Todos os artigos de Luis Rainha

Tudo isto são nervos!

O viajante já está de partida quando chega Felisberto, a cavalo numa espécie de lambreta, barulhenta e minúscula.
– Há-de-me ver isto, Fernando! Vejo-me grego para a pôr a trabalhar, passa a vida a tossir!
O nome de Felisberto não lhe condiz com a fachada. É um homem seco, nervoso, com um ar atormentado, e a cortesia dos gestos não disfarça o sobressalto íntimo em que parece tropeçar. Mestre Fernando promete que ainda hoje tira a tosse à lambreta. E o viajante, é ao que anda, vai conversar com Felisberto para a sombra do castanheiro.
O homem não esconde a vontade de falar das suas vidas, pouco terá ocasião de o fazer. Ora o viajante, médico não sendo, sabe da própria experiência o poder milagroso das palavras, mormente se outro remédio não houver. Há anos está Felisberto reformado da polícia, e agora vive aqui na aldeia. Sempre é ambiente mais favorável ao seu génio sobressaltado.
– Tudo isto são nervos! – resume Felisberto, que pouco mais sabe explanar dos seus padecimentos. Embora saiba muito bem que tudo ficou assim desde as guerras de Angola. Um dia, em 70, acabado de chegar a Luanda, meteram-no com mais dois colegas num avião que os deixou em Serpa Pinto. De lá seguiu numa coluna militar para o Longa, e depois para o Cuíto, atravessaram o Kuando-Kubango e ao cabo de dois dias chegaram a Mavinga. Luanda ficara a dois mil quilómetros, e isso pouco era, comparado com a distância a que deixara a mulher e um filho, em Alcabideche, do outro lado do mar via-se a Trafaria. Mas o guarda Felisberto não se quedou por aqui, o seu destino final era mais longe. E ainda faltava outro tanto de viagem, até ao posto policial e fiscal do Rivungo, na fronteira da Zâmbia. Era lá que o império precisava dele, para enquadrar as milícias dos quimbos, e para controlar as populações de que o império era feito.
O viajante não entende muito bem o que isto quer dizer, não sabe como se enquadram milícias, nem imagina como é que estes três homens vão controlar as populações dum império. As palavras são de Felisberto, o viajante limitou-se a ouvi-las e a guardá-las na memória. Ali viviam os três guardas num barracão de adobe e telhado de zinco, perdidos num mar de capim, quando iam ao rio espreitar os jacarés levavam em bandoleira a Mauser de repetição, que era tudo o que tinham por companhia. De horas em quando vinha uma coluna e deixava latas de salsichas, uns fardos de arroz e sacos de farinha, de que eles faziam pão numa fornalha de barro.
Felisberto não era nada feliz naquele mar de areias verdes onde a vista se perdia, mas aguentou sete meses. Até que o apanhou um ataque fatal de paludismo, mesmo ruim, e uma paralisia facial que o deixou de cara à banda. O viajante não compreende como é que o paludismo e a paralisia se juntaram assim, mas Felisberto também não sabe explicar. Lá foi um dia evacuado para Serpa Pinto, numa passarola de quatro asas que aterrou na picada. Daí apanhou uma camioneta para Nova Lisboa, e depois outra para Luanda, onde acabou por chegar ao fim duma eternidade e com menos de cinquenta quilos de peso. Ficou assim mais perto do filho e da mulher, mas ainda havia de tardar a vê-los, que lhe faltava um ano e tal de comissão, na 7ª esquadra de Luanda. Gastou-o ele entre idas ao médico e transportes de presos para a Damba, um presídio de pretos lá nos confins do Norte. E foi assim que Felisberto conheceu meio mundo, e viu coisas com que nunca sonhou, e se fartou de viajar à custa do império. Quando voltou foi parar à Quinta do Pisão, a um centro de apoio social da Misericórdia de Cascais. Ficou por lá uns anos, em serviços de enfermaria, e só não aguentou mais porque já nada era igual. Nem a vida com a mulher e o filho voltaram a ser a mesma coisa.
Ao viajante, que se limita a observar enquanto vai ouvindo, Felisberto faz lembrar um barco que perdeu o lastro. Sendo dum país de marinheiros, cabia-lhe andar por mares e sertões, isso o viajante não discute. Mas a um marujo assim não convirá expor-se a virações, nem aventurar-se em águas fundas. Bem a propósito, o viajante quer saber o que pensa ele da barragem que ali fizeram em frente.
– São uns ladrões que só pensam no dia de hoje! E o futuro ninguém o sabe! Se um dia o povo precisar de matar a fome outra vez, o melhor é afogar-se!
Nalgum lugar encontrou Felisberto esta sabedoria. O viajante não está seguro de que tenha sido nos caminhos do império, onde deixou ficar o lastro.

