Arquivo da Categoria: Jorge Carvalheira

Mar alto e bocas do mundo

Alfredo andou nas bocas do mundo pela primeira vez há-de haver um ano, aqui no Aspirina. Deixara para trás o mar alto de Quipert, ao pé de Nantes, apanhara o Sud-Expresso e vinha ver a mulher, à espera dele em Mira.

Embrulhado em considerandos sobre o salário que tinha, aguentou a travessia de Castela nocturna a poder de cervejas. Chegou à Pampilhosa já toldado, a muito custo encontrou a mulher, e quando lhe passou a bebedeira já estava de regresso a Quipert, outra vez a atravessar Castela.

Hoje volta Alfredo às bocas do mundo pela última vez, através do Aspirina. Há dias a tempestade apanhou-o no mar de Nantes, afundou-lhe a traineira, e em menos de meia hora já o tinha congelado.

Homenagem

(a Thomas Ehrling, operário no Lausitz, ao tempo em que os havia)

O homem está sentado debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, no pequeno quintal. Vagueiam-lhe os olhos, silenciosos, na paisagem breve, a terra é plana e o bosque de bétulas fecha logo ali o horizonte, atrás dele só a pesada silhueta da fábrica de briquetes. As últimas folhas do outono passam levadas na frialdade da brisa, por isso o homem tem este ar arrepiado na face, e tem húmidos os olhos inquietos. Não sabemos decifrar-lhe a expressão nem contar-lhe os anos do rosto, vemos é que tem na fronte rugas pronunciadas, será a gravidade do momento que as torna mais fundas.

Hoje não foi trabalhar, nem sequer se aproximou do portão da fábrica. Rebelaram-se nele rotinas muito antigas mas ficou aqui, debaixo da macieira que dá maçãs vermelhas, os olhos incapazes de furar para lá das bétulas, incapazes de passar além da silhueta da fábrica velha, onde a altíssima chaminé deixou de fumegar.

Divagam-lhe no ar frio recordações distantes, neste céu que subitamente ficou vazio. Ele sabe, por ouvir contar, que há muitos anos reinava aqui uma grande quietude plácida e verde, com bosques de abetos, e faias, e carvalhos, vinham os homens com lanças e dardos e corriam atrás dos gamos que se aventuravam nos prados. Então eram os rios claros e bucólicos, desciam das montanhas distantes e passavam tranquilamente, e traziam nas águas peixes prateados que os homens apresavam em armadilhas de cana, nas margens baixas. Para lá da floresta semeava-se o trigo com arados antigos, e nas hortas, por trás das casas de madeira, as galinhas guardavam os filhos das ameaças do gavião, abrigadas aos caules de ruibarbo e de funcho.

Um dia, quando as cidades começaram a crescer e a vida dos homens apareceu com exigências novas, um artesão que passava no antigo vale glaciar encontrou sinais de minério de ferro à superfície. E não demorou a chegar o inferno vivo dos regatos de gusa a arder nas fundições, e a fumarada dos altos-fornos, e o cantar matutino do martelo no ferro quente das forjas. Encontraram-se na orla da floresta depósitos de linhite, e logo se rasgou a barriga da terra para os explorar. E construíram-se fábricas para albergar as máquinas de volantes aterradores, que engoliam o carvão e vomitavam pequenos briquetes negros, logo levados por vagões apressados a incendiar as caldeiras das máquinas a vapor. E surgiram na paisagem, riscando o céu e perturbando os deuses que habitavam nos bosques, grossos cabos negros que levavam para longe uma energia nova e misteriosa.

Os homens dormiram cansados mas contentes, por acreditarem no progresso. E a terra foi-se cobrindo desta poeirada escura, gerada no ventre das fábricas, tão fina e tão subtil como areia de ampulhetas, a marcar a galopada frenética das máquinas.

