Arquivo da Categoria: Daniel de Sá

Adeus

Criei, ou criaram de mim, uma imagem a que não estou habituado. Talvez esta seja a verdadeira. Tanto pior se o for, e tanta mais razão para que eu deixe o espaço por conta apenas dos puros de coração. Ao contrário do Fernando Venâncio, não direi que gostei de estar aqui. Se gostasse, continuaria. Desejo-vos, sinceramente, o melhor na vida.

Trezentas e quarenta palavras

TREZENTAS E QUARENTA PALAVRAS
(Em memória do Capitão Salgueiro Maia e do cantor José Afonso)
Conheces o gosto da anona? E o cheiro do incenso em flor nas noites húmidas? Talvez.
Mas com certeza não serás capaz de os explicar. Nem eu nem ninguém.
Existem coisas assim: os sabores, os cheiros, as cores, os sentimentos… Há muitos milhares de palavras, mas nenhumas são suficientes para dizer aquilo que só quando se sente se sabe como é.
Eu gostaria de inventar as palavras que faltam à nossa Língua, a todas as línguas do Mundo, para falar de Abril. Em Portugal. Num dia com cravos a florir nas espingardas, porque ninguém queria usá-Ias para matar.
Estavam cansados da guerra, uma guerra má como todas as guerras. Em Angola e em Moçambique e na Guiné. Era o medo em Portugal. Havia verdades que era proibido dizer. Havia muita gente que mal tinha que comer. Havia muita gente sem casa onde morar.
Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Os homens que mandavam neste país, e que não queriam que ele mudasse, talvez dormissem àquela hora sem sonhar com o que ia acontecer. No rádio, uma canção começou: “Grândola, Vila Morena”. (Uma revolta que começa com uma canção, sobretudo uma canção como aquela, tem de ser uma revolta boa). Era o sinal combinado. Os militares saíram dos quartéis para dizer ao governo que não o suportavam mais, mas ainda não se sabia quantos portugueses estavam no mesmo lado. Logo se percebeu que eram quase todos, afinal.
E a revolução tornou-se numa festa tão bonita que esse dia foi um dos mais belos da História de Portugal. Foi uma alegria tão grande que se chegou a pensar ter valido a pena tanto tempo de sofrimento e medo para que ela acontecesse…
Mas não! A água mais apetecida é a que se bebe depois de uma longa e penosa sede, e ninguém se deixa estar dois ou três dias sem beber só para ter um gosto enorme ao beber…
Se eu pudesse inventar as palavras que faltam à nossa Língua para dizer isto melhor, nunca mais haveria alguém capaz de duvidar de como foi lindo aquele dia, nunca mais ninguém haveria de permitir que alguma coisa, neste país, se parecesse com as coisas ruins de antes. E muito depressa se mudaria o que ainda não houve tempo de mudar.

“Eu Acho” que ele tem razão

Este comentário de um leitor que assina “Eu Acho” resume, quanto a mim, a situação de uma sociedade que perdeu completamente a noção de que há valores que devem prevalecer sobre os instintos. Por isso o transcrevo para aqui. Assumo a responsabilidade de todas as suas palavras, mas de modo algum o mérito de lhe ter dado mais visibilidade..
Daniel de Sá:
Quando os “residentes” não querem perceber, são os comentadores que passam por não terem percebido. Pois eu acho que percebi muito bem. O Daniel tem apenas razão quando refere a “vulvização” – à qual eu acrescento “vaginação”, “clitorização” e tudo o que diz respeito ao sexo dito sem tabus. Trata-se de uma moda – e de um negócio – a indicar-nos que estamos na Era do Sexo. Muitos dos que escrevem em blogs e noutros locais entendem que para além desse tema não existe mais nada com interesse. Que não há inspiração que suplante o sexo. É o sexo que vende. É o sexo que chama o leitor e, ao que parece, o comprador de “arte”. É moda e é um modo de estar na vida. Quanto mais chocante e desbragado, melhor
Eu acho que com um pouco mais de decoro, de respeito, daquela “reserva” de outros tempos, ainda recentes, todos ficaríamos a ganhar. O sexo tornar-se-ia mais apetecível, quer figurado, quer descrito por palavras. Assim, a tocar pública e abertamente as raias do promíscuo, do chocante, do obsceno, do provocante, do indecente, do sem-regras, vamos de mal a pior. Não havia, por exemplo, tantos casos de mães com 11 ou 12 anos de idade e pais com 13 ou 14 anos. Vamos chamar a isso “evolução” de costumes”? Tudo o que ultrapassa os limites é exagero. Lésbicas e homossexuais sempre os houve. Aberrações também. Não será daí que vem maior mal ao Mundo. Mas não a falta de decoro a que se assiste actualmente, o exibicionismo barato, ostensivo e chocante, que nos bate à porta todos os dias.
Outra coisa: não utilize tantas vezes a palavra «ironia» para tapar buracos. Nem sempre o leitor está à altura de detectar as suas “ironias” nos seus comentários. Chamar, em certos casos, a “ironia” para resolver situações mais controversas, é quase como dar o dito por não dito.
Susana:
Pois terá sido a moral «que impediu representações belíssimas do sexo e do corpo de virem a público». Estou de acordo. Não vem daí novidade. Mas como vamos nós incutir nos nossos filhos a moral que não temos? Os princípios que não nos regem? Que desplante será o nosso ao exigir-lhes condutas que não seguimos? Mesmo que o corpo não seja tabu entre pais e filhos? Sim, porque isso é outra coisa.
O sexo sempre foi tema na arte: pintura, escultura, literatura. Mas não atirado de qualquer maneira à cara de cada um! Hoje, qualquer bicho-careta aborda o tema, quer figurado, quer pela escrita, com grosseria, sem qualidade, sem beleza. Antes com obscenidade, sem pudor, sem preconceitos, como pseudo-arte. Porque é moda? Porque toda a gente o faz? Por dinheiro? É essa a liberdade de expressão artística de que usufruímos hoje?
Poderá dizer que o meu ponto de vista pertence a um passado conservador. Pergunto: passa a evolução das sociedades pelo arrasar de preconceitos lógicos, estéticos e morais? Não vamos, certamente, comparar, na pintura, um cesto de morangos com a representação de uma vagina. O pintor pode ser o mesmo e a sua arte também. Mas ir tão longe, mesmo tendo em conta o «impedimento moral de vir a público» – com as consequências que se entendem por morais ou de bom-senso – poderá tornar-se imoral, ou não?

