Todos os artigos de José Mário Silva

Studio: WEST COAST

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2007 está a ser um ano estupidamente frutífero para a música de dança. Para além do mainstream estar inundado de coisas bem recomendáveis como os Justice, Simian Mobile Disco ou Digitalism, chegou-me esta semana às mãos uma maravilha chamada WEST COAST dos Studio. O que é verdadeiramente admirável neste duo seco é o facto de eles reinventarem um dos estilos de música mais azeiteiros dos últimos anos, a música de dança balear da década de 80 (pensem em Ibiza, Maillorca, Menorca e sobretudo em Paul Oakenfoald) e acrescentar-lhe um pouco de dub, house, krautrock e camadas generosas de post-punk (olá Vini Reilly) para produzir um dos discos simultaneamente mais classificáveis e fascinantes que ouvi nos últimos anos. A coisa, como não poderia deixar de ser, também faz lembrar a Madchester e projectos como os The Stones Roses (sobretudo a parte rítmica) ou os Happy Mondays (tudo o resto), mas os Studio vão definitivamente mais além e conseguem desbravar os poucos terrenos que os Underworld não exploraram nos seus dois primeiros álbuns. Para já, ocupam um lugar mesmo ao lado de The Field e dos Of Montreal na minha lista dos melhores do ano, mas algo me diz que não por muito tempo. Deixo-vos de seguida com o solarengo «West Side» e prometo carregar logo que possível a Box com mais perolazinhas. Um conselho: nas primeiras audições, tentem ouvir esta maravilha como banda sonora das vossas navegações pela Internet, de preferência com auscultadores que é para se aperceberem da forma estupenda como o disco está produzido e, sobretudo, misturado. Só depois é que deverão passar para a fase «BT, a gente vê-se daqui a 72 horas». Um miminho.

Vão ajudar, sim senhor.

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Em vésperas de partir para férias, ando a carregar o meu i-pod com diversos discos que, por razões diversas, não fizeram vibrar a minha corda sensível em 2007. Um deles é o novo We Are The Night dos The Chemical Brothers, ao qual tenho resistido de uma forma verdadeiramente parva. Ando há três dias a ouvi-lo de forma intensa e, de facto, este é o disco mais irregular dos rapazes, que tanto tem temas verdadeiramente dispensáveis (ver os singles «Do It Again» e «The Salmon Dance) como canções que, com a necessária dose de irresponsabilidade que me caracteriza, não hesito em apodar de pequenas obras-primas. É o caso de «The Pills Won’t Help You Now», um tema lento e preguiçoso que parece ser um filho bastardo de Kid A dos Radiohead e de The Campfire Headphase dos Boards of Canada. Tim Smith dos Midlake dá, de forma muito competente, a voz ao tema, mas um gajo fica sempre a pensar o que o Thom York teria feito com esta maravilha. Meninos e meninas: a minha música oficial do Verão 2007.

Novela do estudo científico das línguas reais – II

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Foram neo-gramáticos do calibre de K. Brugman, H. Osthoff e Hermann Paul que desenvolveram o legado dos histórico-comparatistas ao sublinharem o carácter mecânico e absoluto das leis fonéticas:

– Lindinhos, as leis fonéticas não têm excepções.
– Nunca-nunca-nunca?
– Ok, quase nunca.
– Bem me parecia…
– Mas, nessas raras excepções, é possível encontrar outra lei fonética complementar que as explique.
– Sempre-sempre-sempre?
– Ok, quase sempre.
– Bem me parecia…
– Mas, nesses casos ainda mais raros em que não se concretizam as leis fonéticas, é porque houve uma analogia.

A analogia foi definida pelos neogramáticos como um mecanismo de compensação que actua no plano gramatical e que restaura distinções ou paralelismos que cegam (tadinhas) as leis fonéticas. Neste mecanismo (muito presente em certos «erros» da linguagem infantil, como o não cumprimento das excepções gramaticais), está implícito uma distinção muito clara entre o plano fónico (fisiologia dos sons) e o plano psíquico (analogia) da linguagem humana verbal. Na verdade, até sou gajo para dizer que já se encontram aqui latentes os princípios da teoria sausseriana do signo linguístico.

