Todos os artigos de danieloliveira
Liberal por procuração
Pacheco Pereira acha mal que os homossexuais queiram casar porque querer casar é muito conservador. Não, Pacheco Pereira não é contra o casamento. Não é isso. Pacheco Pereira limita-se a encomendar aos homossexuais essa tarefa. Já que estão de fora destas nossas regras, bem podiam ser muito radicais por nós. Só que os homossexuais têm todo o direito a ser conservadores nas escolhas que fazem para a sua vida e nem eu nem Pacheco Pereira temos nada a ver com isso. Ser liberal é aceitar isso mesmo e não a andar a pregar aos outros o que devem querer para si. Para mim é simples: querem casar, casam. Porque é que querem casar? Não tenho nada a ver com isso.
Eles não podem ter filhos. Como é que os deixaram casar?
Quando batemos em toda a gente acabamos um dia por bater em nós próprios
«As pessoas que escrevem nos blogues, como muitas das que escrevem nos jornais, como as que falam na televisão, dão aquilo que elas julgam que serão opiniões. Políticos falhados, jornalistas frustrados e tanta outra gente completamente iletrada, que não conhece os assuntos, e podiam dizer aquilo, ou o contrário, que era igual ao litro. Mesmo a maior parte dos cronistas são ignorantes, e o que escrevem são crónicas desnecessárias ou desabafos, aquilo a que chamo jornalismo da indignação. Mas faz muito sucesso, porque como as indignações são básicas, há muita gente a partilhá-las, e a ficar feliz por o senhor X, que até escreve no jornal, pensar como elas.»
Esta indignação é de Vasco Pulido Valente, no Notícias Magazine, em Janeiro de 2004. Vasco Pulido Valente é agora, dois anos depois, mais um dos «políticos falhados» que escrevem nos blogues.
Evil Gates?
Antes que os mantras que compõem a hagiografia de S. Bill Gates sejam repetidos as vezes suficientes para que o homem desate a levitar, há que relembrar pelo menos uma verdade histórica: ele não inventou o MS DOS. Apenas o comprou aos incautos colegas da Seattle Computer Products, que longe estavam de imaginar que ele já revendera o sistema à IBM. O único golpe de génio neste episódio foi mesmo a ideia de pedir royalties, em vez de uma verba fixa, ao gigante do hardware. Outros mitos desmontados andam por aqui.
As caras que fazemos
Uma das descobertas que fiz nas minhas primeiras experiências com câmaras fotográficas teve a ver com as capacidades expressivas do rosto humano. Melhor: com a forma descontínua como as nossas expressões aquiescem à vontade que as comanda. Ao passarmos de uma máscara para outra, não escolhemos a rota mais simples e directa: deixamos que os músculos que definem expressões e afivelam estados de espírito sigam os seus próprios caprichos, libertamo-los por fracções de segundo da sua missão.
É assim que por vezes o olhar quase instantâneo dos obturadores nos surpreende “a fazer caretas”: numa ocasião em que nos sabíamos risonhos, descobrimo-nos quase chorosos; onde brincávamos com uma criança, brilha inexplicavelmente um ódio vindo de parte incerta. É como se o alfabeto calculado de rictos, sorrisos e esgares que usamos a cada instante carregasse consigo um subtexto oculto, um fluxo de mensagens encriptadas que só a suspensão do tempo consegue desvelar. Nesta vida secreta dos nossos rostos, agita-se um conteúdo latente que nos assombra com aparições sem aviso.
Imagino que mesmo longe de películas sensíveis esta presença subterrânea se sirva da minha cara como ecrã de projecção, onde materializa fantasmas de cenho carregado, espasmódico ou zombeteiro. Eles parecem-se comigo, mas apenas porque se servem do meu rosto para emergir no nosso mundo.
Assim se estragam muitos retratos, aliás. Só mesmo em campos onde é quase irrelevante a expressão do modelo, como na pornografia manhosa, é que vemos estas imagens reveladoras mas comercialmente imperfeitas chegar à luz do mercado.
