Velho, cansado, a um passo da reforma. Desterrado para uma comarca irrelevante, o delegado dispunha agora de tempo para pensar em tudo o que não tinha vivido e na verdade que importava. O rumor aquoso do vento nas copas das árvores entrava pela janela aberta. Olhava o conflito das correntes no riacho ao fundo do talude, sabendo que as águas corriam num sentido sempre certo.
Quando o processo chegou, teve pena da mulher, mais uma vítima dos homens, da ignorância, do inelutável apego das leis ao rigor da palavra escrita. Mas não foi por isso. Folheou-o. Enganos e deslocações dos envolvidos eram responsáveis por um nomadismo do caso, atestado pelos sucessivos registos e anotações ao longo de vários anos. Sopesou-o: uns bons dois quilos, ou seria escassez de massa muscular.
Enfadado, dirigiu-se à janela. Num movimento brusco e que lhe pareceu poderoso lançou o calhamaço, vendo-o submergir e reaparecer. Rodopiou e vogou, embateu por instantes em ressaltos de pedra, atrasou-se nos ramos caídos. Olhou-o através da trama das silvas, até se perder na curva.
Algum tempo depois chegou a carta. Aparentemente o processo tinha desaparecido. Segundo o último registo disponível, teria sido enviado para ali. A resposta do delegado foi pronta e sucinta:
O referido processo esteve nas minhas mãos. Segue, agora, o seu curso natural.
Ui! Lindo. De fazer doer. Algures. Mas na alma.
Faço minhas as palavras supra.
delícia (quantas vezes apetece! com o tejo aqui tão perto… :))
É quase ofensivo para as mulheres do meu País que morrem às mãos daqueles que as deviam amar sem medida. Mas, ainda assim, Susana, que excelente, enorme texto…
obrigada a todos.
acrescento, leão, que a história é ficcionada. mas pressupunha um acto defensivo (sem defesa legal) relativamente ao problema que enuncia, não o inverso…
se tivesse sido dada capacidade de intervenção aos leitores no desfecho do drama, por mim, o calhamaço teria caído em cima da cabeça de alguém. Porém, como assim não se passou na irrealidade, aproveito o ensejo para encomendar à Susana a correspondente sequela
Susana, quando dizia “é quase ofensivo” referia-me ao facto de a cumprimentar pela beleza do texto. Não ao texto em si.
Susana, tinha passado por aqui numa corrida, no outro dia e vi que tinhas entrado nesta casa. Só os posso felicitar pela contratação, e felicito-me a mim por te ter mais à mão.
Devia agora começar a partir debaixo, do primeiro post daqui, mas continuo com tão pouco tempo que começo agora e logo se vê.
Este, está excelente! Para além da brincadeira dos trocadilhos, sente-se bem o que é o peso de certos dossiers. A maioria apetece mesmo é atirá-los janela fóra!
Se isso se tornasse norma talvez se aprendesse a simplificar.
Texto bem escrito, embora com algumas imprecisões: já não há delegados do MP, mas procuradores-adjuntos.
Perto da idade da reforma já não serão procuradores-adjuntos, mas procuradores ou procuradores-gerais adjuntos.
E, nessa idade, não são desterrados para terras no fim do mundo, isso fica para os mais novos.
xatoo, o desfecho é o que mais importa. e é fecho.
leãozinho, bem que estranhei.
emiéle, que bom ver-te. já viste que se não fosse por te comentar provavelmente não me teria iniciado neste vício? :)
cadeiradopoder, obrigada por isto e por aquilo. deixa lá: coloca-se a acção no século passado, parece-te bem?
Literatura puríssima. É por isso que dói.
Que a ser verdade não doía tanto.
jorge, agradeço.
a verdade é mais inocente que pura, tem razão.