Poemas: Marta Furtado (jovem poetisa natural da Ribeira Grande, publicação póstuma) e R. Tagore;
Título e outras citações: Armindo Trevisan (teólogo brasileiro);
O texto restante é meu.
“Num campo de Nada
os olhos minúsculos de uma besta
enredada no escuro
tremem de medo dentro do corpo
enorme colossa.l”
Um campo de nada que poderia ser de tudo. O vaso vazio é mais fácil de encher se for pequeno, mas se a alma humana é grande, imensa, nada a saciará nunca. Como um
“Minotauro embevecido,
(que) consigo
ao espelho, no dia em que se viu
tornou-se frágil narciso
e perdeu o sentido.”
O espelho, a luz-sombra do eu inquieto a que só a perfeição basta. Mas não pode partir-se o espelho. Nem obrigar o espírito às limitações do reflexo. Talvez num qualquer Nirvana. Talvez Rabindranath, o sublime, capaz de o sentir quando disse
“Mesmo que eu tivesse o céu
com todas as suas estrelas
e a terra com os seus tesouros sem fim,
eu pediria mais.
Se ela fosse minha, porém,
qualquer cantinho neste mundo me bastaria.”
A poesia é uma das formas primordiais do Belo. A comunicação por excelência das ideias imperecíveis. O próprio Cristo a terá usado, seguindo a tradição do seu povo habituado a guardar a sabedoria onde não poderia perder-se: na memória colectiva.
“Existe nos Evangelhos uma dimensão poética essencial”
mas o próprio
“Jesus não encontrou uma página em branco que devesse ser inaugurada; a página já estava escrita.”
O que é preciso é mudar as formas, se necessário acrisolá-las até, para as adaptar às exigências de quem ouve, ainda que sejam apenas um solilóquio. Ainda que, se fossem cores, tivessem de ser feitas de todas as cores para conterem todas as ideias. Porque “o poeta, por definição, é alguém que deixa em aberto suas palavras, fugindo às definições.”
O poeta é alguém que é maior do que a sua própria vida, como se não coubesse nela e tivesse de criar um espaço de poesia que acolhesse a sua liberdade condicionada. Um pequeno mar onde possam desaguar os seus sentimentos, porque “só a poesia resguarda aquela área em que o sentido pode ficar /…/ fecundo, engendrando novos sentidos.”
Muitas vezes, quase sempre mesmo, a inquietação que aflige o poeta não é a sua própria, mas a dos outros.
“O suor dos escravos
ou a seiva dos algodoeiros
entranhados na Terra?”
Esta é uma forma excelsa de sabedoria: a consciência de que o mundo somos nós todos, de que não há lugares de privilégio previamente reservados.
“É a primeira vez que venho ao mundo
daí que não saiba nem sinta absolutamente nada.”
Mas a forma suprema da sabedoria é o amor. Que não se aprende, faz parte da vida. Quem o nega não renuncia aos outros, renuncia a si mesmo.
“A Humanidade
ou está numa mata de ouro
ou num matadouro
conforme convém à loucura.”
Para isto é preciso um corpo com todos os seus sentidos, pois estes é que são as portas da alma.
“Que farei eu só com a minha alma?”
Estes poemas da Marta, como os de Michel Quoist, são para rezar. Por isso, contrariando a lógica, mais que a resposta dada à pergunta feita
“Nada “
pode dizer-se, sem receio de errar: Tudo.
daniel, gostei do exercício, que necessita um tempo de leitura sem pressas, pela articulação. quase vi o professor intercalar as suas deixas com citações gizadas no quadro.
é um encadeado bonito, Daniel, bom para meditar
Este é dos tais textos que “deixa em aberto suas palavras, fugindo às definições”.
Li-o já várias vezes e acrescento-lhe sempre novos sentidos, sem que chegue a descortinar qual é o o essencial.Sei que a alma se liberta do pó e da conspurcada teia do quotidiano trivial para roçar a essência do belo, da poesia,da humanidade luminosa sem vencedores ou vencidos.