O homem olha, em sua volta, o manto negro, regurgitado pelas chaminés ao longo de séculos, dispersado pelo vento sobre as terras e os caminhos, sobre os jardins e os telhados das casas, e as sepulturas dos mortos. Debaixo deste manto viveram gerações que produziram riquezas, modelaram o mundo e alargaram o saber dos homens. Nesta mesma fábrica trabalhou o seu pai, logo a seguir à guerra. Foi uma canseira pôr tudo a funcionar depois de tanta destruição, contava ele. Mas havia os direitos da vida depois de tanta morte, faziam falta o calor e a energia que as cidades engolem para serem habitáveis, à custa de privações e sacrifícios a vida recompôs-se e a produção recomeçou a sair.

Mais tarde chegou a sua vez, o homem entrou na fábrica e nunca trabalhou noutro lugar. Moldaram-se-lhe os gestos ao ranger das gruas, ao matraquear incessante das válvulas, e acabou por lhe adoptar o corpo a respiração das velhas máquinas, devorando o carvão que chegava em vagões cobertos de fuligem. De dia ou de noite a sua própria cara era tão escura e cheia de majestade como a das locomotivas que vinham da mina a céu aberto, a galopar na paisagem violentada.

Habituado a cumprir metas de produção, planos quinquenais, emulações proletárias, o homem construiu a sua vida ao compasso infatigável da fábrica. E para ele era motivo de esperança e orgulho ver chegar, dia a dia, os longos camiões que vinham da fronteira, de cidades e países distantes, e faziam fila à espera dos briquetes que deslizavam nos tapetes rolantes.

Mas quem poderá desvendar os caprichos da roda do mundo, e do interesse dos poderosos? Um dia a fábrica parou e todas as chaminés da paisagem deixaram de fumegar, como coisas inúteis. O seu trabalho é agora arrancar dos alicerces aquilo tudo que foi a sua vida. Deixaram de ter préstimo, ele e as velhas chaminés, foi o que lhe disseram.

Tudo perdeu, de repente, o sentido, por isso o homem ficou aqui sentado, todo o dia, no pequeno quintal. Amanhã há-de ir de novo à fábrica, vencerá o desespero que lhe treme nas mãos, e desmontará, peça a peça, as máquinas antigas, encharcadas em óleo, como quem se desmonta a si próprio. Depois há-de vir o camartelo encarregar-se do resto. E ele talvez receba uma pensão para deixar de viver.

No céu cinzento, por trás da espessura das nuvens, o velho Cronos, o ancião barbudo, vai devorando pacientemente os filhos. E espreita, quem sabe, as maçãs vermelhas que pendem dos ramos, indiferentes ao chuviscar do Outono. São carnudas e frias.

Primícias 4

Com este trabalho, encerra Jorge Carvalheira o que chama «contributo para a história da nossa civilização».

*

Era assim. Mas já dois séculos antes, mal tinha o Gama achado o caminho das Índias, houve entre nós outro monarca excelente e piedoso, que lá fora estipendiou os melhores mestres do moderno pensamento, para ilustração das escolas do reino, um deles, escocês, o viria a crismar de rei dos muitos nomes. Quem não tem ciência paga por ela, já uma vez ficou dito por ser verdade, como se vê tão antiga como a própria ignorância. A Salamanca foi ele requestar Clenardo de Lovaina, um homem de saber e modestos costumes, para educar os príncipes seus filhos. Ora já seu pai, para calamento e satisfação do fanatismo, ao mesmo tempo em que abria as portas do império, logo lhe amputava as pernas, ao expulsar do país os hebreus, donos dos cabedais e do saber que a empresa sumamente exigia. De modo igual, o piedoso rei dos muitos nomes, enquanto chamava os homens que às escolas trariam saber e civilização, logo mandou vir de Roma o jesuíta, que sem demora faria do reino coisa sua. Ademais, por lhe parecer isso tão pouco, logo aos mesmos renomados mestres cortava as pernas e o pescoço, requisitando ao papa a Santa Inquisição, que sem demora os meteria a tratos, por hereges. Entenda quem puder, e antes que tarde seja ouçamos a Clenardo, ele nos contará o que viu e deixou dito.

