socialismo democrático” para além de uma cartilha básica circunscrita ao marketing de ocasião. Isto porque a figura não tem nem tempo, nem energia, nem vocação para se dedicar a esse labor quando é tão mais fácil aparecer na pantalha a urrar irada contra os “corruptos”. Tal currículo faz dos “valores do socialismo democrático” um universo paralelo sem ponto de contacto com o seu. No seu, não há presunção de inocência, processo justo, direitos dos cidadãos, dos arguidos, dos acusados e, pelo balanço da retórica acima pespegada, ainda menos dos condenados. É um universo onde a sua paranóide ou sórdida imaginação espezinha e cospe na Constituição e nos valores nela inscritos em ordem a que se concretize em leis o antídoto contra todas as ditaduras presentes e futuras, a vera matriz de um regime liberal – aquele onde é preferível deixar escapar um criminoso a condenar um inocente. Esta assimetria é uma escolha civilizacional contra os tribalismos e os linchamentos. Contra os tiranos. Contra os pulhas.
Um muito provável futuro primeiro-ministro às costas do PS teve o topete de louvar uma personalidade tóxica e irresponsável como Ana Gomes à custa do “ideário” que reclama para o seu partido. Trata-se de uma aberração ideológica e axiológica, a qual se entende melhor donde vem quando se constata que no seu texto não aparece em parágrafo nenhum a expressão “Estado de direito democrático”. E é esse esquecimento, ou talvez intencional apagamento, que lhe permite mentir a respeito do papel histórico do PS no sistema partidário. A forma como Pedro Nuno Santos descreve o centro político, reduzindo-o à pulsão do poder pelo poder, é mais do que ignorante, é perversa. Pura e simplesmente, não é possível conceptualizar um espectro político definido pelos extremos “esquerda” e “direita” sem, por inerência geométrica, igualmente estabelecer um centro. Ser esse centro foi a opção de Mário Soares, a qual marcou o destino do PS e da democracia portuguesa. Com isto não se impede seja quem for de se definir com sendo de esquerda ou direita, inclusive dos seus extremos. O que está em causa é outra coisa, coisa fundamental para qualquer comunidade: a governação ser, pela própria exigência constitucional que a molda, um exercício que se constitui – ou então se destitui, aqui sem meio termo – como centro político gerador de polaridades e extremos.
O ideário principal do PS, ainda antes ou acima de ser definido pelo posicionamento de esquerda (seja lá o que isso queira dizer a cada liderança, a cada conjuntura), é o de ser um partido da governação; que o mesmo é dizer “ser um bastião do regime na defesa da Constituição e do bem comum.” O ideário do PS, portanto e por tanto, não é, não foi, e não poderá ser representado por quem vai para um debate presidencial sugerir, en passant, que o seu adversário, por acaso também Presidente da República, defende ladrões ou, quiçá, andou mesmo a roubar. Se o Pedro Nuno Santos se revelar apreciador desse tipo de polvo à Ana Gomes, um prato que igualmente o trata como cúmplice do “#branqueamento”, a congestão das suas ambições políticas é certa.