A gente caminha perdida num texto do qual parece não se entender NADA porque contém TUDO.
Será que entendi?
Ao belo par de amigas e ao amigo Z, agradeço a tentativa de chegarem ao interior do texto. Sei que lhe falta a referência às circunstancias em que, e por que, foi escrito, além da própria apresentação gráfica orignal, que fazia dele uma espécie de mosaicos sem sequência imediata entre si. Pode ler-se isoladamente cada passagem sem que se lhe perca o sentido.
Obriguei-vos a um exercício de boa vontade? Talvez. Sei que a Marta vo-lo agradeceria.
Daniel,
Em minha experiência, o problema com estes exercícios, profundas interpretações de profundas declaraçãoes sobre o amor, a alma, a vida e o espaço extra-físico e espiritual que os poetas necessitam para dar vazão a sentimentos, é que, frequentemente, o tempo foge sem darmos por isso, com o resultado de que quando acabamos de dar os últimos retoques com a ajuda de releituras do Rabindranath e doutras vacas sagradas da poesia internacional, ficamos com uma grande vontade de fazer chichi.
Apertos císticos semelhantes também sucedem quando, por exemplo, fazemos esforços mentais para descobrirmos as influências pouco palpáveis do Estado de Direito secular do Valupi no preço do carapau na lota de Sesimbra, em dias de temporal. Tem sucedido comigo, não raras vezes com consequências extra-húmidas no pano que me serve de cueca. Não me salva desabotoar a braguilha logo que apressado começo a galgar as escadas em direcção à casa de banho. Nunca mais tenho emenda.
Acho que a Lia tem razão, temos que andar com uma lupa a apanhar as tuas ideias e as dos teus cúmplices. Dificuldade de palavras cruzadas. Creio que tudo ficaria mais giro se primeiro nos mostrasses os seus bordados e depois desenvolvesses a partir daí.
O amor não se aprende, dizes tu, truisticamente. Mas repara como ele tem tendência a não ser aprendido por gente podre de rica, políticos corruptos, almas pseudo-iluminadas e outros gajos com intenções inconfessáveis, alguns poetas de nome cheios de vaidade – esta a baixa-virtude que não deves esquecer quando passas julgamento e apologia. E repara no grande número de vates famosos que recusaram o “belo” monte de coroas suecas que os sagraram para sempre como pessoas “maiores que a vida”..
O poeta é, antes do mais – como todo e qualquer participante da grande Comédia Humana de altos e baixos – uma pessoa singular em excursão pelos espaços habitáveis. Pessoa que se esconde, essencialmente, sob roupa; roupa na imaterialidade da mente e na materialidade do corpo.Querer que o portador da triste e profunda mensagem poética seja mais que simples envólucro neste espaço é promovê-lo à condição de bicho com poderes estranhos ao desalcance da condição humana.. Sem exagero, se abstrairmos as vestimentas que atraiem as nossas curiosidades deseducadas, poderá dizer-se que poetas e patetas são exactamente iguais na sua invisibilidade. Cosmicamente nús são indiferenciáveis.
Tens quinze segundos para compreender isso.
Crótalo
Demorei mais de quinze segundos, muito mais, a perceber o que querias dizer. Aliás, ainda estou demorando.
Desculpa que não te dê os bordados que pedes. Sei que não devo obrigar os meus pacientes leitores a coisas do género, mas que tal a gente vingar-se de vez em quando da nebulosidade voluntária de alguns comentários?
Vai um abraço?
Daniel
CRÓTALO, estás em forma. É um gosto.
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Daniel, que podes explicar da frase “Mas a forma suprema da sabedoria é o amor.”?
É uma frase complexa, e de grande responsabilidade. Daí, pedir-te ajuda.
Valupi
Não acreditas em frases que se escrevem para deixar a interpretação livre a quem as lê? Esta é uma delas, mas vou dizer-te como a interpretaria eu mesmo se mo pedissem.