Chega do mar escravaria e ouro, e pimenta às quintaladas, por isso vive Portugal à grande e à francesa, qualquer trabalho útil se tem como vergonha. Jazem os campos de pousio a monte, que todos se vão ao cheiro da canela, às margens do rio de Meca, e muito melhor não estariam as artes mecânicas, se os ruivos europeus não viessem cá dentro exercitá-las. Os naturais desdenham servir-se das mãos, e tudo é feito por escravos e mouros cativos, esses que o próprio Deus despreza, ele é a preta da Mina que vai ao mercado, é a preta da Mina que lava a roupa, é a preta da Mina que varre a casa, é a preta da Mina que vai pela infusa de água, é a preta da Mina que faz os despejos à hora conveniente, e é ainda a preta da Mina a parir os filhos escravos com que havemos de lucrar no mercado, como se fizéssemos criação de pombos. Todos somos fidalgos, ou para lá caminhamos, por isso nos acompanha sempre, rua abaixo ou rua acima, a mesma comitiva, adiante os dois criados batedores, e um terceiro que nos leva o chapéu, e um quarto o capote, não vá ele chover, um quinto segura as rédeas da cavalgadura, um sexto vai ao estribo, a cuidar-nos da seda dos sapatos, um sétimo traz a escova, com que nos limpa do fato as poeiradas da rua imunda, um oitavo nos estenderá o pente em sendo necessário, e ao nono caberá enxugar com uma fralda o suor da cavalgadura, vindo ela a ser desmontada. Com tudo isto sofre a mantença da casa, onde a custo se acha que comer, mormente quando chega o domingo, dia em que ninguém apanha rabanetes na praça.

Aqui chegado, deu Gabriel com a ouvinte rendida ao fio cristalino da sua erudição. Não venho com estas coisas a dar-lhe lições de história, apressou-se a dizer, por certo dispensará as minhas, se as teve melhores. Porém, vastos demais são os tempos e muito longa a forma de os decifrar e dizer, para vidas tão curtas como as nossas, cada um há-de saber da sua.

Geneviève agitou-se no banco, no íntimo a sentir-se culpada, da ligeireza com que falara da revolução das flores. Quis saber por que dava Gabriel ouvidos a palavras de estrangeiros, em vez de usar vozes de portugueses, se da portuguesa história se tratava. Gabriel deixou o reparo no ar, urgia concluir.

O que pretendo mostrar-lhe, por isso de tão longe parto, de onde tudo começou, é que a aventura da Índia foi para os portugueses uma tormenta muito maior que a nau, como se ouve dizer, foi maldição que o país ficou, desde então, condenado a remir. Como se, ao vencerem o mar, tivessem os marinheiros desafiado uma lei qualquer do universo, ou um regulamento caprichoso da vida. Alguns no reino o perceberam, alguns em vão se lhe opuseram, com tão poucos homens e mais diminutos recursos, muitos ainda hoje não entendem como tudo foi possível. E o espanto maior, para quem nos conheça bem, é que toda a empresa se iniciou no mais perfeito conhecimento e no maior rigor da técnica. Os portugueses construíram as naus mais avançadas desse tempo, conheceram os ventos e correntes do mar como ninguém, elaboraram cartas, artes de marear e roteiros de viagem que eram a cobiça dos mestres europeus. Venceram as lendas antigas do mar tenebroso e alcançaram a Índia, e submeteram as deslumbrantes terras orientais à força de canhões, e feriram de morte culturas requintadas, e apoderaram-se das rotas do comércio com uma ferocidade selvagem, e trouxeram à Europa os ouros da Mina e do Monomotapa, e os escravos de Ajudá, e as canelas do Ceilão, e as pimentas do Malabar, e as porcelanas da China, e as sedas do Japão, e os cavalos da Pérsia, e os algodões de Cambaia, e a noz-moscada das Molucas, e os rubis, as pérolas, as lacas, e até um rinoceronte que emboscaram no sertão de Bengala e vão oferecer ao papa. Já se arredondam em Roma bocas de estupefacção, sabes tu lá, minha filha, diz-se que vai chegar aí o supino fulgor do exotismo. Porém o mor espanto não vamos nós poder vê-lo, e é o que haveria de mostrar-se nos grandes olhos da béstia couraçada, por se ver assim à frente dum leão, ainda por cima papa. É que já se vai afundando, à vista de Génova, a caravela que o transporta, tarde se arrependem os náufragos de tanta gala perdida, e mais que todos repesa está a fera, para tão pouco não merecia a pena ter dado a volta a metade do mundo, de estômago revoltado. Um dia há-de ela entrar no palácio de S. Pedro, mas pela simples porta do cavalo, já inofensiva e amparada em cabrestantes, a barriga inchada de palhas amassadas e os velados olhos mordidos dos caranguejos.

