Naquele tempo, o Nordeste ainda era longe. Dentro do concelho a viagem fazia-se numa estrada de que, em dias secos, se erguia um pó amarelado, finíssimo, constante. Nada nem ninguém se movia nela sem assinalar a passagem com nuvens de poeira. Que persistiam, insidiosas, se não havia uma aragem que as desfizesse sobre as searas, contra as casas, nos vales e nos outeiros.
Pela primeira vez o viajante foi além da Vila. Passou a Lomba da Pedreira, presépio armado durante todo o ano. Ficava para outro dia percorrer as suas ruas como pastor em Belém. E, de súbito, poucos quilómetros adiante, a mais inesperada das surpresas. A estrada alargava-se e era de asfalto. Haviam ficado para trás os barrocais das míticas ribeiras do Nordeste – a da Mulher, a Despe-te Que Suas, a do Guilherme… Perdidas, nas milhentas curvas do caminho e da paisagem, as tremendas arribas da Achada, das Feteiras, da Algarvia… Por aquelas bandas a ilha é sempre com mar ao fundo, mas apenas a servir de moldura, longe, como se a ilha e o mar nada tivessem que ver entre si. Como se vivessem desavindos e só por acaso e a contragosto se tocassem na orla das escarpas.
Da estrada de asfalto o viajante não sabe o prodígio que a deitou ali, no mais improvável dos lugares, porque não se vê vivalma que a use ou ao menos lhe ponha a vista em cima. Mas ela continua a revelar um mundo cada vez mais estranho e mais fascinante. Ali, onde a ilha começou a ser feita há mais de quatro milhões de anos, tudo acontece à semelhança do final de um poema sinfónico, em que o tema se repita no ribombar de toda a orquestra. A cada curva passada o viajante olha à procura da diferença. E esta surge-lhe, mais que todas, no espanto de uma ribeira que, como as outras, desce dos lados onde o Pico da Vara galga o céu.
O viajante pára. Alguém dos que o acompanham disse: “Ninguém fale.” Mas não era preciso. O único que se atreveu a falar foi aquele que pediu silêncio.
Não sabe o nome da ribeira que contempla, extasiado. Apenas percebe que ela desce a montanha como se tivesse pressa de fugir das alturas da Tronqueira. Depois acalma um pouco, e a falha geológica que aproveita para deitar-se ao mar alarga-se sem poupar espaço. As margens, até ao leito que se não vislumbra, estão adornadas com quase todas as espécies de árvores que há na ilha. A completar o espectáculo, o canto de milhares de pássaros. Nem um se avista. Nem de um sequer se distingue a voz, que assim de longe ecoam todas em uníssono.
Depois há-se saber que aquela ribeira é a dos Caimbos, porque, ao atravessá-la, os primeiros que por ali andaram usavam uns ganchos para se agarrarem às margens quando as subiam. Quanto à estrada que primeiro o surpreendeu, dizem-lhe que foi obra dos Serviços Florestais, que fizeram no Nordeste talvez os melhores actos de amor à Natureza de todas estas ilhas. (E naquele pico de onde a ribeira desce, o do Bartolomeu, que seria morada digna de duendes, há-de fazer-se um miradouro de conto de fadas.)
O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou até chegar ali. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. Mas ama-os, na sua velha modéstia, deleita-se no contraste da sua pequenez com a imensidão do cenário. E tem confiança de que tudo há-de mudar. Só não imagina que será tanto e tão depressa. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como os incensos e as conteiras nas ravinas mais inacessíveis.
É quando permites à política meter-se de permeio que normalmente borras as tuas aguarelas – pecha de que não és o único sofredor.
Aqui, mais uma vez, não houve ensejo para contaminações nem distracções.
Resultado: belo, fresco, natural e poético.
Prosa extremamente bela… que me fez viajar por outros tempos, outras estradas… onde até o Algarve estava quase a um dia de distância…
boa maneira de começar o domingo, Daniel…
Então e o Lombo Gordo? Tão apetitoso ali no fundo, uma vez fui lá ainda não havia estrada, muita areia galguei …
Pois era a décima ilha dos Açores tão longe que estava. E aqule estrada era de macadame, como a minha na Estremadura onde o vento às vezes trazia o som do silvo do comboio da linha do Oeste entre Caldas e Valado de Frades. Belo texto que não merece comentários parvos.
Crótalo
Se todos os que nos julgamos sérios nos demitirmos da política, não poderemos queixar-nos de ela ser dominada por oportunistas e corruptos.
Luiseme e JCF
Faço uma relação entre os dois comentários, que agradeço, e recordo uma viagem como militar das Caldas até Lisboa, num comboio igual àqueles que só se viam em filmes de cowboys.
Z
A lista dos recantos e encantos do Nordeste daria um texto de perder o fôlego, como uma caminhada até ao Lombo Gordo.
Já não passava por estas bandas a algum tempo, decidi abrir os favoritos e acabei por ler o texto com bastante prazer. Talvez por ter estado por S. Miguel este verão, fizeste me rever a paisagem linda que vi por outros olhos.