Jorge Carvalheira

Amigos amigos

Leia-se «A fraqueza de Israel», do Rui Tavares, hoje no «Público». Obrigatório.

Abrindo já apetites:

«E que péssimos amigos tem Israel! Em primeiro lugar, são autoproclamados, coisa bizarra. Em segundo lugar, sentem-se no direito de decretar quem mais pode ou não ser “amigo de Israel”. E, principalmente, acham que a amizade implica justificar todas as acções, incitar todas as reacções, arremeter contra todas as críticas.»

E referem-se Helena Matos, Pacheco Pereira, VGM.

Postais ilustrados

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Na biblioteca da terra vou à procura de sossego. Dum acesso à internet para falar com o mundo. Duma trégua da canícula.
Lombadas indolentes ressonam nas estantes. Adolescentes amotinam-se em guerras virtuais. Três funcionárias põem a vida em dia, à volta do balcão das entradas. Chegam mais duas a trazer novidades, picando o salto agulha no parquet flutuante. Um bebé rasteja no soalho, a perseguir uma bola. E num ecrã de parede o Roberto Leal lacrimeja paixões.
Eu chego a ensaiar um contra-ataque, mas acabo a bater em retirada. Antes a velha canícula. Antes mandar ao mundo uns postais ilustrados.

Jorge Carvalheira

Memórias de Aqui-ao-Lado

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Leia-se, no «Público» de hoje, o artigo de Vital Moreira em que – a propósito dos 70 anos do deflagrar da Guerra Civil espanhola – se comenta a persistente recusa da Direita aqui tão perto, com a sua Igreja Católica, em eliminar a simbologia franquista da vida pública. Como se não bastasse, Direita e Igreja recusam-se a recordar as atrocidades que cometeram e permitiram. Poderiam aproveitar para lembrar que algumas delas se deveram a provocadores da Esquerda. Mas essa inteligência falece-lhes.

E porque hoje, 25 de Julho, é o dia da Pátria Galega, e porque as primeiras vítimas de Franco foram os seus compatrícios galegos (Franco subiu tranquilamente ao longo da nossa fronteira leste, chateando de caminho Badajoz), compatrícios que foram massacrados aos milhares (lembre-se «O Lápis do Carpinteiro», de Manuel Ribas, o livro e o filme), leia-se igualmente o artigo de Carlos Morais, no portal Vieiros (Caminhos), sobre as circunstâncias do martírio da Galiza.

O acelera

Nunca diz que aprendeu a guiar à socapa. E sai do carro, ao cimo da subida, no triunfante jeito de quem cortou a meta. Trabalha ali na garagem de recolhas.
Começou a ajudar às lavagens, passava a camurça nos cromados, e fazia sinais aos clientes, olhe à direita, meta-lhe a marcha-atrás. Cabiam lá quarenta, mas entravam sempre mais. E quando saía um, o patrão mexia em três ou quatro. Ele passou anos a estudar-lhe as manobras.
Fez o baptismo de volante num dia em que o patrão foi ao médico. Depois nunca mais parou. Até que lhe cederam o comando, a arrumar as viaturas. Agora passa o dia em derrapagens controladas, ataca as curvas no limite, e na rampa de saída mete gás à tábua, como fazem os craques na recta da meta.
Ganhou esta paixão dos carros. E se um dia tiver um, há-de ir à oficina dum amigo, que se dedica ao tuning.

Jorge Carvalheira

IMPORTANTE

O Aspirina está, neste exacto momento, sob fogo cerrado do pulha Bigornas da estúpida Riapa. Enquanto manda patróticos comentários para posts recentes, o sacana vai atulhando de URLs pornográficos – às dezenas por minuto – posts mais antigos. O sistema paralisa então automaticamente, e por isso os vossos comentários não entram.

Ao Desertor Desconhecido

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Atravesso, no norte da França, as doces colinas da região do rio Somme. Nos bordos da auto-estrada preza-se a fertilidade dos campos, tal como noutros sítios se decantam os vinhedos. Mas a França não esquece a História, e relembra as batalhas aqui travadas nos finais da I Guerra Mundial. «Les batailles de la Somme», diz o placard gigante.