Parecia a vida uma festa.

Primícias 3

Lá fora batem rijos os aços do comboio furando a noite, alguém lhe chamou idêntica, será verdade. Do que não há que duvidar, se ela própria o afirma, é chamar-se Geneviève esta mulher, e regressar a casa depois duma semana inteira de lições numa escola de sociologia, malquista ciência esta em Portugal, se todas, há séculos, o não são. E de novo lhe aflora ao rosto uma surpresa, agora sim, real e verdadeira, quando sabe serem portugueses estes viajantes de gesto polido, de semblante cortês um pouco melancólico, que falam bem francês e se dirigem a Paris. Dos portugueses, que há anos povoaram a França, tudo quanto lhe consta é serem eles muito sofridos nos trabalhos rudes e elas porteiras humílimas, quem é que falou um dia em rainhas destronadas, uns e outros vivendo em bidonvilles, e a salvarem às vezes da lixeira, a horas da madrugada, bonecos manetas e ursinhos de olhos vazados, com que os filhos hão-de brincar. De Portugal tem sabido alguma coisa pela imprensa, no último ano falou-se bastante duma revolução de flores com militares à mistura, ou duma estranha revolução de militares misturados com as flores. Ao dizer isto a mulher riu-se do jogo de palavras, e logo tropeçou no ar subitamente sério de Gabriel, que não apreciou o trocadilho, para socióloga andará a senhora pouco atenta às realidades do mundo, chama-se a isso na minha terra espeto de pau em casa de ferreiro. Geneviève acusou o toque, faiscou-lhe no olhar uma vibração imperceptível, um virar subtil de agulha, e foi então que deixou cair o pedido cortês, fala-me da tua revolução.

Gabriel apanhou do assento a revista que pusera de lado, alisou-lhe a palma lenta da mão sobre o joelho, ganhou alguns segundos na busca deste fio de novelo emaranhado, e começou a responder.

A minha revolução é uma história marcada há muitos anos num calendário antigo, minha cara senhora, a minha geração tinha-a inscrita no destino desde há séculos, como se os portugueses vivessem ainda no tempo das tragédias gregas, suspensos da mão de fados caprichosos. Nessa história muitos lances dariam para rir se tão trágicos não fossem, alguns de nós se habituaram há muito a olhá-los como farsa e viram costas, por lhes parecer este o modo mais fácil de os esquecer, quem vai agora averiguar razões. Ademais não se deslinda em meia dúzia de palavras, sem esforço e muito tempo, ainda bem que Paris fica longe, a uma noite inteira de caminho.

E, se por algum lado havemos de começar, dir-lhe-ei que existiu em Portugal, um dia, um rei magnânimo e beato, ninguém lhe veio a chamar rei-sol porque um francês qualquer se antecipou, o qual se divertia a assistir aos autos-de-fé dos padres na ribeira do Tejo, e gastou o melhor da vida a povoar o reino de bastardos, que semeou a esmo nos abrasados ventres da freiria incontável de Lisboa. Um dia chamou para lhe estudar o reino o senhor Merveilleux, naturalista suíço, reputado de fama e promissor de nome, pois quem não tem ciência paga por ela, toda a vida assim foi, mormente em se tratando do rei de Portugal que não tem precisão de olhar a despesas, assim se mantenham firmes os filões de oiro do sertão do Brasil.

