Afinal o que tem o Ocidente de bom? “Nada”, diriam os Monty Python, a não ser democracia, ciclos eleitorais pacíficos, liberdade de expressão e de associação, liberdade religiosa, incluindo liberdade de não professar qualquer religião, separação de Igreja e Estado, liberdade de mercado, acesso universal à educação, a serviços de saúde maioritariamente gratuitos, respeito pelos direitos das minorias, independência da Justiça, direitos laborais, liberdade de imprensa, etc. “Nada”, portanto. Resta-nos, pobres de nós, gozar a sorte do nada de bom que temos, mas que levou tempo, dor e muito trabalho a conseguir. Por muito sob stress que estas características da nossa sociedade possam estar permanentemente (candidatos a ditadores e arruaceiros haverá sempre), duvido que a esmagadora maioria das pessoas as queiram deitar pelo cano e prefiram a mordaça das autocracias.
Pois bem, o Miguel Sousa Tavares (in Estátua de Sal) que também as prefere, ultimamente anda desorientado com o sucedido para lá do Dniestre. Declarando ter sempre topado perfeitamente o Putin, acha por bem troçar do facto de muitos dirigentes ocidentais terem expressado no passado o desejo e a esperança de que a Rússia se “ocidentalizasse”, mais concretamente, penso eu, que deixasse a violência e as práticas imperialistas e permitisse o jogo democrático a nível interno. E depois terem-se sentido enganados. Haverá algo de errado nisto? A Rússia já não fez (e de certo modo ainda faz) parte do universo cultural europeu? Escritores, compositores, artistas, filósofos, cientistas dos últimos séculos eram tão europeus como quaisquer outros. As respectivas cortes interligavam-se. Alturas houve em que a violência reinava em todos os lados e as monarquias imperavam. É certo que, após a revolução russa, os caminhos divergiram (por cá, no sentido das democracias) e que o domínio soviético, que levou ainda mais longe os requintes de malvadez dos czares, a par de um soturno e radical nivelamento social, deixou marcas profundas naquela sociedade. E hábitos de alheamento político que perduram. Mas a Rússia não deixou de ser uma parte da Europa! Isso, sim, é uma fatalidade.
Diz ele:
«Putin sabe que a democracia e as liberdades, tal como as conhecemos no Ocidente, são coisas alheias aos russos: não lhes fazem falta. Não obstante o heroísmo de resistentes como Navalny, o poder autocrático de Putin não é uma forma de governo estranha aos russos. »
«…desde tempos imemoriais, há três coisas em que assenta o poder na Rússia: a noção de pátria, a religião e o autocrata. Durante a monarquia, a noção de pátria estava na “Mãe Rússia”, o território sagrado pelo qual cada russo daria a vida contra as ameaças dos inimigos; a religião era a Santa Igreja Ortodoxa; e o autocrata era o Czar, investido de poder divino. A partir de 1917, com a Revolução e a paz de Brest-Litovsk, Lenine cedeu território em troca de ganhar os soldados massacrados do Czar para a Revolução, substituiu a religião da Igreja pela do comunismo e a autocracia do Imperador pela do Partido.»
Isto é mau? Não muito, para o Miguel.
Mas, curiosamente, o termo “ocidentalizar”, significa para ele deixar o Ocidente controlar as grandes empresas russas. E por isso dá vivas a Putin por ter revertido essa afronta.
«A diferença entre os seus oligarcas e os do seu antecessor é que os seus passaram a ser controlados a partir do Kremlin e não do Texas. Depois, daí em diante, foi uma cascata: ele passou a “enganá-los” a todos. Ao contrário do esperado, não se deixou “ocidentalizar”.»
Não é bem isso, Miguel, mas enfim. As democracias liberais também estão abertas a capitais estrangeiros. Além disso, é mais justo fazer comércio em igualdade de circunstâncias (pensar nas nossas relações com a China, um problema).
«A barbárie dos russos e dos eslavos, em geral, é lendária. Todavia, a história das décadas da Guerra Fria está carregada de episódios semelhantes do nosso lado, uns conhecidos, outros não, e dificilmente se poderá sustentar que, em matéria de métodos de actuação, de invasões, de golpes de Estado, de massacres, de Guantánamos, nós fomos predominantemente os bons e eles os maus. A História é uma lavandaria onde todos entram sujos e só sai limpo o último a fechar a porta.»
«Claro que, para quem teve a sorte de nascer e ser educado com os valores daquilo a que chamamos “democracias liberais”, só por masoquismo experimental ou obstinação ideológica trocaríamos o nosso modo de vida pelo do país de Vladimir Putin. E, se pudéssemos, decretaríamos o mesmo, a liberdade, para todos os povos e nações do mundo. A liberdade e também a prosperidade. E também a paz — também a paz. »
Os nós dessa cabeça, ó Miguel.
Os últimos parágrafos, sobretudo, são os que revelam o maior transtorno. O Putin é sanguinário, é ex-KGB, é isto e aquilo, mas devemos querer é a paz e deixá-los lá como são. Os russos.
Miguel, não há pachorra para as pazadas de História que atiras para cima dos ocidentais só para escamotear e desculpar o simples facto de ter havido uma invasão violenta de um país soberano, aqui tão perto de nós e tão semelhante a nós, com aspirações a ser um de nós, sem incubadoras de terroristas que gritam “morte ao ocidente” enquanto brandem o Corão, apenas com intuitos imperialistas, e isto no século XXI.
Os ucranianos nesta história do Miguel são completamente irrelevantes. Se calhar, acha que são nazis e merecem perder a sua terra e morrer.