Às dezenas de milhares ficaram eles aqui. Alguns milhares eram miúdos portugueses, mal vestidos, mal treinados. E porquê? Porque o senhor Afonso Costa queria, à viva força, poder sentar-se com os grandes quando, em breve, o bolo fosse dividido. E uma bela fatia do bolo eram as nossas colónias africanas, em que a França e a Inglaterra (como, quando podia, também a Alemanha) punham gulosos olhos, mas que nós – nós – tínhamos o direito de explorar, enquanto a coisa desse. E deu ainda muito, mal sabiam eles. E pediu uma nova guerra, onde iriam morrer mais uns milhares de moços portugueses.

Apetece-me pensar que, em 1918, um deles não morreu. Ou que não morreu ali. Fugiu, escapou-se. Meu longínquo irmão, ele andou semanas aos tombos, até atingir a Holanda, a cento e cinquenta quilómetros, terra então pacífica.

Há guerras em que dizer «Não» é a única saída nobre.

fv, desertor do exército colonial português

Nacionalismo

Rui Moreira, economista e presidente da Associação Comercial do Porto, escrevia hoje no «Público»:

Nacionalismo é acreditar que a nossa selecção foi a melhor do Mundial.
Nacionalismo é acreditar que subjugamos todos os adversários.
Nacionalismo é afirmar que Angola e o Irão são equipas de topo a quem ganhámos.
Nacionalismo é afirmar que esprememos as laranjas holandesas e comemos os bifes ingleses.
Nacionalismo é chamar ladrão ao árbitro porque assinalou um penalti contra nós.
Nacionalismo é chamar fiteiro ao Henry e chorar a sucessão de faltas não assinaladas sobre o Cristiano Ronaldo.
Nacionalismo é dizer que perdemos com a França por isso e porque tivemos azar.
Nacionalismo é dizer que ainda bem que a Itália nos vingou ao ganhar aos cínicos gauleses.
Nacionalismo é apelidar o Deco de brasileiro quando joga mal.
Nacionalismo é apelidar o Deco de português quando joga bem.
Nacionalismo é insultar os holandeses pela falta de fair play.
Nacionalismo é insultar os que acham que nem sempre tivemos fair play.
Nacionalismo é multiplicar por dez os presentes no aeroporto e na festa dos heróis no Estádio do Jamor.
Nacionalismo é multiplicar por cem os elogios da imprensa internacional ao nosso futebol.
Nacionalismo é gritar que, mesmo que se perca, já se ganhou tudo.
Nacionalismo é gritar que ganhámos, quando não ganhámos coisa nenhuma.
Nacionalismo é defender que foi um feito histórico incomparável.
Nacionalismo é defender que, por isso, os nossos futebolistas e técnicos não deviam pagar impostos.
Nacionalismo é acusar de falta de profissionalismo quem ousa colocar reservas a algumas opções da selecção, como fez José Couceiro.
Nacionalismo é acusar de antipatrióticas as dúvidas sobre os critérios do seleccionador.
Nacionalismo é escrever que Scolari é o pai da pátria, agora que aprendeu a cantar o hino nacional.
Nacionalismo é escrever que ele levou o povo português a redescobrir o sentido da bandeira.
Nacionalismo é invocar que não se pode discutir a selecção, porque a pátria não se discute.
Nacionalismo é invocar que quem não está cegamente com a selecção está contra ela.
Nacionalismo é confundir mérito inegável com façanha inigualável.
Nacionalismo é confundir a selecção com a pátria.
Desculpar-me-ão por não me deixar contagiar por essa “doença infantil da humanidade”, nem querer pertencer a essa seita unanimista, cantada por Roberto Leal e pululada de oportunistas. Perdoar-me-ão, também, se não pactuo com as suas histerias e se temo as suas consequências. Absolver-me-ão se isto me traz à memória o tempo em que não podíamos ajuizar do nosso destino, em que à custa de vitórias morais ficámos “orgulhosamente sós”.
Resta saber se este nacionalismo não é uma nova versão do provincianismo que Pessoa e Eça identificaram como o grande mal português. Não, não sou nacionalista, porque acredito no trabalho e no espírito crítico, porque sou optimista e sei que se formos exigentes podemos sempre ir mais longe, porque não consigo ver milagres nos desempenhos felizes que espelham as nossas capacidades, porque não alimento o amor aos meus com o ódio aos outros, porque continuo a acreditar na nobreza do patriotismo.