Comprovam os achados botânicos da utilíssima genciana, curadora de pestes e abundosa nos altos lugares da província da Beira, que o suíço meteu pés aos caminhos e fez o que dele se esperava. Mas não ficou por aí. Homem atento e oportuno, vindo a saber das descargas de salitre que os mercadores traziam da Holanda, concebeu o plano de explorar os abundantes filões de Alcabideche. E apresentou os seus empenhos numa noite, ao serão com o velho marquês de Fronteira, vedor da fazenda, presidente do desembargo do paço, membro do conselho de estado e mordomo-mor da rainha austríaca. Havia de parecer adquirido o desembargo da empresa, melhor porta não havia onde bater. Porém, em vez do bom despacho, o que o homem ouviu foi apurada lição de ciência política, e a prova cabal, se falta cá fizesse, de como em Portugal é subtil e engenhosa a arte de governar.

Diz o marquês que numerosos estrangeiros vêm apoquentando el-rei com suas memórias e propostas, visando enriquecer-se a si próprios e ao reino através da agricultura ou das manufacturas, ignorantes de que tais iniciativas e empreendimentos não convêm ao bem do estado, e menos ainda ao sossego e à ventura dos seus habitantes. Pois já que Deus fez do reino o dono de todo o ouro que se tira do Brasil, quase sem ter de cavar, e pois que esse ouro está distante, a mais de duzentas léguas para o interior, o único perigo à vista é a cobiça dos países estrangeiros, que, assaltando os nossos portos, poderiam vir a privar-nos do desfrute de tais tesouros. Nada disso acontecerá, porém, enquanto os ingleses dispuserem do país como vazadouro dos produtos das suas terras e indústrias, caso em que verterão o seu sangue até à derradeira gota, para nos defenderem.

Não têm outra escolha os ingleses, senão trabalhar e proteger-nos, e lá terão a paga assegurada, chega a dizer-se que o ouro do Brasil não alcança a pôr pé em terra portuguesa, que sai das nossas naus para entrar nos porões das armadas inglesas. E assim será, porém do mal o menos, antigamente eram as fragatas holandesas o baú do ouro das Índias, sem mais contrapartida. Pois nós damos aos ingleses maior lucro do que todas as outras nações juntas, sendo eles os únicos a embarcar os nossos vinhos do Douro e as nossas tenras vitelas do Barroso, para uns e outras nos falta a nós aguçado paladar.

Havemos, isso sim, de temer-nos de franceses, prosseguiu o marquês, de quem gostamos mais que dos ingleses, já que somos da mesma religião, e até lhes damos a casar as nossas filhas. Mas a protecção duns nos é mais útil do que a amizade doutros. Os franceses podem fazer-nos guerra sem ferir o seu comércio, e já o teriam feito se não se temessem, no que seriam prontamente ajudados por outras potências marítimas, zelosas das parcas moedas de ouro que os ingleses lhes deixam. E se estes não levam tudo é por mera artimanha política, já que poderiam fazê-lo, dispondo, como dispõem, abundantemente, de toda a qualidade de mercadorias que nos convêm.

Iguais são os motivos por que não desejamos dar-nos à exploração das minas de cobre do Algarve, e das minas de estanho e prata das partes setentrionais do reino, pois assim iríamos arruinar um dos ramos do comércio inglês. Vós sois suíço, vindes dum país que não tem interesse em contender connosco. Por isso vos falo com o coração nas mãos, e vos revelo o político segredo em que assenta a nossa ventura. Só com Roma não podemos manter altercações, já que Roma, embora precisada de nós, nem por isso deixaria de nos prejudicar. Demasiada bulha vem fazendo el-rei, sem falarmos agora do dispêndio de fazendas, só para que os núncios de Sua Santidade em Portugal tenham direito ao chapéu cardinalício. Para açular a inveja dos nossos vizinhos, bastam as bênçãos que Deus nos distribui no Brasil. Havemos, pois, de viver em paz com toda a cristandade, e governar-nos por tal forma que, se uma parte das nações conspirar em perder-nos, a outra se desunhará para nos defender. Deus nos valerá!