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A angústia do cliente da TMN no momento do pagamento

PREFIRO ARREPENDER-ME DO QUE FAÇO, DO QUE DAQUILO QUE NÃO FAÇO. SE ME ARREPENDER, PODEREI CORRIGIR O ERRO. SE NADA FIZER, NÃO PODEREI CORRIGI-LO – SÓ PODEREI ARREPENDER-ME.
Soledade Martinho Costa

Ontem não paguei a conta da TMN e, hoje de manhã, deixei cair o telemóvel na sanita. Arrependo-me de ambos os gestos, é claro: deveria ter feito o pagamento e não deveria ter feito cair o telemóvel na sanita. Mas como fiel súbdito da nossa querida Soledade, fermenta agora em mim uma esperança e um medo. Esperança de voltar a pôr o meu telemóvel a funcionar (não sei muito bem como, mas sei que ela virá aqui esclarecer-me) e medo de pagar hoje (o prazo, afinal, termina amanhã) a conta da TMN: se o fizer, não estarei eu a colocar em risco a delicada ordem do universo?

Novela do estudo científico das línguas reais – I

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O estudo científico da linguagem humana verbal começou tarde e a más horas: apenas no século XIX com a Linguística Histórico-Comparativa. Até lá, como é óbvio, não se pode afirmar que a malta toda andou a apalermar (muito pelo contrário), só que, até aos histórico-comparativistas alemães, uma série de características enfermaram o estudo da linguagem humana verbal e o afastaram da cientificidade. Estas características foram, sobretudo, o pragmatismo (ver a descrição utilitária do sânscrito feita por Panini), a preocupação filológica (cheirar os estudos de Eratóstenes e de outros autores da Escola de Alexandria sobre os textos homéricos), a normatividade (audível, de forma geral, em todos os textos dos gramáticos até ao séc. XIX) e a subordinação à Filosofia da Linguagem (sobretudo no travo prolongado da questão do Crátilo de Platão sobre a origem convencional ou natural da linguagem, cujo paladar se prolongou de forma áurea até Santo Agostinho e São Tomás de Aquino). Como é óbvio (não é nada óbvio, eu é que gosto de me armar), não está aqui em causa os importantes contributos de todos estes autores no estudo da linguagem humana verbal, mas o facto de nenhum deles a terem promovido a objecto formal do seu estudo. A linguagem surge em todos eles com uma espécie de medium, cujo estudo era sempre motivado por questões extra-linguísticas.

Após os séculos XV e XVI, época em que se acentuou o contacto com novas civilizações e linguagens, começou-se a esboçar uma teoria monogénica da linguagem de cariz bíblica, em que se elevava de forma babélica o Hebreu a língua adâmica ou edénica. É apenas nos séculos XVII e XVIII que surgem os primeiros autores que me interessam (logo, que deverão interessar a toda a gente) para um estudo científico da linguagem humana verbal. Os dois primeiros são Antoine Arnauld e Claude Lancelot, autores da Gramática de Port-Royal, cujas páginas desenvolve a noção inovadora de universais linguísticos: se a linguagem é estruturada segundo a razão humana, é natural que se possa definir uma Gramática Universal comum a todas as línguas (o Chomsky viria, séculos mais tarde, a chamar um figo a essa inovação). O terceiro autor é Leibniz, que foi o primeiro a pôr em causa a teoria monogénica de que o Hebreu seria a língua-mãe de todas as línguas, argumentando com a impossibilidade dessa língua camito-semita ter dado origem a línguas com estruturas tão díspares. O rapaz era uma montanha de virtudes.

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É Tarantino? Não, são os Wilco

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Tinha hoje prometido a mim mesmo escrever sobre o fantástico Death Proof de Tarantino e acrescentar alguma gravitas à avalanche de parvoíces que se tem escrito sobre o filme: nem são bem os gajos que detestaram o filme que me irritam, mas os iluminados que utilizam expressões tipo «lixo de luxo» ou «alta baixa cultura» para descrever essa obra prima. No entanto, como estive hoje todo o dia a ouvir pela primeira vez o novo Sky Blue Sky dos Wilco, não vou poder, hélas, demonstrar os meus dotes de demiurgo circense e vão apenas ser brindados com dois MP3zitos no HTML que é para aprenderem a não desviar o vosso browser para blogues tão mal frequentados como o Aspirina B. A crítica tem cascado um pouco no álbum (repararam na forma Pacheco Pereira como mudei de assunto? Isto não é para todos), sobretudo pelos rapazes terem deixado de lado a veia mais experimentalista de discos como Summerteeth (vénia) ou Yankee Hotel Foxtrot (dupla vénia). Apesar disso, Sky Blue Sky contém uma bela dúzia de grandes canções, estupidamente íntimas e megalómanas, recheadas de solos de guitarra que provam que a azeiteirice, quando possui o grau certo de acidez, é algo de muito audível e recomendável (os fãs dos My Morning Jacket sabem do que estou a falar). Deixo-vos aqui dois belos exemplos: «Impossible Germany» e «Side with the Seeds». Nem os Lynyrd Skynyrd se atreveram a levar o rock tão a sul.