P.S. – Soube que o “insuspeito e desinteressado” fervor de José Couceiro acaba de ser premiado: foi nomeado técnico adjunto das selecções.

Que falta faço eu?

Ao viajante cerca-o a aflição deste largo, que é mais que a solidão, é mais que o abandono. Mas bem graves hão-de ser as aflições deste padeiro, que acaba de chegar numa carrinha. O alarido da buzina foi crescendo rua fora até chegar ao largo, parecia alguém aflito por tirar o pai da forca, e era apenas ele a chamar as freguesas. Vieram cinco, por junto, e só se calaram as trombetas quando apareceu a primeira. Vem da Prova, o padeiro, duas vezes por semana. Faz o seu giro aí pelas aldeias, como o carro da fruta, o da carne, o do peixe congelado. Meteu-se no negócio quando voltou de Moçambique, há muitos anos, alguma coisa havia de fazer. E bem podia encher meio mundo de pão, não fora o mercado fraco e tanta a concorrência. Outros vêm, doutros lados, que não dividem territórios. Fazem as mesmas rotas, os dias é que alternam.
O viajante queria ouvir o homem sobre as passadas vidas africanas, lá tem as suas razões. Se era dono de machambas, ou cantineiro do mato, ou funcionário de alguma açucareira. Ou mesmo chefe dum posto qualquer. Nunca se sabe quando ficou lá para trás, enterrada na areia, uma garrafa de diamantes, como já temos visto. Mas o mestre vende pão e já partiu, que este serviço está feito e o resto falta fazer.
Ao contrário do que atrás prometeu, o viajante não voltará à rua de alcatrão. Segue até ao fundo do largo, donde parte uma avenida 25 de Abril. E o promissor topónimo, se já foi bandeira de tantas esperanças, apenas vem aqui alvoroçar contradições ao viajante. Entre as muitas alegrias que nasceram, e este desconforto que ficou. Mas em boa hora tomou tal decisão, que há-de encontrar no caminho quem lhe vai salvar o ânimo. É a dona Celeste que ali está, passada a primeira esquina, sentada a ler num banquito, à sombra da parede. Veio dar um sol às pernas, cansadas de tantas lidas que já não querem andar.
A dona Celeste põe o viajante a remorder invejas, por mais que uma razão. Está a ler um livrito das suas devoções e não precisa de óculos, embora leve já na conta os seus noventa e um anos. Além disso traz no rosto a maior serenidade que o viajante já viu, e oferece-lhe o ar mais manso que ele podia encontrar. O viajante, que a vida tornou céptico, olha para esta figura e fica sem saber o que fará do cepticismo. Diz ela que mora ali ao lado, na casa duma filha, embora tenha casa sua, muito perto. Mas não pode lá viver, porque a vida não é sempre o que esperamos dela.
Não nasceu nesta aldeia, criou-se na terra quente. Veio para cá trabalhar numa casa de comércio, com pouco mais de vinte anos. E quando o patrão morreu, que já era bem velho, os herdeiros viviam na cidade e entregaram-lhe o governo da casa. Eram as vendas do comércio, e as rendas de muitas terras, e a lã de vários rebanhos quando chegava a tosquia, e as vitelas que os pobres aí criavam à razão de meio-ganho.
Havia então um rapaz que ficara lá na aldeia e andava a requestá-la. Chamava-se ele Albino, e não viam outra coisa aqueles olhos. Mas ela ainda não estava decidida, o que mais a ocupava era a carga dos trabalhos e as obrigações que tinha. Ou talvez gostasse doutro, não sabe explicar bem, ele tinha-se ido à África e ainda lhe mandou cartas que vinham de Benguela. Mas breve pararam elas, porque apanhou uma febre e lá morreu.
Com uma tristeza assim, mais parado ficou à dona Celeste o coração. E foi no meio de tal indecisão que apareceu um rapazola, irmão do falecido, que andara em Matosinhos a servir de marçano. Deu-lhe pena o desamparo do rapaz. O Albino bem mandou dizer que dava cabo da vida se não casasse com ela. Mas quem é que ia levar a sério uma palavra assim?
O viajante está encantado a ouvir esta conversa, já se esqueceu dos conflitos que trazia. Senta-se numa pedra e nem desvia os olhos da figura.
Quando a vida do comércio acabou, os senhores que estavam na cidade mudaram-na de casa e fizeram-na feitora. Era a casa mais mimosa da terra, chamavam-lhe o paraíso. E foi então que aceitou o casamento, por causa da lida das terras, com o tal irmão do falecido em Benguela. No mesmo dia da boda, lá na terra onde ficara, foram dar com o Albino afogado num poço.
A vida da dona Celeste tem sido bem prolongada, mas não foi o que podia, nem o que merecia ser. Quem se quer fazer não pode, quem o é já nasce feito, como ela explica, serena. Criou os seus cinco filhos, que não se cansa de encomendar a Deus, e lá fizeram da vida o que souberam. Muitas vezes sente pena das sem-razões antigas de tanto mau viver, e das aflições em que eles se criaram. Mas o seu homem era assim, foi sempre um destemperado, um algoz ensoberbado que não chegou a crescer.
– Eu levei a cruz ao meu calvário, que sempre quis viver de coração lavado. Até que um dia, com oitenta e oito anos, tive que fugir à frente dele para escapar às bengaladas, com este braço partido e o sangue a cair no chão. Foi Deus que me arranjou forças para me arrastar até à minha filha.
A dona Celeste diz estas coisas terríveis como se não fossem suas. Tem nos olhos a mansidão tranquila de quem já fez pelo mundo o que tinha a fazer. Não venha ele a salvar-se, não estará nela a culpa. E agora só está à espera que Deus se lembre dela, e um dia a venha buscar. Ao viajante vem-lhe à cabeça um turbilhão de pensamentos, nem sabe bem o que fazer com eles. Alguma coisa o prende aqui, será porque está perto um paraíso. Mas decide ir-se embora, que veio à procura de conversa e acabou silenciado.
– Não tenha pressa de partir, não sabe a falta que faz!
– Que falta faço eu?!