Com um leitor de DVDs, a experiência é simples: basta imobilizar qualquer grande plano de um actor para que se revelem de quando em vez estes esquivos habitantes do interim. Com uma excepção bem clara: os filmes de animação digital. Os rostos modelados em 3D passam de uma expressão para outra sem desvios, sempre lógicos e alérgicos a desperdícios. Ao que parece, os computadores ainda não têm alma que chegue para engendrar espectros.
Hamas que vêm por bem
O governo de Deus
Pacheco Pereira na sua coterie
No Acidental, a virgem ultrajada é apanhada ao lado de um pretendente com as calças na mão. Grande PPM.
A minha vida vem no Google Earth
Boas notícias para cibermeliantes e criminosos em geral
A Microsoft vai tratar do hardware e do software necessários à Polícia Judiciária, na sua incansável luta contra o cibercrime. Como bónus, ainda vem incluída a “assistência técnica”. Ficam assim assegurados, com a assinatura deste protocolo, quatro anos de relativo sossego para os criminosos nacionais. E anuncia-se a expansão do vocabulário técnico dos agentes da Judiciária: em breve este vai incluir novidades como crash, freeze, bug, virus, trojan, system error. Que outros milagres nos trará Santo Bill Gates, nesta sua visita?
O ex-candidato e os seus temas
Vasco Pulido Valente, o mais recente espectro famoso a assombrar a blogosfera, dedica-se a embirrar um pouco com Manuel Alegre. Ou a propósito da sua baixa meio estranha, ou dos “temas” que parecem tirar o sono aos pensadores de serviço na sua campanha. Estes, se bem percebi a coisa, continuam em busca do seu santo graal: o que irão fazer com um milhão de votos? O bom senso responderia “nada”, uma vez que ninguém deu a tal pandilha voto algum; houve quem votasse num dado candidato naquelas eleições e pronto. Mas estou capaz de apostar que o apelo do palco vai mesmo ser forte demais. A alegre tragicomédia ainda vai dar pano para muita gargalhada.
Por mim, tenho alguma pena de não ver o bardo em Belém. Era garantia de uma coabitação pacífica e sem história: desde que Sócrates cumprisse a sua quota semestral de inaugurações de estátuas do Presidente-Poeta, tudo correria sobre rodas. É que não estou mesmo a ver outro “tema” nas recentes intervenções do homem que não fosse ele mesmo.
Post mortem
Com os primeiros flocos de neve de ontem, começaram a pingar as primeiras atribuições de culpa: o efeito de estufa anda a destrambelhar tudo e vamos a caminho de uma nova idade do gelo. Alarmismo sem bases científicas, claro está; se uma andorinha não faz a Primavera, também um nevão não faz o fim do mundo.
Com efeito, por muitas notícias assustadoras que vamos lendo, nada está ainda provado. E o problema é mesmo esse: se algum dia toda a comunidade científica aceitar como certo o papel das actividades humanas nas alterações do clima, será depois de convencida por alguns estudos a posteriori.
A ignorância, esse bem precioso
Quem não vê os sinais, que continue descansadinho…
Iatrofobia (2)
Sobre a secretária com décadas de cansaço, uma fila de pequenos frascos transparentes. Uns cheios de líquido sem cor, outros tingidos de um rosa débil e esgarçado. Os primeiros habitados por partículas a custo visíveis, farrapos brancos dissolvendo-se como migalhas inchadas na água. Nos frascos vermelhos vogam peixes adormecidos e pedaços de carne polpudos. Talvez ainda em crescimento desvairado. Coisas incapazes de aceitar a morte, prontas para acordar e contaminar o mundo.
Estão ali os despojos das pequenas cirurgias da manhã.
Aguardam pacientemente que os levem para análise. Mas só dentro de dias, só dentro de dias iremos saber o que está ao certo dentro do frasco com o nosso nome e número de utente: nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular ou melanoma. Repito a ladainha, fórmula que ilumina os cantos mais escuros com o brilho da ciência. Nevo melanocítico, carcinoma baso-celular, carcinoma espino-celular, melanoma. Um-dó-li-tá.