O Ilhéu da Vila

Já que é para abandalhar o Aspirina, abandalhemos todos. E que me desculpem a rudeza deste soneto aqueles que me julgavam mais comedido.
Não fiz mais do que atender a um pedido do inefável Dr. Luciano da Silva, homem famoso pela sua crença no Colombo português, embora eu não seja vilafranquense. Explico. Ele descobriu uma notável semelhança entre o ilhéu de Vila Franca e os órgãos reprodutores e suas vias de acesso femininos, com um farilhão ao lado que é evidentemente um símbolo fálico. (E eu que ainda não reparara nisto nem no resto… que incultura sexual!) E desafiou os poetas de Vila Franca a fazerem poesia inspirados nesse tema. Mas, melhor que esta explicação, será consultar o texto do próprio, no endereço que vai abaixo.

http://www.dightonrock.com/ocolondavilafancadocampo.htm

Ilhéu da Vila

Uma erótica vulva de basalto,
Redonda, bem formada, como um halo.
Contempla-a, sombrio, um negro falo
Que a seu lado se vê bem posto ao alto.

Que angústias viverá em sobressalto!
O erecto, viril membro, é como um galo
Com franga que não pode consolá-lo
Porque ele não consegue dar o salto.

Imutáveis estão, e assim se fitam:
Ela ardendo em desejo, ele cismando.
(Quantos seres humanos os imitam!)

Para não desejá-la, o pobre rijo
Enquanto a olha vai imaginando
Que o mar à sua volta é todo mijo.

A sombra luminosa

Poemas: Marta Furtado (jovem poetisa natural da Ribeira Grande, publicação póstuma) e R. Tagore;
Título e outras citações: Armindo Trevisan (teólogo brasileiro);
O texto restante é meu.
“Num campo de Nada
os olhos minúsculos de uma besta
enredada no escuro
tremem de medo dentro do corpo
enorme colossa.l”
Um campo de nada que poderia ser de tudo. O vaso vazio é mais fácil de encher se for pequeno, mas se a alma humana é grande, imensa, nada a saciará nunca. Como um
“Minotauro embevecido,
(que) consigo
ao espelho, no dia em que se viu
tornou-se frágil narciso
e perdeu o sentido.”
O espelho, a luz-sombra do eu inquieto a que só a perfeição basta. Mas não pode partir-se o espelho. Nem obrigar o espírito às limitações do reflexo. Talvez num qualquer Nirvana. Talvez Rabindranath, o sublime, capaz de o sentir quando disse
“Mesmo que eu tivesse o céu
com todas as suas estrelas
e a terra com os seus tesouros sem fim,
eu pediria mais.
Se ela fosse minha, porém,
qualquer cantinho neste mundo me bastaria.”
A poesia é uma das formas primordiais do Belo. A comunicação por excelência das ideias imperecíveis. O próprio Cristo a terá usado, seguindo a tradição do seu povo habituado a guardar a sabedoria onde não poderia perder-se: na memória colectiva.
“Existe nos Evangelhos uma dimensão poética essencial”
mas o próprio
“Jesus não encontrou uma página em branco que devesse ser inaugurada; a página já estava escrita.”
O que é preciso é mudar as formas, se necessário acrisolá-las até, para as adaptar às exigências de quem ouve, ainda que sejam apenas um solilóquio. Ainda que, se fossem cores, tivessem de ser feitas de todas as cores para conterem todas as ideias. Porque “o poeta, por definição, é alguém que deixa em aberto suas palavras, fugindo às definições.”
O poeta é alguém que é maior do que a sua própria vida, como se não coubesse nela e tivesse de criar um espaço de poesia que acolhesse a sua liberdade condicionada. Um pequeno mar onde possam desaguar os seus sentimentos, porque “só a poesia resguarda aquela área em que o sentido pode ficar /…/ fecundo, engendrando novos sentidos.”
Muitas vezes, quase sempre mesmo, a inquietação que aflige o poeta não é a sua própria, mas a dos outros.
“O suor dos escravos
ou a seiva dos algodoeiros
entranhados na Terra?”
Esta é uma forma excelsa de sabedoria: a consciência de que o mundo somos nós todos, de que não há lugares de privilégio previamente reservados.
“É a primeira vez que venho ao mundo
daí que não saiba nem sinta absolutamente nada.”
Mas a forma suprema da sabedoria é o amor. Que não se aprende, faz parte da vida. Quem o nega não renuncia aos outros, renuncia a si mesmo.
“A Humanidade
ou está numa mata de ouro
ou num matadouro
conforme convém à loucura.”
Para isto é preciso um corpo com todos os seus sentidos, pois estes é que são as portas da alma.
“Que farei eu só com a minha alma?”
Estes poemas da Marta, como os de Michel Quoist, são para rezar. Por isso, contrariando a lógica, mais que a resposta dada à pergunta feita
“Nada “
pode dizer-se, sem receio de errar: Tudo.

No Nordeste, em S. Miguel

Naquele tempo, o Nordeste ainda era longe. Dentro do concelho a viagem fazia-se numa estrada de que, em dias secos, se erguia um pó amarelado, finíssimo, constante. Nada nem ninguém se movia nela sem assinalar a passagem com nuvens de poeira. Que persistiam, insidiosas, se não havia uma aragem que as desfizesse sobre as searas, contra as casas, nos vales e nos outeiros.
Pela primeira vez o viajante foi além da Vila. Passou a Lomba da Pedreira, presépio armado durante todo o ano. Ficava para outro dia percorrer as suas ruas como pastor em Belém. E, de súbito, poucos quilómetros adiante, a mais inesperada das surpresas. A estrada alargava-se e era de asfalto. Haviam ficado para trás os barrocais das míticas ribeiras do Nordeste – a da Mulher, a Despe-te Que Suas, a do Guilherme… Perdidas, nas milhentas curvas do caminho e da paisagem, as tremendas arribas da Achada, das Feteiras, da Algarvia… Por aquelas bandas a ilha é sempre com mar ao fundo, mas apenas a servir de moldura, longe, como se a ilha e o mar nada tivessem que ver entre si. Como se vivessem desavindos e só por acaso e a contragosto se tocassem na orla das escarpas.
Da estrada de asfalto o viajante não sabe o prodígio que a deitou ali, no mais improvável dos lugares, porque não se vê vivalma que a use ou ao menos lhe ponha a vista em cima. Mas ela continua a revelar um mundo cada vez mais estranho e mais fascinante. Ali, onde a ilha começou a ser feita há mais de quatro milhões de anos, tudo acontece à semelhança do final de um poema sinfónico, em que o tema se repita no ribombar de toda a orquestra. A cada curva passada o viajante olha à procura da diferença. E esta surge-lhe, mais que todas, no espanto de uma ribeira que, como as outras, desce dos lados onde o Pico da Vara galga o céu.
O viajante pára. Alguém dos que o acompanham disse: “Ninguém fale.” Mas não era preciso. O único que se atreveu a falar foi aquele que pediu silêncio.
Não sabe o nome da ribeira que contempla, extasiado. Apenas percebe que ela desce a montanha como se tivesse pressa de fugir das alturas da Tronqueira. Depois acalma um pouco, e a falha geológica que aproveita para deitar-se ao mar alarga-se sem poupar espaço. As margens, até ao leito que se não vislumbra, estão adornadas com quase todas as espécies de árvores que há na ilha. A completar o espectáculo, o canto de milhares de pássaros. Nem um se avista. Nem de um sequer se distingue a voz, que assim de longe ecoam todas em uníssono.
Depois há-se saber que aquela ribeira é a dos Caimbos, porque, ao atravessá-la, os primeiros que por ali andaram usavam uns ganchos para se agarrarem às margens quando as subiam. Quanto à estrada que primeiro o surpreendeu, dizem-lhe que foi obra dos Serviços Florestais, que fizeram no Nordeste talvez os melhores actos de amor à Natureza de todas estas ilhas. (E naquele pico de onde a ribeira desce, o do Bartolomeu, que seria morada digna de duendes, há-de fazer-se um miradouro de conto de fadas.)
O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou até chegar ali. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. Mas ama-os, na sua velha modéstia, deleita-se no contraste da sua pequenez com a imensidão do cenário. E tem confiança de que tudo há-de mudar. Só não imagina que será tanto e tão depressa. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como os incensos e as conteiras nas ravinas mais inacessíveis.