Jorge Carvalheira

Pegos floridos

Nunca soube por que lhe chamavam Zé Maneto, se nada lhe faltava no corpo. Além do vinho, que desse andava sempre precisado. Aparecia lá em casa nos serões de inverno, quando acabava de cear. Pedia um copo, bebia dois ou três, aconchegava as pernas à lareira. E punha-se a desfiar enigmas e charadas, que ia inventar não sei onde. Seria a força do vinho, o alma do diabo!
Uma ocasião havia um franganote, que andava a namorar a filha do moleiro. Ia bem, o namoro. A um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar. O mar eu nunca o tinha visto, não sabia o que era uma cabeça doida, e ficava-me para trás, a imaginar um riso transparente. Ele já lá ia adiante.
Um dia foi-se a ver a namorada, passou a tarde a ajudá-la na horta, a regar o linhal. E foi ao morrer da tarde que lhe deixou cair a escusada pergunta, quando é que hei-de cá tornar a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e os moirões já estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Disse isto e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
O mequetrefe passou toda a noite em contendas, a cabeça num badanal. Mas chegara atrasado à feira de Deus, o pobre. E não sabendo atinar com a hora da moleira, nunca mais lá voltou.
Passaram anos em que ele andou por longe, foi-se à cidade, fez vida. E na vida há sempre um dia, basta darmos tempo ao tempo. Nesse dia foi ele à festa da Senhora da Saúde, e encontrou-a a sair da capela, tinha acabado o sermão. Quando ela o viu, cerrou a catadura. – Desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros. – Hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, já homens feitos, nunca mais lá tornaste… E os olhos a fugirem, perturbados. – Nunca atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e agora me dirás que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, no rosto uma rosa a abrir. – Florescem os pegos todos, à hora em que dá neles o lume das estrelas; caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam; e os mortos enterram os vivos, quando só sobrarem cinzas num fogo que se apagou. – Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Bebia o último copo. – Para alumiar o caminho! – galhofava o Zé Maneto, que o sabia já de cor.