Aspirina Box #9 (Primal Scream)

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Coisas novas na Box, desta vez dedicada em exclusivo à minha banda favorita de todos os tempos (versão Julho 2007): os Primal Scream. É uma pena que muita gente apenas os conheça devido a essa obra-prima que foi SCREAMADELICA (1991), sobretudo se tivermos em conta que foi depois da entrada do Mani, o ex-baixista dos The Stones Roses (vénia), que a banda conquistou o título da banda britânica mais relevante dos últimos 20 anos (que me perdoem os Massive Attack e os Radiohead). Resolvi assim elaborar uma pequena selecção de 10 temas que mostra que o enorme talento dos rapazes em géneros tão distintos como o acid-jazz, o dub, a pop, o rock, o ambient house e a música electrónica. Se um dia deus nosso senhor me conceder a graça de ver os meninos ao vivo, prometo passar a escrever a sua graça com letras maiúsculas. Ou ir a Pátima a fé.

Quem é aquela mulé?

A Susana anda a armar-se. É óbvio que o seu último post é uma vil intromissão no pelourinho que me foi atribuído na última Assembleia Geral do Aspirina B que teve lugar na piscina da Soledade (marcaram presença o Valupi, o Fernando, a Susana, a Soledade e mais uma centena de heterónimos muito giros que falavam todos da mesma maneira e que diziam todos muito bem uns dos outros). Isto, como é óbvio, irá ter consequências graves no regular funcionamento deste blogue em putefracto estado de HTMLização. Para já, para além de aqui anunciar publicamente que fui EU quem mostrou pela primeira vez à Susaninha a genialidade dos Buraka Som Sistema, deixo aqui o vídeo de «Wawaba» que, não por acaso, é há mais de meio-ano o toque do meu telemóvel. Tipo picolê.

O mainstream é mesmo bom

Não há nada que me deixa mais feliz do que quando uma grande canção mergulha de chapa no centro do mainstream. Não acontece muitas vezes, é verdade, mas quando acontece prefiro mil vezes poder curtir uma música ao lado de milhões de melómanos anónimos do que ter como companhia críticos musicais com problemas edipianos. Se tomarmos como referência do mainstream os temas que chegaram ao topo do Hot 100 da Billboard, confesso que, nos últimos anos, dancei que nem um doido ao som de absolutas maravilhas como Hey Ya («Shake it like a polaroid picture») dos Outkast, Hollaback Girl («Let me hear you say this shit is bananas») da Gwen Stefani e a versão integral (com aquele genial afro-beat introdutório) de My Love («And I know no woman that could take your spot, my love») de Justin Timberlake. O caso mais recente de um alinhamento do meu gosto musical com o da maioria é da responsabilidade de uma rapariga com 20 anos chamada Rihanna e que possui o dom de ter reduzido a 30 insignificantes segundos um senhor com o gabarito do Jay Z. Desconfio que canção é particularmente biodegradável, por isso, façam o favor de curtir esta maravilha antes de azedar.

Aspirina Box #7 (Low)

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Com algum atraso, acrescentei coisas novas na Box. Desta vez, resolvi inserir dez temas de uma única banda que há 13 anos tem marcado uma presença assídua na minha discografia: os Low. Poderia agora falar de cada tema, mas não quero estragar a surpresa aos que não conhecem a banda. Para quem já conhece o talento do casalinho mormon, há uma raridade que se chama «Dont’ Carry It All» e que é um outake do grande Things We Lost In The Fire de 2001. Numa altura em que se celebra a re-edição de Colossal Youth dos Young Marble Giant, os Low são uma das bandas que melhor souberam utilizar o legado dos manos Moxham. O que, de resto, só lhes fica bem.

Adenda: os Low também são famosos pelos seus vídeos… singulares. Deixo-vos aqui o mais recente, relativo ao single «Breaker». Uma moca.