Mas não valeu.

A ninfa

Eram os olhos a maior perdição dela. Tão grandes que neles cabia o mundo, tão escuros e fundos que lembravam o mar. Depois vinha a estampa límpida do rosto, debaixo da gaforina asa de corvo. O lábio húmido, a carnação macia, a flor da face cheia de mistério, a prometer abrir-se num sorriso que não chegava a abrir. O resto era o colo generoso, o ventre inquieto, as colunas das ancas a prometer abismos.
Ninguém sabe explicar como apareceu ali, criada na aldeia, aquela ninfa antiga. Olhava-se para ela e vinham à lembrança as deusas primtivas da fertilidade. O mesmo nome, Pristila, era um sinal pagão.
Dava escola para os lados de Aveiro, e vinha a casa sempre que podia. Chegava na carreira, ao fim da tarde, porque o pai, atento à vida, a reclamava. A bem dizer, era a aldeia inteira que a exigia.
Na vila sabia toda a gente que o Tunante não era boa rês. Era um vilão bastardo, que fazia do mundo uma coutada de caça. E todos lhe guardavam respeitinho, mais por instinto primário de defesa, do que por atributos que não tinha. A ninfa confundiu nele a brutidade grosseira com predicados de macho dominante. E quando vinha à vila, a passear, nem lhe escusava as gaifonas atrevidas, nem os avanços de bruto galaroz. E acabou, já mansa e confundida, a enlear-se no assédio do bargante.
No dia em que as férias começaram chegou a ninfa à vila, desceu da carreira ao fim da tarde. Uma outra que vinha do comboio e seguia para Trevões havia de pô-la em casa. Mas o Tunante estava à espera dela. Cercou-a de rapapés e cortesias, havia de lhe mostrar a loja nova, logo à entrada das muralhas.
A ninfa deixou-se conduzir. E quando veio a hora da carreira, à beirinha da noite, prometeu-lhe o Tunante que um amigo a levaria a casa, de carrinho, à moda das princesas. Ela deixou-se ficar, rendida a semelhante gentileza. Tinha mesa posta e banquete preparado, bom presunto, melhor queijo, de vinho bastava-lhe um dedal, não estava acostumada.
A princípio o Tunante foi cordato, coroou-a de gentilezas, quis levá-la com bons modos. Penteou-lhe a gaforina, passeou-lhe as mãos no flanco, encheu-lhe o copo de vinho. E abriu-lhe um botão do peito, só para ter uma visão.
A ninfa ainda cedeu, o coração num galope. Dum lado o corpo inteiro a amotinar-se, o sangue a romper as veias, o ventre incendiado a extravasar. Doutro lado um grande medo, a cara dele a perder as feições, e um gesto tão poderoso que a assustava.
Quando quis despir-lhe a blusa, a ninfa ainda resistiu. Mordeu o lábio para evitar um grito, cruzou os braços no peito sublevado, encolheu-se no medo. E o Tunante deteve-se um momento, pareceu abandonar o campo de batalha. Foi ajeitar, ao canto, as mantas que lá tinha, depois apagou a luz, ergueu num braçado a ninfa amedrontada e foi estendê-la no chão.
Lá fora passaram socas a tropear na calçada. Porém a ninfa hesitou, reteve outra vez um grito. E já dois braços poderosos lhe sujeitavam o corpo, e as pernas brutas lhe apartavam as colunas, e rudes mãos lhe devassavam o peito. As socas na calçada voltaram a tropear, mas a ninfa retraiu-se num silêncio. Conteve a respiração, não fosse ouvir-se lá fora o ranger do bragal que estilhaçava. Por três vezes entrou nela um vendaval, três vezes a desfolhou. Depois caiu uma escuridão desamparada, e um lago que arrefecia, de lágrimas, de sangue, de suores.
Por fim bateram à porta, era o outro que chegava. Aconchegou a ninfa no banco de trás do seu Volvo marreco e arrancou. Antes de a deixar em casa, era ainda madrugada, foi parar na carreteira dos moinhos do Alcaide, ninguém ali passava àquela hora.
O Tunante recolheu as mantas, fechou a porta da loja. Uma ninfa desfolhada dava casamento certo, era raspar-se um homem para o Brasil ou sujeitar-se aos códigos. Porém, em sendo o festim a meias, era ela assumida marafona e os códigos sossegavam. Cumprisse o amigo a sua parte e era caso resolvido.
Quando o outono chegou, depois das primeiras chuvas, o Tunante subiu para a camioneta e foi recolher à aldeia uns contratos de centeio. Bem o avisaram as sibilas, que desfizesse o negócio, que por lá tinha a morte prometida. Mas ele guardou a sovaqueira no casaco e lá subiu a encosta, a governar a vida. Um homem não saiu para outra coisa das mãos do Criador.
O pai da ninfa já estava à espera dele, encostado no alpendre. E quando o viu saltar da camioneta, de machado nas unhas foi-se a ele. O outro ficou surpreendido, não queria acreditar. Estendeu a mão à sovaqueira e começou a ladear, a ver se era bem verdade. Mas o homem trazia no carão a fúria dum deus irado, como quem chega duma tragédia antiga, o melhor era levar a coisa a sério. E desatou a correr.
As mulheres espreitavam à janela, e havia gente que parava nas hortas, a olhar silenciosa. A própria tarde parou, a ver um homem correr estrada abaixo, atrás doutro que fugia. Quando o sentia mais perto, virava o braço para trás e disparava. Disparou à passagem do ribeiro, e à horta da Teresa Côta, e à subida do negrilho, e à curva da fraga grande.
Agora chegámos nós à fundeira da encosta, e já cruzámos a estrada, e temos à nossa frente o açude da ribeira. Não nos sobra mais que um tiro, e já nos queima o pescoço o bafo de um deus irado. O Tunante apontou-lhe ao coração e disparou. E o machado, que lá vinha como um raio, enterrou-se-lhe no ombro.
Mas vem dalém um pastor, a correr em altos berros, vem salvar esta desgraça. O primeiro já está morto, nada podemos fazer. Para que nos serve o segundo, um vagabundo. E num golpe de machado abriu-lhe a cabeça ao meio.