Jorge Carvalheira

Pai dos pobres

O Felisberto já desvendou o seu crime e já se despediu do viajante. Este fica sozinho, pensativo, e não encontra a ponta deste novelo, por mais que se interrogue. Por sua própria experiência sabe ser a ignorância a mais escura das noites. Mas fica sempre pasmado, diante da escuridão. Sobretudo se já não há milagre que lhe possa valer.
Deixa os pombais para trás e já lá vai, ao longo do paredão do cemitério, e decide fazer-lhe uma visita. A um lado porque um cemitério é um espelho do mundo, e a outro porque vai à procura de sinais dum homem corajoso, de quem ouviu falar. O cemitério é obra asseada, tem aspecto cuidado e dimensão apropriada. Logo nele avultam três jazigos a chamar a atenção, mas antes quer o viajante descobrir a campa do padre Júlio de Moreira, que aqui foi sepultado. Vai andando devagar, entre lápides de gosto duvidoso, e neste particular conclui que já tem visto pior. Porém, como noutros lugares, quanto mais recentes são as sepulturas, mais estapafúrdios são os arrebiques e mais surpreendente o bricabraque. Por razões que só eles saberão, decidiram os vivos obrigar os defuntos a tomar parte nestes festins de mau gosto bacoco.
Mas já o viajante encontra o que procura. Encostados a uma campa recente que lhe tomou o lugar, lá estão os restos da lápide funerária do padre Júlio, uma cruz celta e um livro de pedra que ali deixaram aberto, e nunca ninguém fechou. Antigamente havia símbolos na morte, havia um pensamento ritual, uma coluna quebrada, um anjo de asa caída. Agora há só alindamentos, enfeites de arraial, um dia em breve serão formas vazias, entulho cultural.
O homem era de Almendra. E logo que se fez padre veio parar a esta freguesia, estava a chegar aí o século XX. O padre Júlio jurara, de boa fé, o celibato dos cânones. Mas quando aqui encontrou a Carmina, teve mais força a vida que as papeladas dela. A voz comum acabou por estranhar tão chegada mancebia. E bem fez o padre orelha mouca aos ditos, mas o bispo exilou-o para Moreira de Rei, por trás daqueles montes. Foi então a vez de Carmina pôr os pés ao caminho. Era inverno, a chegar a primavera, e ela lá vai, ladeira abaixo, por entre as eiras da Varela, passa a ponte velha sobre a Teja, faz uma vénia contrita ao santo que além está na capela, um São Sebastião debaixo duns negrilhos, sobe os cerros do Montrangão, atravessa a charneca das Terras Grandes, e senta-se a descansar no alto de Moreira, abrigada à capela do mesmo santo que outra vez ali a está esperando, à entrada do povo. Carmina dá tempo que chegue o fim da tarde, para dar menos nas vistas.
Outra vez o bispo investe contra a mundaneidade, e outra vez resistem Carmina e padre Júlio, ninguém sabe agora dizer qual deles com mais vigor. O bispo suspende o pastor, tira-lhe o priorado, agita uma interdição. Carmina responde mudando-se para Moreira, e se este bispo fosse uma vez ao jardim do paraíso, já ficava a saber que nada tem mais força que uma boa paixão. No fim o bispo recuou. E Moreira, que já tinha tido um rei vencido, ganhou agora dois vitoriosos, e uma família nova.
A bem dizer o viajante não se agrada de fariseus fraldisqueiros, mas o padre Júlio era um homem justo. Percebeu a grandíssima distância que vai de Cristo à igreja que dele dizem. E, tendo que escolher, não hesitou. Entregava as pistolas ao sacristão antes de entrar para a missa. Mas cá fora era republicano, apoiava Afonso Costa, e defendia, ó deuses, as leis de separação entre a igreja e o estado, contra o cego furor da clerezia. Num dia de invernia entrou, para se aquecer, numa cozinha do povo. A dona da casa bem que lhe dava uma chouriça assada, era o melhor que tinha. Mas era dia de abstinência e ela não pagara as bulas. O padre tirou uma bula do bolso, embrulhou nela a chouriça, assou-a no borralho e todos a comeram, com grande satisfação e muito maior proveito.
– Adeus, ó pai dos pobres! – chorava o povo de Moreira, quando o padre morreu. O viajante pensa que não se pode levar prenda melhor, depois de morto.

Jorge Carvalheira

Passeio bloguítico

No blogue colectivo Da Literatura, Eduardo Pitta assinala o reaparecimento de Diário Íntimo, livro de poemas de Luís Amaro. Belo livro, excelente edição. Acertada lembrança.

Em Blue Everest, João Camilo reflecte sobre as vantagens do silêncio. Transcrevo:

Não falar é não querer distinguir, preferir não tomar partido. Quem não fala não escolhe, mas também não recusa; não acerta, mas também não erra; não agrada, mas também não ofende; não mostra que sabe, mas também não mostra que ignora; não se auto-retrata, mas também não tem a pretensão de retratar o mundo; não elogia, mas também não condena; não se compromete, mas também não compromete ninguém; não adula nem põe num altar, mas também não calunia nem ostraciza; não se eleva, mas também não se rebaixa. Quem não falou não tem de falar de novo para corrigir o que disse antes. Apesar disso falamos. Porquê?