Quando o mar vem pela proa

Ninguém conhece melhor os ventos e as ondas que um marinheiro. Por isso sabe quando o mar é de morte. E, se a terra fica a vante, cada vaga pode anunciar fim, funeral e sepultura. Nessa condição pouco mais é estar dentro de uma lancha desgovernada do que agarrado a um destroço.
Mar pela Proa, o livro, novela em pormenor de romance num ritmo alucinante de conto, leva-nos nessa viagem quase última de baleeiros da Calheta do Nesquim, em que, durante três dias, o mar enlutou a terra.
A narrativa corre, vertiginosa. Constante, como que escrita ou dita num só fôlego, semelhante ao som das vagas que saltam as amuradas dos navios mas que, ao rebentarem nas rochas, ouvidas ao longe são apenas uma zoada persistente. E o leitor fica preso nessa teia de palavras, de incertezas e de medos.
O escritor tem sempre nas mãos o destino das suas personagens. Mas, aqui, Dias de Melo dá a impressão de que não se atreve a tocar na sorte que coube viver àqueles homens de quem, e por quem, dá testemunho. Parece que não lhes muda uma vírgula nas cristas nem nas cavas das vagas em que escrevem a vida. À boca da morte há quem se confesse. Há quem viva toda a vida em três dias dela somente. Há quem queira quase tanto salvar o bote que lhe deu pão como manter vivo o último fio de esperança de ainda pôr, pelo seu próprio pé, os pés em terra.
Dias de Melo alcança, nesta narrativa envolvente, medonha e bela, tremenda e fascinante, o equilíbrio perfeito. O equilíbrio das palavras com que narra e das palavras de quem fala. O autor discorre e corre pelo texto fora com a alma na ponta dos dedos, com o coração aflito. Como se ele mesmo, que sabe o que vai contando, ouvisse ainda a história e sentisse os mesmos temores. Repete, num eco com semelhanças de absoluta realidade, a voz, as vozes, dos homens à deriva no mar e no destino. Cada homem se distingue dos outros pelo modo como sente, cada voz se ouve diferente pela maneira como diz. E a sua própria, a do escritor que nasceu para o ser mas que bem poderia ter sido baleeiro e ter estado em tais perigos, é outra, num ritmo musical de fuga.
São de Dias de Melo alguns dos mais belos livros que se escreveram nos Açores. Este tem dentro gente da sua Calheta do Nesquim, gente igual a ele mesmo que dessa gente sempre quis ser seu igual. Por isso é talvez a mais extraordinária das suas obras. Com sabor de crónica e de romance. Com a força bastante para tornar universal, nas suas páginas, a sua aldeia. A aldeia casa comum de um tempo em que a vida de alguém era parte da vida de todos, até aos limites onde chegassem os seus passos, os seus remos ou os seus nomes. De um tempo em que a alegria e a tristeza eram comunitárias. Ainda que algumas traições pusessem em causa essa harmonia da dignidade de ser gente.
O remo que Dias de Melo não usou por profissão terá feito falta na vida dos baleeiros do Pico. Alguém o terá manejado por ele. Mas a sua escrita não poderia ser substituída por nenhuma outra, por nenhuma de outro. O melhor da saga de um século ter-se-ia perdido. A maior parte da vida vivida em terra e no mar pelos seus baleeiros, que ele fez nossos, teria morrido na sua morte. Mas, de cada vez que abrimos um livro de Dias de Melo, de cada vez que voltamos às vagas deste Mar pela Proa, como às pedras que ele escreveu em negro ou às águas que pintou com o sangue rubro das baleias, sentimos que eles vivem, os baleeiros. E as suas viúvas e os seus órfãos. Nenhum baleeiro de Dias de Melo será jamais enterrado no chão do esquecimento. Ele garantiu a todos a perenidade da vida na memória das gentes.

Shemah, Israel!

Como um pastor que esquece os nomes das suas ovelhas
e não reconhece os balidos dos seus cordeiros,
O Senhor fechou os olhos ao sangue dos holocaustos.
A Terra inteira deitou-se com as dores do parto
mas, quando a aurora chegou,
viu que o berço se tornara em ataúde,
que os animais domésticos eram como feras selvagens,
que a enxada se transformara em espada,
e com os arados haviam feito armas devastadoras.
Levantou-se povo contra povo e nação contra nação.
O irmão não reconheceu o seu irmão,
o pai tratou o primogénito como se fosse filho da escrava estrangeira,
e a mãe secou os seios para não amamentar o recém-nascido.
Até Caim cegou os próprios olhos para não ver o sangue derramado,
Nabucodonosor tapou os ouvidos com pez fervente
para não ouvir os gemidos dos cativos,
e Jesabel deu glória a Deus pela hora da sua morte.
A desolação esteve durante o dia nas nossas casas
e deitou-se, à noite, nas nossas camas.
O calor do fogo era como gelo para os nossos corpos,
e o mel mais amargo do que o fel nas nossas bocas.
Não desejávamos o dia, durante a noite,
porque todos os dias eram dias de sofrimento.
Temíamos o entardecer
porque cada noite era a noite do nosso pavor.

Ouve, Israel,
quando vires o Filho do Homem
erguido sobre a terra da desolação,
contarás um a um os seus gemidos
e uma a uma as gotas do seu sangue.
Saberás então que o Senhor habita contigo para sempre,
que aquele é o preço por que serás libertado.
Ele tomará sobre Si as tuas culpas.
O Senhor veio a ti de mãos vazias,
e lavará os pés, antes de serem trespassados,
para que nem sequer o pó dos teus caminhos
receba a afronta dos cravos do sacrifício.