Diz-se que ninguém ama o que não conhece. Esta verdade é ierrefutável, penso. Ora aqui trata-se de chegar ao conhecimento pelo amor, ou seja, o amor cria identidade entre o amador e a coisa amada. E sentir o objecto do amor é conhecê-lo, e o conhecimento é sabedoria.
Serviu?
Daniel, todas as frases, quer se queira ou não, são abandonadas à interpretação livre de quem as lê (e até de quem as escreve… porque também as lê!). É por isso que, ao longo da História, vimos tanta maldade por parte de alguns que não aceitaram interpretações diferentes das suas para as mesmas frases e palavras.
Quanto ao que explicas, não (me) ajudas. Começas, e terminas, por identificar “sabedoria” com “conhecimento”, o que daria água pela barba aos fiéis seguidores da tradição sapiencial. Depois, colocas um Evereste no meio da fala, a noção de “identidade”. Sobre ela, nem dois mil anos de discussão chegariam para apaziguar as ambiguidades e escarpas escorregadias que tal conceito convoca. Por fim, avanças impante para a afirmação de que o “conhecimento” do “objecto” do “amor” é consequência da “sensação”.
Duvido que venhas a discutir as implicações que apenas afloro de forma sumariada, mas não poderás negar que os fundamentos do que se considera religioso, filosófico e poético no Ocidente remetem para o modo como se pensaram, e recriaram, estas questões.
O texto da jovem poetisa está em livro? Ou circulou apenas em circuito da Ilha Verde? Gostaria de saber. Obrigado.
“Por fim, avanças impante para a afirmação de que o “conhecimento” do “objecto” do “amor” é consequência da “sensação”. ”
Valupi, como tiraste esta conclusão? Explico tudo o que quiseres se me explicares a falta de sentido deste famoso verso “Transforma-se o amador na cousa amada”. Raios, se cada frase que se escreve tivesse de ser feita em fanicos pela exigência da claridade imediata, não valeria a pena escrever para além do que só tem interpretação literal.
(Pensando melhor, quando tiver tempo explicar-te-ei o que pedes. Do meu ponto de vista, é óbvio.)
JCF
O livro teve uma tiragem reduzida, e destinou-se apenas a familiares e amigos, não tendo sido posto à venda.
Daniel, foste tu que escreveste o passo:
“E sentir o objecto do amor é conhecê-lo, e o conhecimento é sabedoria.”
Quererás, então, que te explique o que escreves? Esta tua frase, na sua sintaxe, não se me afigura ambígua. Nadinha.
Quanto a “Transforma-se o amador na cousa amada”, terei todo o gosto em apresentar a minha interpretação. Preciso, porém, que contextualizes o repto: é literário?; filosófico?; psicológico?; subjectivo?; outro? Venham daí as tuas regras do jogo.
Encontro muito interesse no erro que elaboras por motivos emocionais. Isto:
“Raios, se cada frase que se escreve tivesse de ser feita em fanicos pela exigência da claridade imediata, não valeria a pena escrever para além do que só tem interpretação literal.”
Isto é o sintoma de um mal-estar que vou deixar para tua secreta análise.
Valupi, se és capaz de explicar o verso “Transforma-se o amador na cousa amada”, no seu sentido literário, filosófico, psicológico, subjectivo ou outro, por que razão não entendes que sentir é uma forma de conhecer e conhecer é uma forma de saber? Só isto, meu caro. Nem mais nem menos.
Não preciso de análises secretas para curar um mal-estar que não percebo como te foi possível imaginar. Ou eu deveria ter acrescentado um desses sinais de bom humor tão habituais nas mensagens por esta via?