Portugal profundo – 1 (encore)

Alguma ingenuidade impediu-me de prever um manual explicativo ao texto anterior, em forma de relatório burocrático. São formas que dizem muito menos, sobre qualquer assunto, como geralmente é sabido. Mas são mais explicadinhas, dão menos trabalho a ler. E assim servirão melhor às zonas mais sensíveis da respeitável caixa de comentários.
Toda a gente sabe que o país é uma aranha. Tem um rotundo ventre centrado na capital e as patas nas auto-estradas. E uma Casa da Música fazia falta ao Porto, tanto como o pão da boca. O Porto ia a concertos ao Coliseu, à sua Traviata, nos intervalos dum circo ou de espectáculos avulsos, sem desprimor. Há muitos anos que a cidade já merecia outra coisa, abençoada Casa.
É ela um meteoro vanguardista, e não peca por isso. Embora fique a suspeita de ter havido ali um sacrifício à forma, mais que à função. Caiu ali e provocou em volta ondas de choque, que as rugas no terreno atestam. São de mármore travertino, os ondulados. Vieram da Jordânia e são perfeitos.
A estrutura é de betão pigmentado, apto a assumir a patine mais adequada, quando os anos passarem. E de alumínio e vidro. Tem lá dentro um quilómetro de escadarias e um mundo inteiro de arrojos tecnológicos, que nos escapam à imaginação. Na construção e na acústica. O coração do conjunto é a Sala Guilhermina Suggia, cuja acústica (a da sala) já se coloca entre as melhores do mundo. Atentos, nas paredes, enquanto nós estamos ali refastelados, há componentes específicos de madeira que se ocupam de modular-nos os graves, os médios e os agudos. Os painéis das paredes têm revestimentos a folha de ouro, a sugerir os veios da madeira. E melómanos há que já levaram para casa um ourito raspado na unha do mindinho. Os veios de ouro estão ali a sugerir-nos o período barroco, o tempo dos desvarios dum rei que nos coube em sorte. Ou nossos, não sei bem, que isso não foi explicado.
A Sala, cobrindo a orquestra, dispõe duma canópia em PVC, que pesa quatro toneladas. É única no mundo (outras pesarão quarenta) e move-se a impulsos dum computador. Na parede da direita ressalta a caixa barroca dum órgão de tubos, a fazer lembrar uma nave de Mafra. Na da esquerda está a caixa doutro órgão de tubos, mais tardio. Chamaram-lhe romântico e não faz lembrar nada. As caixas sobressaem ali, nos seus volumes, por enquanto silenciosas, por estarem vazias. Não tem havido verbas para lhes meter lá dentro a maquinaria que lhes é própria. Mas esta capela imperfeita não nos interessa muito, que basta adaptar-lhe o reportório.
A nascente e a poente há janelões de vidro a receber a luz. É um vidro grossíssimo, ondulado, por causa da refracção, e forma dupla parede, para obviar aos gritos das ambulâncias. Os planos do vidro, com doze metros de comprido, vieram duma fundição de Barcelona. E os janelões têm cortinas acústicas para fechar, para dosear, ou para velar a luz. A Sala dispõe de 1238 lugares, em tudo equivalentes, além de um vasto coro nas costas da orquestra, que pode ser ocupado segundo as necessidades. E bem assim dois camarotes laterais, que parecem reservados a VIP’s e não o são.
Além deste auditório há um segundo, mais pequeno, que é menos bafejado pela tecnologia e não provoca sobressaltos. O resto, dentro da Casa, para lá do administrativo indispensável, são aproveitamentos acessórios, que têm o seu papel: câmaras de trabalho e ensaio de artistas, um atelier de criação musical infantil computorizada, um outro de workshops juvenis, e um espaço de baby-sitting, com acesso auditivo opcional aos espectáculos.
Por ser o município mais destratado pela dita síndrome da aranha capital, e por jogar no todo do país uma função maior, o Porto precisava duma Casa da Música. E o meteoro realmente embasbaca. Mas tem o seu senão. A um lado, quando quiserem voltar à Traviata, ou aguardam os portuenses a saída dos leões e voltam ao Coliseu, ou mandam o chauffeur rumar a outras paragens. Porque a Casa da Música é um concert hall, uma Philharmonie de gente rica. E o conceito não prevê fosso de orquestra, nem os equipamentos requeridos por recitais operáticos. Embora a meio caminho, não perderam tudo, os portuenses. Já podem assistir como gente à 9ª de Beethoven, sem pedir contenção à vizinhança. Porém, à fortuna que se enterrou ali, de impostos de quem os paga, merecia esta cidade melhor sorte.
E falta o último lado, ao janelão poente. Ali ao pé já se escavam os caboucos duma sede bancária, com 50 metros de altura. Vai comer ao meteoro metade do fulgor arquitectónico. Há gente, mesmo assim, de olhos em bico, inchada de contente. Eu comungo do seu contentamento, na suspeita de que não temos remissão.