Tempos de guerra

No tempo da guerra é que foi mesmo de mandar carouço. Uma pessoa nem sequer podia chamar seu àquilo que era seu, que vinham fiscais ver o que cada um tinha de trigo e de milho, e ficava um tanto para os donos e outro tanto para o governo, para levar para quem não tinha. Até para levar a farinha dum concelho para outro era preciso autorizo. O José Pimentel, que era carroceiro, foi um dia apanhado por um polícia, vinha da cidade com um carregamento de farinha, o polícia quis ver a licença, ele não tinha, aquilo era farinha para matar a fome a muita gente cá na Maia, o José, que era um rapaz forte, pegou no polícia a aboiou-o para dentro dum tanque de água e veio-se embora depressa, antes que o polícia lhe desse na cabeça de vir atrás dele mesmo todo molhado.
Uma vez foram a casa do Manuel Bispo, que era bom homem, um dia foi à terra e viu um velhote com um espeto a puxar umas batatinhas por um buraco da porta do barraco, e sabe o que é que ele fez? Escondeu-se entre as canas para o velhote não ver que tinha sido apanhado a roubar. E o filho, o Adelino, fez coisa parecida, que um dia chegou à terra e viu uma mulherzinha a rapar com os dedos para desenterrar umas batatinhas, também se escondeu entre as canas para a mulher não saber que tinha sido vista. Pois os fiscais foram a casa do Manuel Bispo, que já mal se levantava da cama e estava meio tarouco, os fiscais queriam ver o trigo que eles tinham, a mulher, que era muito mais nova, e os filhos tinham escondido umas sacas no barraco, eles contaram as sacas que viram e fizeram os quinhões, mas o Manuel Bispo lá da cama começou a dizer que havia as outras no barraco. Era uma casa de família, precisavam daquele trigo para si, a senhora Maria dos Anjos lá se desenrascou disfarçando com o pouco juízo do marido.
A luz era uma aflição, não havia petróleo, era um maldito dum azeite de gata, da gordura dum peixe que chamam peixe-gata, enjoava que revirava a casa toda e embrulhava as tripas, e mesmo assim era preciso tapar as janelas com papéis para não se ver a luz, por causa dos submarinos alemães, os soldados faziam a ronda na freguesia e, se viam uma greta de luz nalguma janela, batiam à porta e diziam muito delicados que era preciso tapar melhor. Foi com uma luz dessas que o meu Carlos, que é da sua idade, nasceu numa noite de temporal medonho.
Os soldados de Lisboa eram gente boa, não há muitas razões de queixa, mas alguns fizeram patifarias que Deus lhes perdoe. A pobre da Isabel da Luísa, que era uma rapariga bonita mas com pouco tarelo, foi enganada por um, que se foi embora sem se importar com o que lhe tinha feito, ela teve o filho no regato da cama, no quarto havia três camas, uma era do pai e da mãe, outra dos irmãos e outra das irmãs, e ela pariu mesmo ali, calada como um nabo, ninguém deu por nada, foi só a irmã que a ajudou.
Há gente que parece que pensa que a gente eram todos tolos naquele tempo, então como é que se passava fome com tanto que Nosso Senhor dá, pois é, mas às vezes não dava, ou tirava o que parecia que ia dar com algum temporal que estraçalhava o milho, as batatas ou as favas, ou com aguaria que nunca mais parava que até o trigo grelava nas terras. E não havia os adubos que há agora, a gente botava nas terras limos que vinham depois das tempestades no mar, já se sabia quando é que eles iam dar à costa, o pessoal ia logo de manhãzinha para o calhau, faziam os seus quinhões o mais que podiam, e depois era acartá-los escorrendo pelas costas abaixo. A gente até juntava pelo caminho as porcarias que os animais faziam, e, já se sabe, não se desperdiçava uma pinga de urina, para as couves. Mas havia alguns que nem sequer eram donos do seu mijo, desculpe-me a palavra, tinham de o guardar num talhão, e depois o senhor Bastião mandava buscar nuns bidões numa carroça, para pôr nas bananeiras. Eram trabalhadores dele, e se queriam ter trabalho tinham que lhe dar não era só o suor, era o mijo também.

Pimenta e pão de milho

Hoje eu vou-lhe contar umas coisas daqueles tempos, mas peço que as escreva direito. Eu falo torto porque não tenho letras, mas o senhor sabe o que eu quero dizer. O pessoal ri-se da gente, dos modos como a gente fala, mas se os senhores escrevem isso tal e qual a gente fala não falta quem diga que é… como se diz?… Literatura, é isso. Quer dizer que a gente fala, e dá para rir; os senhores escrevem, e levam palmas.
Eu não aprendi a ler porque havia só uma escola de rapazes, alguns cinquenta, ou mais, do professor Francisco Costa, que parece que depois foi posto daqui para fora de castigo, porque não gostava do Salazar. Acho que foi para Setúbal, mais ou menos por trinta e um. Bem, mas a verdade é que meu pai precisava de mim para trabalhar, minha mãe teve oito filhos, morreram dois rapazes e duas raparigas, de machos fiquei só eu e meu irmão, era preciso dar ao gadanho se a gente queria comer. Lembro-me de uma vez à noite estar deitado cheio de fome, a gente não tinha ceado, minha mãe deu-nos água quebrada da friura para beber e enganar o estômago, e eu ia pedir uma nica de pão, mas mal disse “mamã” ela percebeu que eu ia pedir de comer e deu logo um assopro na luz, apagou-a, a modos que quando eu disse “tenho fome” ela respondeu “agora já apaguei a luz”. É triste, e ainda hoje tenho pena dela, que eu ouvi-a chorar na cama, e foi por não ter pão para dar à gente.
Já se sabe que muitas vezes se comeu pão de milho com pimenta salgada, o sal e a água que se bebia enganavam mais a fome do que o resto, era como as sardinhas de Lisboa, aquilo era só sal mas consolava a comer. O senhor pode não acreditar mas uma sardinha de Lisboa dava para a gente todos, a barriga não era sempre para o mesmo, era cada um a sua vez, porque era o que todos gostavam mais. A gente comia mais pelo cheiro que outra coisa, com uma grande tigela de chá e pão de milho, já se sabe, que o de trigo era vê-lo.
Meu pai, que Deus lá tem, se Deus não acode não chegava a ver os filhos crescer. Deu-lhe uma pneumonia, mas a gente pensava que era gripe, foi-se aguentando com chazinhos com uma nica de açúcar, que minha irmã Conceição ia comprar por um ovo, e ainda trazia o petróleo e uma unha de queijo para meu pai meter na boca. Quando minha mãe viu que aquilo ia cada vez pior, chamou o senhor doutor, ele viu meu pai naquele estado, chamou minha mãe de parte e perguntou “Maria do Rosário, tens uns dois contos de rei?” Acho que foi isso, dois contos de rei. Minha mãe tinha a graça de Deus que é grande, disse “ó senhor doutor, para que é que é preciso os dois contos de rei?” O senhor doutor disse que meu pai estava difícil de se salvar, mas podia experimentar penicilina, que era remédio novo nesse tempo e era muito caro porque parece que vinha de Espanha, e disse a minha mãe “já tens os filhos criados, tem paciência que o teu homem não está nada bom, vai contando com o pior.”
Aquilo foi de frio que ele apanhou. Dizem que agora não faz frio como antigamente, mas experimente o senhor a vestir roupinha de cotim por riba da pele e dormir numa casa que o vento entrava por todos os buracos, tapado com mantas de retalhos, e veja se não há frio como naquele tempo. E descalço por esses caminhos, que não havia sapatos, eu só tomei a Nosso Senhor quando os pés serviram nos sapatos de meu irmão. E meu pai tomou a Nosso Senhor descalço, e não foi só ele, que só teve um par de sapatos na vida toda, os do casamento. E sabe como foi o jantar dos noivos de meu pai e minha mãe? Pão de trigo com queijo de cabra, uns canjirões de vinho e uns bolos de massa sovada que uma tia de meu pai cozeu. Mas quando havia casamentos quase toda a gente mandava aos noivos um prato de louça fina, não era da Lagoa, cheio de trigo. O prato ia de oferta com o trigo, tudo junto dava para as primeiras cozeduras ou para guardar para a festa do Santíssimo e do Natal, que era isto o mais certo. Agora não falta fartura, mas naquele tempo as pessoas eram mais amoráveis, acho eu.