O sultão

A donzela, digo eu, terá os seus quinze anos. Vai sentada do lado da janela, enquanto masca a chicla ruidosa, num estalar de beiços. Sujeita-lhe a gaforina um par de óculos espelhados, de tartaruga pintada.

Ele vai sentado ao lado, um pé no banco da frente. Vai tão indiferente ao mundo, tão alheio à companhia, faz-me lembrar um sultão.

Os olhares da donzela vão na rua, mas volta e meia cai numa agitação. Debruça-se para ele, varre-lhe a face com a linguita rosada, arrasta-lhe nos lábios um beicinho. Passa-lhe o dedo na cana do nariz, morde-lhe o lóbulo frio, dá-lhe dentadinhas a fingir. E afunda-lhe a língua no fosso auricular que lhe está mais à mão.

Ele queda-se impassível, desdenhoso, e eu fico extasiado a seguir-lhes os maneios. Se não sei muito bem em que mundo me encontro, menos ainda sei de que mundo eles vêm. Ela faz-me lembrar escravas dos haréns. E ele um califa de costumes modernos, que veio à rua arejar a favorita.

À saída não fico mais tranquilo. Ele passou adiante, imperturbável. Porém as calças dela, que são de gancho curto, deixam-lhe a descoberto os balões das cadeiras, a explodir obesidade. Ela enfeitiça-me os olhos com os mistérios do umbigo, antes de me estoirar nas fuças o balãozito da chuinga.