Jorge Carvalheira

«Jogar bonito»

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Hoje, no «Público», o jornalista JORGE MARMELO escreve na sua crónica desportiva, a propósito do Mundial em curso:

«Quando a Alemanha, bem vistas as coisas, tem sido, entre as quatro semifinalistas, a única equipa capaz de jogar a bola de forma minimamente empolgante, está tudo dito. O resto é futebolzinho de risco zero, burocrático e calculista, caravaggiano e fatimista».

Há ainda uma oportunidade para ganhar, ou para perder, dignamente.

O escritor Manuel Jorge Marmelo está aqui. E o blogueiro aqui, com um obrigado ao Joao Luc.

Portugal profundo – 2

Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.
O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias, e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que não separa o facto do direito, chama-lhe padre Abreu. Terá razão, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e há gente que entrou no céu por sua mão.
Há tempos havia que enterrar um cristão numa aldeia, dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a fazer-lhe o funeral. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens, e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.
O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.
– Pois faça aí o responsório dum defunto! – ordenou o juiz, a esfolhear os códigos. – Já veremos se merece remissão!
Não pedia outra coisa, o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.

Jorge Carvalheira

Portugal profundo – 1

Quem vai ao Porto vem do sul. Chega à margem do rio e dá com o Porto do outro lado, húmido e escuro, como as pedras antigas. A cair devagar pelas escarpas. Fizeram-no assim para durar muito, como os casacos velhos. Já não agasalham grande coisa, mas ainda servem.
Um poeta chamou-lhe o arrabalde de si mesmo, e quem o fez assim nunca mais olhou para ele, até chegar, em 2001, a Capital da Cultura. Algumas ruas ficaram transitáveis.
O Porto é o retrato mais inteiro que se pode fazer de todos nós. Cabemos todos lá. É o país integral, tirando os arrebiques. Ao pé dele um Rossio qualquer, um largo em Santarém, uma Albufeira de cimento, são curiosidades modernas.
Como imagem dum país de equívocos ou mitos, o Porto junta aos mitos os equívocos. O vinho, que é da casa, vem todo do Pinhão. Ufana-se de ser a terra do trabalho, quando apenas esbraceja a ver se mata a fome. Quando começa o verão solta no ar balões de mecha a arder, para ilustrar o S. João e incendiar pinhais. A cidade mais paroquial do hemisfério, onde o Mozart é muito conhecido porque já jogou nos lampiões, exercita o efémero em Serralves, vai a concertos minimais no Rivoli. E mandou fazer uma Casa da Música, multiplicando por três os prazos de entrega, e por seis o orçamento. Ficou com um vistoso meteoro, onde alternam lanços de escadaria com firmamentos vazios.
A zona histórica do Porto foi, há dez anos, património mundial. E agora, por já não ser português, desaba o património nas escarpas. O resto da cidade antiga é um campo devoluto, a apodrecer aos poucos, entre cheiros a mofo e a óleos de cozinha requentados.
Toda a beleza concentrada do Porto não enche um pátio de Évora. O lugar mais nobre da cidade, que são os Aliados, faz de largo das camionetas. A roncar, ao ralenti, à espera do horário da tabela.
Se os portugueses todos fizessem Portugal, punham sotaque do Porto, o único com marca na ourela. Levantavam-se cedo e iam a Lisboa, tirar a capital da cama. Assim, nem o rio mais homem deste mundo resiste a esta cidade. Quando lá chega encolhe-se, mete o rabo entre as pernas, e safa-se para o mar. Como ribeira qualquer do sexo fraco.

Jorge Carvalheira

Neo-realismo

Um grande mar foi o que deixou na campina a chuva de quarenta dias e quarenta noites.
As vinhas morreram afogadas no lodo.
Os ratos e os bois estrebucharam na torrente, e lá foram.
Os homens ficaram torcendo as mãos, desamparados.
Melhor fizeram os galos e os pardais, que assaltaram a ventana do campanário.

Jorge Carvalheira