Duas garrafas de Macieira

Olhe qu’ê gosto munto do João Cravalho, aquilo nã era partida qu’ele me fezesse. A gente só pode levar duas garrafas de bebida, dizem qu’a lei nã permete nem sequer essas duas, mas eles fechim os olhos s’a gente nã leva más que duas. Quer-se dezê que eu levê aquelas duas e nã podia levar más ninua. Uma era pra ofrecer ó mê doutor, um belo home, que até fala uma nisquinha de pertuguês, e tá sempre numa ipequeia comigo, quer qu’ê largue a bebida, mas, mê rico amigo, um home bebe desde o breço, nã há modos de largar, nã le parece? Isto nã é mintira ninua, era cma todos os outros pitchenos do mê tempo, mal davam um grito as mãs pansavam qu’era dôs de barriga, ala dar-les licô de esprite de canela, a gente ficava era bêbedos, coutadinhos, ó dispous, já más maorzinhos, era sopas de cavalo cansado, sabe isto o que é, o sê pai tamam dava às mulas uma garrafa de vim e um pã trigue, antes da viage da cedade prà Maia, sete léguas aluídas por aí adiante, entanse pra subir a Croa da Mata, mas más principalmente o Coucinho do Porto Formoso, aqui os carroceros tinham de metê a giga nos varales da carroça pra dar uma ajuda às bestas. Nos Calços, a camineta, qu’era a cravão, nã subia, os passageros tinham de descer e dar uma ajuda a impurrar, o malero ponhava uma pedra mal ela subia uma becadinho, os homes tomavam folgo e ala outro impurrãzinho. E cando era pra sair aqui da Maia, o malero ia aí plas quatro da manhã acender a caldera, despous a camineta tomava balanço pra pegar pla rua da igreja abaxo, se não pegava tava lá em baxo uma junta de bous pra a levar pra riba até à igreja, e lá ia ela por ali abaxo até pegar. E no Coucinho do Porto tava sempre outra junta.
Pous, fu ê munto prezado ofrecer uma garrafinha ó mê doutor, nem faz ideia cm’aquele home tratou a minha mulher, qu’ela morrê fou porque teve de sê, era uma santa, o que penou comigo só Dês sabe e ê tamam. É por isso que agora que tou viúve e na ritaia venho cá más vezes, mas esses coriscos pregam-me cada partida qu’ê nunca m’alembro de ter feto igual a outros, e inda menos a eles, mês ricos amigos. Mas esta fou ideia do João Cravalho, que se ri cm’o demoino cando le conté, e ê tolo inda le fu contar o que m’acontecê. Pous segue-se que cando ê incontré o doutô, despous de le dar a garrafinha, era de Macieira, tava à espera qu’ele me fezesse um elogio, qu’aquilo vendo era mesmo Macieira, eles fezeram a cousa munto bem feta, era tal qual. Um elogio, isso é qu’era bum! Cal-te-cá elogio! Sabe o qu’ele me disse? Os coriscos tinham botado era chá nas garrafas, qu’ê despous provê a outra, que tinha na ideia ofrecê-la a outra pessoa amiga. O doutor ri-se e disse-me, ele fala uma nisquinha de pertuguês, já le disse, “Ó senhor Franco, a aguardente na sua terra é munto fraquinha.”

A sopinha do José Zélia

Como há uns amigos que confessam gostar destas histórias, aqui deixo outra, o mais próximo possível do modo como me foi narrada. O José Zélia foi das pessoas que mais me abençoaram na vida, pois de cada vez que eu ou qualquer outro lhe oferecia um copinho de vinho, incluindo minha mulher quando ia tomar café e o encontrava à espera de uma boa acção, ele punha as mãos num jeito muito característicos e exclamava: “Alminha santa!” Era tão magro que tentar a descrição pareceria um exagero. E não havia uma única dessas almas, santas ou não, que não gostasse dele. Vivia com uma irmã também solteira, seu anjo da guarda.
Notas- “pial” ou piar, amassaria, o que agora se diz bancada da cozinha.
* * *
O senhor prefessor vá-me desculpar, mas eu já contei isto ao senhor Adelino, sê sogro, e ele ri-se que fou misteres. Eu já sou velhinho, a cabeça já não aguenta munto, bebi dous copinhos e fiquei logo tonto. Cheguê a casa, Maria não tava, mas a sopinha tava sôbelo pial, peguê na binquinha, assantê-me e comi tudo nuns arages. Quando acabê de comer, vou pra me alevantar e dê uma grandessíssima cabamdela pr’aquele meo do chão. Ó senhor prefessor, fiquê pr’ali a esgatanhar alguns cinque menutres, já tinha as unhas negras cmà terra da cozinha, e pensê “ó Senhor Santo Cristo queride, se aquela putcha de merda chega agora, tou desgraçado”. Esgatanhê, esgatanhê, e não saía do memo lugar. Ó senhor professor, de repente eu sinti abrir a porta e disse “ó Senhor Santo Cristo, cá vem aquela putcha de merda, tou desgraçado.” Ela vi-me naquele trestalho, pegou-me na gadelha e apuxou, apuxou. O senhor prefessor desculpe, mas ê nã tinha onde agarrar, agarrê-le na marreca e apuxê. Ela gritou “tá-me doendo, cara de macaco”. E ê disse “tamam me tã doendo, putcha de merda, tamam me tá doendo”.

