Ela veio sentar-se à minha frente, no eléctrico, em assento duplo, à janela. Era um daqueles eléctricos articulados, cinco módulos, longuíssimos, como há agora em Amsterdão. Cruzou os braços e olhou para fora. Não estava nem triste nem contente, devia ser o vulgar dela. Só nos olhávamos de relance, como bons desconhecidos. Não era nem bonita nem feia, só tinha um rosto marcado. Agruras? Sonhos fugidos? Andaria pelos quarenta.
Era o início daquela carreira, em frente da estação central, e entrava mais gente. Foi assim que outra mulher se sentou ao lado dela. Também uns quarenta feitos, nem bonita nem feia, marcada da vida, há mais disso. Quando calhava olharmo-nos, tinha um mortiço brilho, mas tinha algum.
Foi quando reparei em como as duas eram parecidas. O mesmo olhar, as mesmas fanadas cintilações. E os traços repetiam-se, pela fronte, pela boca, pelas faces. Pensei: são irmãs, encontram-se sempre neste eléctrico, nem precisam de falar-se. Só que os minutos passavam e elas ignoravam-se muito bem uma à outra.
O carro arrancou. A viagem não era longa. Eu trabalho no exacto coração da cidade, ou sou eu que o coloco lá. Mas chegou e sobrou para uma preocupação. A cada metro avançado, mais me convencia de que as duas mulheres eram aparentadas, decerto primas, mas quem sabe se irmãs, e não se conheciam. Era isso: tinham crescido juntas, mas um drama qualquer tinha-as separado, para nunca mais se encontrarem. Até àquele momento. Mas não o sabiam, as tristes. Sabê-lo, só eu.
Deveria, pois, dizer-lho? Começar por perguntar: são família? Não seria grave se o não fossem, riríamos do fantasista, e o episódio morria ali. Mas bem podia eu ter acertado, e elas encontrarem-se então, ao fim de dezenas de anos de buscas. Mana. Mana querida. Quanto tempo. Sim, quanto tempo esperei. E tudo o mais deixaria de existir: o mundo lá fora, o eléctrico, eu.
Não disse nada, nem então nem depois. Quando saí, já na segunda paragem, eu só me repetia: não disseste. E dizia-mo como um alívio. Compreendam-me bem. Tudo o que eu fosse causar, de tudo isso ficava responsável. O reencontro, as alegrias, um resto de existência sem sobressalto. Mas também, recordava-mo, todo o desestabilizar de duas vidas, os conflitos que haviam dormido, os infindáveis ajustes de contas.
Elas lá terão continuado, desconhecidas, mas livres de pesadelos. E eu não mexi no mundo. Foi, quero acreditar, uma boa acção para o dia.
Belo Fernando, um bom momento (o de silêncio). É curioso que digas isto, porque já me aconteceu uma boa dúzia de vezes (e nem é força de expressão, o número andará mesmo por volta de 12) encontrar holandeses que se pareciam imenso com pessoas conhecidas. Grandes diferenças: o facto de não serem iguais à pessoa ao lado no tram e o facto de ser alguém que eu conhecia/ço em Portugal. Imagina que até conheço um rapaz que poderia ser um primo do Hélder Postiga, o tal que joga pelo porto (embora este, o holandês, me pareça mais simpático).
Às vezes dou por mim a pensar que os holandeses serão os primos do mundo, tal a mistura que se encontra por esta terra e a forma como foram para todo o lado e todos acolheram. Acho a ideia simpática. E nada disto invalida, bem pelo contrário, que possam ser primos/sobrinhos entre si mesmos.
As vidas, as tristezas, são todas aparentadas!
Holandesas, portuguesas ou outras, ficam distantes, de olhar perdido, “mortiço brilho”. As mulheres, essas que suportam os maiores fardos da vida, sem que aquele, mesmo ao lado, o companheiro se aperceba…
A boa acção do dia seria, talvez e tão sòmente:
“Bom dia!” acompanhado dum sorriso.
Tê-las-ia feito sentir-se notadas, alguém…
Eu em Amsterdao tambem me parece estar sempre a encontrar pessoas conhecidas, parece coincidencia mas e sempre que tomo alguns fungos marados, sera que estes sao magicos?
No pôr do sol deste monte, ao som distante duma concertina, recordo a praça cheia cantando:”àvante camarada, àvante, junta a tua à nossa voz…”
E fico na incertaza se aconteceu.
Tudo parece tão igual e dorido. E tudo reside no olhar das mulheres: de todas, mas especialmente destas, as do povo.
Daquela que me deixou na mesa o café pedido: oferece a casa e tenha boa estadia. E partiu para o lava-loiça. Já nem sabe o que é o pôr do sol. Há muito que o seu coração se fechou.
E tu, homem, que fazes para que tal não aconteça?!
Tinham o nariz abatatado, boca grande, eram grandes e loiras?
Acho que também já vi muitas parecidas. Não há muita diversidade étnica entre os nativos …
Gostos não se discutem, João