O texto está muito bem conseguido deixa o leitor fluir na historia.
Continuação de bom trabalho.
Também eu “me deleitei no contraste da minha pequenez com a imensidão do teu cenário”. O dia não podia começar melhor. O sol entrou no meu quarto,na janela deste pequeno ecrã, em palavras que são “um presépio armado durante todo o ano”.
Está bonito o texto, Daniel, sem dúvida. Agora creio que já há estrada para o Lombo Gordo, dantes a vantagem é que, embora se ficasse sem fôlego, não se encontravam parvos no caminho. Gosto muito mais da Laurisilva de que de povoamentos de exóticas, mas tenho que concordar que lá para os lados da Tronqueira há magnificos bosquetes de Cryptomeria japonica.
Lia e Z
O meu abraço de agradecimento.
O Lombo Gordo já tem estrada, sim. A criptoméria foi introduzida no século XIX pela Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, numa altura em que árvores de boa madeira praticamente não existiam, pois que as haviam explorado ao máximo (os plátanos das Furnas, por exemplo, desapareceram todos) principalmente para fazer as caixas em que se exportavam as laranjas, que a meados da década de 1860 atingiram o número de quase dois milhões, contendo cada caixa de 800 a mil frutos. A criptoméria esconde a paisagem muitas vezes, de facto, e a destruição de floresta de laurissilva levou quase à extinção do priôlo, ave única no Mundo, que vive nas montanhas do Nordeste. Podes ler tudo acerca do priôlo, e a sua relação com a laranja, em
http://www.geocities.com/priolo7/floresta.html
Há mais de trinta milhões de criptomérias “públicas” naquele concelho.
Obrigado, Daniel, priôlo giro,
trinta milhões? fogo! olha e por falar nisso cuidado com o fogo, não lhes vá dar para quererem fazer um negócio de fundos comunitários e outros
portanto agora a palavra de ordem é sequestro de Carbono, para atenuar as alterações climáticas, e os fogos podem gerar volumes de emissão que podem ser contabilizados por satélite e onerar, porque não se pode estar a premiar emissões, pelo contrário,
consegue-se maximizar o sequestro de Carbono por unidade de espaço-tempo com mosaicos de paisagem diversificada bem gerida, cortando árvores de produção por volta do termo de explorabilidade médio máximo, e com aceiros e faixas de vegetação resistente
que os vossos serviços florestais continuem com carinho à terra, e meios suficientes, são os meus votos
texto bonito, daniel. apetece viajar.
Z
Felizmente os fogos são praticamente impossíveis na maior parte da floresta açoriana, devido à humidade. O nosso mato é sempre verde e a própria criptoméria não arde facilmente.
Isso do sequestro do carbono pode vir a representar um problema para as ilhas. Há uns dias, o deputado europeu Paulo Casaca fez uma palestra aqui mesmo, a quarenta metros da minha casa. Uma das coisas que ele disse foi que as passagens de avião vão ser penalizadas em custo por cada milha voada. Eu fiz uma proposta, que lhe pareceu interessante, de que para as ilhas deveria contar também o sequestro de carbono a cargo do fitoplâncton, uma vez que o mesmo mar que nos separa dos continentes também faz a síntese do CO2. (Os Estados Unidos estavam a consumir, há uma década, quatro vezes mais oxigénio do que o que lá é produzido, pelo que, se não fosse o vento que sopra do mar, já teriam morrido todos asfixiados.)
Susana, obrigado.
Ainda bem que as tentações pirómanas e pirófilas estão tamponizadas pelo clima aí. Só me deixa ficar contente. Sim, o fitoplâncton faz sentido que seja contabilizado nas águas territoriais, mas a palvra-chave, nos termos do protocolo de Kyoto é ‘adicionalidade’.
Que bom que te interessas por estas coisas, faz parte da cultura de um homem contemporâneo, mas muitos escusam-se com a mania que é para especialistas, como se não fossemos todos cidadãos de direitos iguais em face da Constituição (em particular artº 66º).
desculpa, não é bem a síntese de CO2, mas sim a síntese de açúcares a partir do CO2, fixando-o pela fotossíntese, que depois se convertem sobretudo em celulose, embora ao mesmo tempo se liberte CO2 pela respiração celular. Enquanto a biomassa do fitoplâncton estiver a aumentar está a fixar mais CO2 do que liberta. Se a biomassa estiver estacionária então a comunidade está em equilíbrio dinâmico, não há fixação líquida de CO2 – isto sem contar com os efeitos de predação, que têm que ser estimados com efeitos a jusante, na cadeia trófica.
por certo é o que estarias a cogitar, mas como isto é lido por terceiros, para não induzir em erro fica mais desenvolvido
Sem dúvida, um texto refrescante, que respira.
Z
Tens toda a razão, porque o meu recurso à palavra “síntese” foi ele mesmo uma síntese… Foi bom teres clarificado. Obrigado.
Valupi
Terá sido bom se também tu tiveres razão…
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