De sapatos e vinho

Mestre Luís Perneta? Aquilo era um demoino em forma de gente. O senhor sabe daquela vez que ele fez os sapatos prò sargento do Continente, não sabe? O home tinha estado aí co’a tropa no tempo da guerra, e ia-se embora, queria uns sapatos bem feitos prà viage. Mestre Luís fez-le os sapatos, ficaram com bum ar, cousa fina. Fina de mais, meu rico senhor. No dia que era prà tropa embarcar veio um temporal medonho, com chuva que Deus la dava, o barco não pude fazer viage. Pous aquela aguaria foi caindo no sargento, que não era melhor qu’os soldados nem qu’os oficiais, o pobre ficou todo num pinto. Os sapatos é que fou pior. Aquilo era cma uma espece de papelão, ou lá que era, começaram a arregoar, a desmanchar-se, o triste ficou quase descalço. Veja lá a figura que fazia se chegasse assim a Lisboa. A tropa voltou prà Maia, à espera de bum tempo, e o sargento fou logo no outro dia ter com mestre Luís. O qu’o home le disse, louvado seja Deus! Daquelas gordas, finas e grossas, umas à nossa moda outras à moda de Lisboa, e mestre Luís ouviu que nem uma pedra. Quando o sargento acabou de botar abaixo, e tinha toda a rezão, disse “garoto, aldrabão”. Mestre Luís alevantou-se, segurou o corpo na perna sã e contra a mesa, e apontou o dedo na cara do sargento dizendo-le: “Garoto e aldrabão é o senhor, que disse que se ia embora ontem e não foi.”
Levado dum corisco, isso é o que ele era. E lembra-se d’ele ter a tenda ali na casa onde mora o senhor Pedro, em frente da igreja? O dono da casa tinha casado c’uma senhora muito mais velha, mas rica, que mandava em tudo. Ele ia às vezes pra lá conversar com mestre Luís, e um dia mestre Luís pegou numa garrafinha, qu’inté tinha o gargalo partido, qu’uma garrafa era um luxo, nesse tempo, porradaria qu’a gente levava se quebrava alguma, qu’era pra encher na fonte qu’havia ao pé das escadas do adro, o senhor alembra-se? Mas vai mestre Luís e vira-se prò senhor Raposo: “A gente vai beber água, com vinho aqui ao lado?” É que mesmo apegado à tenda ficava a adega, era só abrir uma porta, mais nada. Mas o senhor Raposo disse “Ei home, a dona Maria se ouve dá cabo da gente.” Dona Maria era a mulher, e ele tratava-la era assim. Mas mestre Luís disse qu’abria a porta sim fazer barulho. E abriu mesmo. Levantou-la um poucachinho, e fou muito, muito devagarinho inté caber pla greta. Fou à vasilha, tirou o batoque, abriu a fonte e encheu a garrafinha. E fou logo garrafa prà boca, fou duma vez, benzò Deus. O pobre do senhor Raposo tava à espera da sua vez, mas quando mestre Luís acabou meteu a mão no peito cma quem diz que tava consolado, e deu um “ah!” do tamanho d’hoje e d’amanhã. E inda teve o descaramento de dizer “Foge, senhor Raposo, qu’a Dona Maria se vem aí mata a gente os dous.”

Liberdade condicionada

“Bem-aventurados aqueles que nada têm a dizer, e não podem ser persuadidos a fazê-lo.” (James Russell Lowell)
“Tudo é permitido, mas nem tudo é conveniente.” (S. Paulo)
As palavras são as armas dos pacíficos. E também podem ser usadas como pedras de arremesso. Ou como catapultas de destruição.
A liberdade de expressão consiste em dizer o que pensamos, não em querer que os outros pensem como nós. Porque isto já faz parte da sua liberdade para decidir. E a qualidade do discurso não se define pelo modo como se impõe, mas pela maneira como respeita o pensamento alheio.

Sobre o Inferno

(Que diria o padre António Vieira a respeito das declarações de Bento XVI acerca do Inferno e das reacções que se geraram por causa delas? Talvez algo não muito diferente do que aqui se diz, embora mais bem dito, sem dúvida alguma.)

“Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit peccatum mundi.” Assim S. João Baptista apresentou Cristo aos penitentes que acudiam ao baptismo a pedir perdão das suas culpas. “Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo.” Porém eu vos digo que grande mal houvera Cristo de trazer à humanidade se viera para tirar os pecados do mundo. Porque já as más acções não levariam ninguém ao Inferno, nem por míngua das boas se não iria ao Céu. Vedes mais desconcerto do que se assim fosse? Porque é tão desgraçada a condição da alma humana que, se com grande temor não é imposta a lei, é o mesmo haver lei como não haver. Pois se com haver a lei de Deus, que tem promessas de Céu e ameaças de Inferno; e se com haver a lei humana, que tem justiças de cadeias, e de prisões, e de açoites, e de forca, e de muitos outros e variados tormentos, não há bondade nos homens ou se não toleram uns aos outros, que seria do mundo sem justiça divina nem lei humana? E se é certo que desta pode fugir o criminoso, à de Deus jamais nunca há-de fugir. Porém não falta quem viva como se, por não ver Deus enquanto faz o mal, não fosse visto por Ele. Néscios somos, que tão ligeiramente levamos as coisas desta vida, com risco de tão pesadamente sofrermos as da outra. E isto que uma é breve, e logo se acaba; e a outra é eterna, e nunca finda.

Mas será que Cristo não tira ao mundo os pecados, tal como disse S. João Baptista? Ora o santo profeta, inspirado por Deus, certamente não se enganou. Porém há uma condição para que Cristo perdoe os nossos pecados, e assim no-los tire da alma, e do mundo porque dela os tira. “Remittuntur ei peccata multa, quoniam dilexit multum.” Muitos pecados lhe são perdoados, disse Cristo da mulher que Lhe lavou os pés em casa do fariseu, porque muito amou. E este é o preço por que Cristo tira o pecado do mundo, que o não faz somente pelo seu sangue senão que nos pede também a nossa parte, que é o amor. Porém outra condição há para que Deus perdoe os pecados dos homens. Mas não de todos, senão de alguns. “Pater, dimitte illis; nom enim sciunt quid faciunt.” Já moribundo estava o Cordeiro Divino quando pediu ao Pai que perdoasse aqueles que O matavam, porque não sabiam o que faziam. Ergo, Deus não perdoa de qualquer modo, senão que o faz por duas razões: ou por amor ou por nescidade. Porque néscio não é mais nem é menos do que aquele que não sabe. “Nesciat sinistra tua quid faciat dextera.” Vedes? Não saiba a tua esquerda o que faz a direita. Mas se aqui se louva que tão caladamente se faça o bem que nem saiba a mão esquerda o que a direita faz, não saber as coisas de Deus só pode ser louvado pelo Demónio. Será justo, pois, que aqueles que não quiseram saber de Deus enquanto não podiam vê-Lo, como se não lhes bastasse ver Cristo em cada um dos irmãos, O vejam quando já sabem que é isso a felicidade eterna? Certamente que não, irmãos. Tratai pois de saber quanto podeis e de amar como deveis. E assim vos não há-de consumir o temor do Inferno nesta vida nem o de não ver Deus na eternidade. Que esta cegueira, ou frígida ausência, é o único fogo que há no Inferno, e não outro.