A enfermeira recolhe a meio de um suspiro mais um frasco, decora-o com um autocolante escrevinhado e volta a concentrar-se nos seus assuntos. O velho que acaba de lhe entregar parte do seu corpo fica ali, imóvel, estúpido, besta antediluviana a aguardar que se confirmem os rumores da sua extinção. Agarra-se ao enorme penso que carrega na testa, aturdido pelo escoar da anestesia. Faz medo, de tão assustado e sem amparo.
É grande, o seu resto: quase um bicho, uma ostra com filamentos pendurados à laia de raízes de planta esfomeada. Nadando no seu oceano cada vez mais vermelho, mais opaco. Uma promessa de morte.
São agora dez os frascos. Em quantos lerão os técnicos sentenças fatais? Naquele com um seixo simétrico, quase bonito? Ou no meu, que procuro confundir com os outros? (Mas não consigo perder-lhe o rasto, fazer de conta que mão de artista da vermelhinha baralhou a fila de recipientes esterilizados enquanto me reconfortava na miséria do velho com o penso que não pára de inchar. Lá volta a cantilena: um-dó-li-tá-quem-está-livre-livre-está. Bom. Mais logo, voltarei a arriscar.)
Esperam por mim no corredor. Já podia ter ido embora. Mas ficarei até que alguém leve o meu frasco (ou até conseguir desligar os olhos da parada de anomalias acabadas de morrer). Imagino agora as maravilhas da anatomia patológica: o meu pedaço rebelde centrifugado, pasteurizado, esmiuçado por uma culinária invertida que tem como produto final um simples papel, a receita com a medida exacta de cada ingrediente.
O velho desiste de esperar por mais explicações e encaminha-se para a porta. Um estremecimento em que só eu reparo agita o frasco com a ostra encarniçada. Ela vira-se e encara o velho.
Juraria que ali vi ódio.
Trasladem-nos, por favor!
Parece que um bando de rapazes com défices capilares se andou a manifestar, em Lisboa, contra o assassinato de portugueses na África do Sul. Nada a opor. Até julgo que uma qualquer alma caridosa devia financiar-lhes o aluguer de um avião, para que pudessem desembarcar no Soweto e fazer a manif no sítio certo. Até iam poder explicar à malta local quem são, ao que vêm e que ideais os animam. Ia ser um sucesso.
Ainda mais nhurrice
Concentrado que estava nos delírios do JPH que me envolviam, nem sequer reparei numa cuspidela em forma de texto que por ali já andava. Depois de aventar que os povos podem ter características que os distinguem, ele saiu-se com isto: “no contexto desta interessante discussão antropológica, pergunto-me: poderão os palestinianos ser um pouco estúpidos?”
Trata-se de um daqueles insultos que retratam melhor o seu autor do que os supostos alvos. Vomitar impropérios sobre gente que se comporta de forma que não entendemos só pode mesmo ser a marca de alguém muito pouco estúpido. Desafiou-me o JPH há umas horas: “tente raciocinar comigo, se conseguir”. Confesso: não consigo.
Mas façamos de conta que os palestinianos elegeram mesmo monstros sanguinários que só pensam em explodir autocarros. Os alemães também votaram em Hitler: serão “estúpidos” por isso? O simplismo e os preconceitos levam-nos a sítios bem feios.
Eisensteins caseiros, Hitchcocks da webcam, Cronenbergs do pixel: inscrevam-se!
Está a chegar o primeiro festival de Cinema digital da Europa: o Lisbon Village Festival. Saquem das maquinetas, preparem os gadgets, afinem os enquadramentos: as inscrições já abriram!
Um alegre “obrigada”
Inês Pedrosa tratou de agradecer ao seu candidato, de forma emocionada e grandiloquente, “por ter, em menos de três meses, despertado um milhão, cento e vinte e quatro mil e seiscentos e sessenta e dois portugueses para a nobreza da política e a força da cidadania.” Numa versão alternativa, também poderia agradecer ao poeta por ter, ao fim de onze mil, cento e noventa e sete dias, ter despertado da sua funda modorra de deputado que nunca se distinguiu por ideias, propostas ou acções. Como um Rip van Winkle dos tempos modernos, ele acordou num mundo que não entendia. Mas acabou tudo em bem; agora, pode voltar para a sua AR, escolher uma boa cadeira e voltar a dormir.