Lembro-me que no Banquete o belo Alcibíades dizia que Socrates era um maroto, porque sendo suposto ser o amante (erastes) afinal ocupava o lugar do amado
Daniel, foste tu que viste “frases feitas em fanicos”, e és tu que vês “exigência de claridade imediata”, e serás ainda tu a ver a inutilidade de “escrever para além do que só tem interpretação literal”, dadas as anteriores condições (as quais, por sua vez, são da tua exclusiva lavra). Tudo isto porque eu te pedi uma explicação sobre uma frase. Creio que a inusitada reacção só se explica por um qualquer mal-estar, caso contrário já teríamos avançado no diálogo. Mas posso estar enganado, pois claro.
Verdade, porém, que nada és obrigado a explicar. Eu é que fiquei muito interessado em conhecer o que estaria por dentro daquela frase. Ao te interrogar, revelava o meu interesse pela temática e pelo autor. É simples, e não é mais do que é.
O amador que se transforma na cousa amada será um fingidor. Completamente.
Mas Valupi eu também acho que o amor é a forma mais perfeita da sabedoria. Quando me dá um daqueles estados de compaixão generalizada e prolongada ando para aí derretido com tudo, com um sorrisinho interior quase esculpido, e tudo faz sentido na lógica do dom, recíproco e universal. Pena é que não dá sempre, por causa desta coisa da impermanência
z, aquilo que descreves, e a que chamas “amor”, o tal “estado de compaixão generalizada”, é um egoísmo.
e então qual é a tua enunciação?
Estás a perguntar-me pela minha definição do amor? Se o teu interesse é por uma resposta avulsa, cá vai: é o bem querer.
sim, acho que para síntese, ou essência, mesmo avulsa, está bem, mas radica sempre num ego: és tu o sujeito da enunciação, és tu que bem queres a outrem, singular ou plural
não vejo inconveniente que no amor se articulem egoísmos, desde que se transcendam na mistura aberta que daí resulta; nem vejo aliás como se pode sequer escapar a isso, embora nesse estado de compaixão generalizada de que falava a fusão com o ar que se respira é tal que o ego fica muito sublimado, agradavelmente perdido e encontrado
Tens razão, mas estás, agora, a entender egoísmo como manifestação do ego. E ego como sinónimo de consciência. Não foram esses os meus significados e implicações.
Para mim, o egoísmo de uma contemplação sentimental da realidade resulta de receber o nome de amor. Sem dúvida, poderá ser alguma forma de “amor”, mas ao ir por aí, pela absoluta relativização do conceito, perde-se o fio à meada. Para mim não é amor, o tal Amor, porque só implica uma pessoa. Onde estão os outros? É para eles que eu guardo o amor, o tal Amor.
então Valupi, mas é nesse ‘outros’ – indistinto e generalizado – que se foca a compaixão
seja como fôr não refuto algum egoísmo nas propensões e actos de qualquer um, comigo à cabeça, como manifestação do ego, pois se é daí que se forma a palavra
mas também confesso que hoje estou com problemas de iluminação,
Certo, mas a compaixão é – e etimologicamente – a experiência do sofrimento de outrem. Nesse sentido, ela pede uma acção, um querer que esse sofrimento acabe, ou diminua, se altere. Daí o bem querer como realização do amor (como exemplo a propósito da compaixão, mas não esgotando as possibilidades amorosas, obviamente).
eu acho que lá no fundo pensamos bem próximo, compincha, não seremos tal e qual e ainda bem, assim acrescentamo-nos algo. Creio que com_paixão é a experiência do sofrimento de outrem, sentida em nós, por ressonância, mesmo que algo adulterada, como ponto de partida; porque, como ponto de chegada, gera uma espécie de ternura ou carinho geral, pela fragilidade e robustez da condição humana, pela grandeza e pequenez dos nossos gestos, medos e coragem
eu gosto quando ando assim por aí, sinto-me forte e vivo, sem sequer pensar nisso
talvez seja um egoísmo volátil, porque não?
Mas, pois. Somos feitos desses momentos e experiências. Chamar-lhes egoístas, como eu fiz, não lhes retira valor – devia ir sem justificar. Até porque não passa da minha subjectiva abstracção, e neste preciso contexto. Mais importante é a alegria que qualquer momento oferece.