Chá de marmeleiro

Que há de comum entre o marmeleiro e o chá? Aparentemente nada, a não ser que ambos são originários da Ásia, embora um do Sudoeste deste continente e o outro de Assam e Manipur, no Nordeste da Índia.
No entanto, fala-se de um tal chá de marmeleiro, que é coisa que não se deseja a ninguém por se tratar de uma lambada com uma vara. E também se diz de alguém, que careça de boas maneiras, que não tomou chá em pequenino.
Ora um dos hábitos antigos era sovar as crianças como forma de educação. E, na China e no Japão, a cerimónia do chá obedecia a um ritual quase sagrado, costume que passou à Inglaterra e a muitas famílias europeias mais evoluídas socialmente. Tomar chá tornou-se, assim, um acto de civilidade e uma aprendizagem das tais boas maneiras que faltam a quem precisa de um chá de marmeleiro.
E eis como, afinal, entre um chá de marmeleiro e o simples acto de tomar chá em pequenino há uma certa relação, se bem que condenável aquele, e de melhores resultados e maior proveito este.

Os Impérios de Santa Maria

Os impérios do Espírito Santo, em Santa Maria, têm quase a idade do povoamento da ilha. E por isso mantêm a memória de uma receita culinária de antes da chegada das especiarias orientais. A carne, cortada em grandes pedaços, é temperada apenas com sal e cozida durante várias horas. Depois, com o caldo ainda meio fervendo, põe-se-lhe dentro hortelã e endro. Uma delícia, apesar de que o aspecto das copeiras era algo soturno. As mesas enchiam-se de manhã à noite. E havia sempre um lugar no estômago onde cabia mais um bom naco ou dois de carne, postos sobre fatias de pão endurecido e no qual fora vazado aquele caldo generoso que depressa enchia os lábios de gordura. Entretanto, os serventes da mesa não se descuidavam, para que nada faltasse. Ora traziam mais sopas, mais caldo e mais carne, ora iam andando à volta servindo o vinho a todos no mesmo copo, que logo ficava besuntado. Viam-se ao longe as marcas da gordura. Agora, embora no essencial nada tenha mudado, deixou de haver os “agarradores” (cuja função era arrebanharem gente para a copeira, às vezes à força para que não houvesse um único lugar vazio), os copos são de plástico e individuais, há água quente na cozinha para lavar a loiça, e, para além do imprescindível vinho, não faltam os refrescos da moda.
O mordomo, apesar de ser chamado imperador, pouco ou nada manda. Uma verdadeira democracia. Até nas filas para entrar na copeira não há senhorias. Como muito bem escreveu, em 1920, o padre Joaquim de Chaves Cabral: “A ficção liberal – o rei reina mas não governa – do constitucionalismo acha a sua plena realização nos impérios marienses.” Mandam todos os outros, sobretudo o trinchante, com o seu lenço de seda branca, ou colorida, ao pescoço. Tem a seu cargo a carne, que pode ser de até umas oito reses ou mais, dirige todos os restantes membros da “equipagem”, e é ele que distribui o pão de mesa e as formidáveis roscas, de massa ligeiramente adocicada. Os enormes pães da mesa são mais insípidos, sendo os menores de alqueire, cerca de doze quilos de farinha. Para os cozer, todos os fornos foram feitos com uma pedra amovível na boca. E não é costume faltar o pão leve, os biscoitos encanelados e os biscoitos de orelha. Pelo menos estes são receita mariense já com fama nacional.
Abaixo do trinchante, também dito presidente, vem o mestre-sala, o primeiro dos três briadores, que acompanham todos os momentos mais importantes da função. São rapazes escolhidos entre os de melhor fama do lugar. E há o copeiro, que põe e dispõe na copeira, e que tem a seu cuidado o vinho. Lá no fim da lista, aparecem os serventes ou ajudantes, que são o pau para toda a obra. As mulheres, claro, são indispensáveis. A elas pertence a maior parte dos segredos da cozinha e todos os do forno.
Uma das recordações mais fortes que ficam dos impérios de Santa Maria são os foliões. No aspecto, em pouco diferem dos companheiros da equipagem, com o lenço colorido à volta do pescoço. Um toca o tambor e outro os ferrinhos ou uns minúsculos címbalos, indo ao meio o porta-bandeira. Nada acontece sem a sua presença antes do dia da função e, durante esta, de manhã até à noite ouve-se aquela toada mourisca que vão como que ronronando sempre. De nada serve aclarar-lhes a voz de pouco a pouco com gemadas em vinho e açúcar, servidas numa tigela. Mas a presença da folia é fascinante.

Sobre as justiças deste mundo

A minha maneira de comemorar o quarto centenário do padre António Vieira é escrever uns textos que toscamente se pareçam com os seus. Esta é uma carta que escrevi ao jornalista Fernando Madail, do DN.
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Conta o grande poeta Luís Vaz de Camões aquele conhecido caso dos doze cavaleiros que foram a Inglaterra defender a honra e a fama de outras tantas donzelas difamadas. Vede, senhor, que torpe e vil era a justiça desse tempo, que não se a fazia ou declarava pelo conhecimento da verdade, senão pela bravura de cavaleiros a quem seu braço e sua lança obedecessem à vontade deles. Assim que temos num momento as doze damas de honra duvidosa perante os olhos de muitos que as viam, e logo as sabemos livres de afrontas e de aleivosias, porque mais fortes foram os nossos que os ingleses inimigos delas. Mas, não houvesse Deus dado ao Magriço e seus companheiros engenho para vencerem os orgulhosos normandos, e, sendo o estado das donzelas o mesmo que sempre fora, haveriam ficado todas por perdidas e desonradas.
Hoje, direis, é mais justa a justiça, que se a faz com inquirições e com devassas, com testemunhas e com advogados, com juízes e com a razão. Pois eu vos aviso: bem mal cuidais. Tenha muita prata e muito oiro o homem justamente acusado ou que injustamente acusa, e há-de comprar, não um cavaleiro de braço que não ceda e lança que não rompa, senão um advogado de tão pouca vergonha quão solta lhe seja a língua, e que saiba os nomes de todos os escrivães, e que se faça de amizades com todos os meirinhos, e que contrate muito bem com todos os juízes.
“Quid est veritas?” perguntou Pilatos a Jesus. E, sem que esperasse resposta do Divino Mestre, se dirigiu aos judeus e proclamou: “Ego nullam invenio in eo causam.” – “Eu não encontro nele culpa alguma.”
Vede, senhor, como Pilatos, que não sabia o que era a verdade, foi ele mesmo verdadeiro, que esta é uma das espécies da verdade, que é dizer a boca o que a mente pensa. E, ainda que alguém não pense uma verdade tão certa como a de Pilatos, não mentirá se disser somente aquilo que cuida ser verdadeiro. À verdade se referiu o sábio e santo Tomás de Aquino da maneira que bem sabeis: “Veritas est adequatio intellectus et rei.” Cuidais, pois, que esta verdade, em que aquilo que sabe a inteligência é aquilo que é, a encontrareis nos tribunais? Desenganai-vos, senhor, pois sempre há-de haver dois homens capazes de jurar falso, bocas que não dizem o que os olhos viram ou a mente sabe, ou um juiz disposto a negar o seu mesmo pensamento se tal convier à sentença que a quem vos quer mal convém.