A great chance for survival

Os Arcade Fire são tão bons que até me fazem uma certa impressão. Infelizmente, não pude revê-los esta semana ao vivo, mas quero que o mundo saiba que eu, mero mortal que nem as rosas e Aristóteles, estive naquele inesquecível findar de tarde em Paredes de Coura, onde a banda deu, simplesmente, o melhor concerto que até hoje vi na minha vida. Os rapazes andavam a portar-se mal e ainda não tinham lançado qualquer vídeo musical relativo ao seu novo álbum. Também por isso, o que vos trago aqui é absolutamente maravilhoso: a banda a interpretar ao vivo aquela que é a mais bela, contida e melancólica canção do seu repertório: «Neon Bible». Num elevador.

Aspirina Box #6 (com um destaque muito particular aos Of Montreal)

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Coisas novas na Box. Em primeiro lugar, há o magnífico e muito dançante «Boy From School» dos Hot Chip, seguido de «Knife», um dos mais recentes hinos da música alternativa dos incomparáveis Grizzly Bear. Há dois momentos líricos que poderão ser particularmente irritantes: «Samson» da Regina Spektor e «He Didn’t» dos 6ths, projecto paralelo de Stephin Merritt que conta aqui com o vozeirão de Bob Mould (ex-Husker Du e Sugar). Depois, fui buscar «Theme From Turnpike» dos dEUS, que é um daqueles temas que fica bem em qualquer box, «Jumbo» dos Underwold, a versão original de «Heartbeats» dos The Knife (a versão de José González é óptima, mas isto é outra fruta) e «Sadness Soot» de Grant Lee Phillips que, pelos vistos, tem um disco novo que ainda não ouvi (mas que deve ser óptimo). Como não podia deixar de ser há mais um tema dos The Field: «Mobilia».

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Há igualmente dois temas novíssimos dos Of Montreal. Como se não bastasse a Kevin Barnes ter lançado um dos discos mais viciantes do ano (Hissing Fauna, Are You The Destroyer?), eis que o rapaz nos brinda com mais cinco temas de altíssima qualidade através do EP hilariantemente intitulado Icons, Abstract Thee. Tanto o álbum como o EP foram gravados na ressaca da separação de Kevin Barnes da sua mulher. Iá, dirão vocês, de break-up albums está um gajo cheio, mesmo se o género já tenha dado origem a obras-primas como Blood On Tracks de Bob Dylan ou Rumours dos Fleetwood Mac. Contudo, o que faz destes dois discos um caso à parte nessa tortuosa genealogia é a incapacidade de Kevin Barnes em adaptar a sua pop demente e psicadélica ao registo meloso e melancólico. O resultado é verdadeiramente paradoxal: ando há várias semanas a cantarolar, com grande alegria e diversão, letras como Tonight, I feel like I should just destroy myself ou I am a flaw, I’m a mistake, I am faulty, I always break. Os dois temas que deixo na Box são retirados do EP e conseguem, nesse aspecto, ser verdadeiramente exemplares. «Young Blonde, Your Papa Is Failing» é uma balada em que o Kevin Barnes consegue quase ser melancólico, não fosse o virtuosismo dos arranjos e «No Conclusion» é um daqueles temas épicos que não ficam a dever nada a canções como «Bohemian Rhapsody» dos Queen ou «Paranoid Android» dos Radiohead: é ouvir para crer. 2007 é dos Of Montreal, meus amigos. Não há mesmo nada a fazer. Ah, entretanto a mulher do gajo voltou para os seus braços. Bruxo.

Adenda
Bem, parece que o imeem se engasga com a faixa «No Conclusion» e, por isso, deixo-a aqui no próprio post em formato MP3. Poder acompanhar com a letra aqui.

O verde da pupila

Era no fundo do quintal que afinávamos
as cores para evitar confusões. Embora
eu fosse azul e o meu pai amarelo,
a verdade é que a luz nos ourava até

ao imo da pupila e não era assim fácil
esquecer que habitávamos um mesmo nome.
Como os melros, recuperávamos o silêncio
sob os castanheiros, porque era apenas

lá, naquela sombra delicada, que as coisas
se vingavam de opacidade. Sobra-me
ainda hoje um pouco desta claridade na

memória e, embora a minha mãe me jure o
contrário, acredito que se um dia me conseguir
subtrair à relva, quem sabe, o meu pai.