Dar os Buns Anos

(Notas prévias: buns anos – bons anos; dar os buns anos – desejar feliz Ano Novo; pedir os buns anos – pedir uma bebida, ou uma moeda, no caso de crianças, para que quem oferece tenha um ano feliz; Jedé – José; ma que, ou cma que – parece que. Só transcrevo a pronúncia dos casos mais interessantes, para a leitura não cansar.)
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Pois entanse vou-lhe contar daquela vez que o Jedé Cordeiro e o Jedé Carvalho foram dar os buns anos ao ti Mané Jaquetinha. Aquilo eram dois lepras levados da breca, uns pelacias do corisco, o senhor conhece-los bem, e dê-lhe na ideia irem dar os buns ao ti Mané Jaquetinha já fora do prazo, que já se tava quase pelos Reises, ou não sei mesmo se já tinha passado o dia de Reises. O ti Mané Jaquetinha morava naquela casa muito pequenina, o senhor também conheceu bem, que a gente entrava – a gente entrava é um supor, que eu nunca entrei na casa dele – mas que a gente entrava e ficava logo dentro da casa toda, que a casa era toda ao pé da porta, que tinha uma biraca grande em baixo, cma que fosse roída dos ratos, que dava para entrar um temporal inteiro por ali adentro, e o chão era de terra, já se sabe, e o ti Mané Jaquetinha dromia numa caminha de ferro ao lado da porta.
Segue-se entanse que eles foram lá, o ti Jaquetinha deitava-se cedo, já tava acomodado, e o Jedé Carvalho bateu à porta e ele perguntou com maus modos, era aquele feitio sempre zangado, mas não era para menos naquela hora, perguntou “que é que tu queres?” e o Jedé Carvalho respondeu “a gente vem dar os buns anos”, e o ti Jaquetinha disse “deixa aí que amanhã pego”. E vai o Jedé Carvalho, que ma que tinha a tripa rota, abate as calças, amoujou-se de cocras e, meu rico senhor, pranta-lhe ali um presente de louvar a Deus. Já se sabe que essas cousas é difícil de fazer sem fazer barulho, o ti Jaquetinha ouviu aquele disparate, levanta-se em ciroulas e tudo, traca duma navalha e vem para a enfiar no Jedé Carvalho, que se lo apilha rasga-lhe o buxo até à espinha. O Jedé Cordeiro botou-se logo a correr pela rua abaixo, desapareceu num zápete e escondeu-se no Arrebentão, mas o Jedé Carvalho puxou as calças só até aos joelhos, que não teve tempo pra mais, nem podia ponhá-las mais pra riba, no trestalho em que tava, já se sabe, e botou-se a correr pela rua abaixo, mas com os dois pés à uma, aos saltos como se tivsse piado, e tava, mas gritou prò ti Jaquetinha: “Ó ti Mané, que pressa é essa? O senhor disse que vinha buscar amanhã e já vem buscar hoje?”

A carta da América

Mestre João Bernardo era sapateiro e ferrador. Foi em sua casa que se jogou o último desafio de sueca na serra.
Com a partida de mestre João Bernardo, no dia seguinte, não ficariam na aldeia mais do que três homens: o tio Amadeu, o Joaquim Torre Velha e Manuel Cordovão. Por isso aquele serão de sueca e despedida teve honras de mutismo em velório que nem os cálices de aguardente animaram.
Os parceiros haviam sido sorteados dando uma carta a cada um. Manuel e o Joaquim Torre Velha ficaram com as duas mais baixas, e por isso formaram equipa.
Para evitar uma indefinida sucessão de partidas em que os que estivessem em desvantagem invocassem o seu direito à desforra, foi combinado que a disputa terminaria quando uma das equipas alcançasse seis vitórias.
Partida a partida, a sequência de vitórias e derrotas não deu a nenhum dos pares uma vantagem superior a uma até ao quatro igual. Depois, Manuel e o Torre Velha ganharam as últimas duas com facilidade.
Ao jogar a derradeira carta, sabendo que a vitória estava assegurada, Manuel sentiu uma tristeza tão grande como se aquela fosse a maior derrota da sua vida. De cada vez que partia alguém, a tristeza era tanto maior quanto menos gente restava na aldeia. E parecia que os que se despediam, indo, sentiam o mesmo e na mesma proporção que os que diziam adeus, ficando.
Os outros dois passaram a recordar aquele último serão como se tivesse sido uma das noites mais importantes da sua vida.
Num fim de dia, em que conversavam à porta da casa do Torre Velha, Manuel tirou um baralho da algibeira, embaralhou bem, disse àquele que partisse e mandou que o tio Amadeu desse cartas como se mestre João Bernardo estivesse ali. “És maluco”, disse o velho, no entanto obedecendo. Manuel pegou num envelope, meteu-lhe dentro as dez cartas restantes e explicou: “Vou mandar estas cartas ao mestre João Bernardo. O senhor Joaquim jogue uma, para eu lhe dizer e ele decidir qual a carta que há-de jogar.”
Perante o pasmo deles, explicou. Cada um guardaria as suas cartas, esperando a resposta do companheiro distante. Quando ela chegasse, juntar-se-iam os três e completariam a vaza. Depois, começariam outra e Manuel Cordovão escreveria novamente a dizer como fora. “Isso nunca mais acaba!” disse o velho Amadeu, mas mais em jeito de satisfação que de censura.
Cada resposta vinda da América demorava pelo menos duas semanas a chegar. Então os três homens juntavam-se em casa do Joaquim Torre Velha, e esperavam com ansiedade a revelação da carta devolvida. Às vezes o serão de sueca não passava disso mesmo: Manuel abria o envelope, punha na mesa, em cima das outras três, a carta enviada por mestre João Bernardo, e, se era este que ganhava a vaza, arrumavam as suas e esperavam mais duas semanas. Quando era a vez de ele dar cartas, prevenia com antecedência se queria virar trunfo por baixo ou por cima, e o velho Amadeu dava por ele. Mas ficavam felizes como se não faltasse ninguém.
O velho Amadeu adoeceu quando estavam empatados a duas partidas, mas ele ia ganhando a quinta por três a um. Ainda aguentou o suficiente para viver até à penúltima vaza, que ganharia, e o jogo também, se mestre João mandasse um trunfo para cortar um rei jogado pelo Torre Velha. Não veio o trunfo. Mas Manuel trocou uma carta sua e mostrou-a ao quase moribundo como sendo a do companheiro. “Vocês ganharam, tio Amadeu.” O velho sorriu, feliz. Pela última vez, o velho Amadeu sorriu. Para que ele sorrisse durante mais uma partida, Manuel seria capaz até de roubar ouro.