Segue ele à frente, ela atrás, para contentar o profeta. Eu aproveito-lhe o contentamento, e desço de novo à terra.

A minha Ota

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Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. Obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.

Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos, num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.

Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo duma ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, e no fim um abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.

Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.

A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjo da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajudas, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controle. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, gritaram que o médico viesse. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.

Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme de ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.

Lentamente foi amainando o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os serviços do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América. A gente sabe lá!

Jorge Carvalheira

Primícias – 2

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O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores.

Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é. E para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra.

Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver.

E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.

Jorge Carvalheira

Fábula

Entraram à noitinha na taberna, mandaram encher dois copos. Vinham de longe, quiseram impressionar.

– E aquela ribeira que passámos, onde havia um moinho no bico dum choupo?! – atirou ao moço o almocreve.

– Não vá, senhor, sem resposta! Nesse lugar vi um dia dois machos eguariços, carregados de fanegas, a trepar choupo acima! – isto retorquiu um aldeão.

– Pois hoje mesmo topámos nós um ganapo de sete braços! Está aqui o moço que não me deixa em mentira!

– Minta mais a modo, meu amo! Que o rapaz de sete braços não chegámos a topá-lo! Vimos-lhe foi a camisa de sete mangas, pendurada no estendal!

Transigiu o almocreve, e pagou uma geral.

Jorge Carvalheira

Terceira via

No tempo em que havia apenas caminhos de cabras, os portugueses saíam de Lisboa e levavam sete horas até chegar a Braga. Iam de Faro a Bragança seguindo as curvas de nível, e antes acautelavam testamento, para o caso de falecerem no caminho.

Um dia chegou a Europa e trouxe-lhes vias rápidas, e auto-estradas que rasgavam as montanhas, e tinham terceira via nas subidas. A ideia era poupar tempo, era habituá-los lentamente ao caos da civilização, ao moderno frenesi de quem tem pressa e um horário para cumprir. Porém eles, deformados pela história, esquivaram-se ao conceito. E ninguém lhes tira da cabeça que a terceira via das estradas é a dos romeiros que vão a pé a Fátima. Porque cumprir, só as promessas à Virgem.

Agora, indo para a estrada, os condutores portugueses ainda afivelam a máscara do frenesi moderno. Porém, atacados de piedade, oitenta por cento deles reservam a terceira via aos peregrinos. Alguns lá se lembram da Europa, esse hipermercado da civilização. Mas quanto a modernidade, a faixa do meio é-lhes mais que bastante. Encostam os cotovelos ao balcão, mudam de vez em quando de quadril de apoio, e ficam-se a ver passar algum civismo que passa.

Vivem muito bem assim, na alegre inconsciência dos cretinos. E quando calha matam-se uns aos outros, com uma tranquilidade ainda maior.

Jorge Carvalheira

NACIONAL-QUÊ?

Quando lho pediu a juventude inventou-se nacional-revolucionário, um rótulo que parecia cabalístico mas não tinha segredo nenhum. Era o mesmo que ser nacional-socialista, sem o fardo de o parecer. Aqui há tempos andou na televisão, a falar duma ficção recente sua, o retrato retocado dum professor de Finanças muito antigo.

Ponderou-lhe os predicados pitorescos, os cinismos de farsante, as artimanhas de frade. E alargou-se então no que chamou a sua grande inteligência patriótica. Sublinhou que o professor conduzira Portugal à glória dos eleitos. E considerou natural que, durante o seu governo, metade do país passasse fome, e outra metade fosse imolada numa guerra demente.

Achou bem que o país todo vivesse numa escuridão medieval, porque um povo é invencível se tiver a coragem de ser pobre. Isto mesmo decretara o professor. Já existir na Europa, em 1954, um campo de concentração para enjaular adversários políticos, e onde não mais que trinta portugueses foram levados à loucura e à morte, era para o nacional-revolucionário uma simples questão de equilíbrio do mundo.

Dizia ele estas coisas, assim em frente da câmara, sem levantar os olhos do soalho. É de se compreender. Desplantes deste calibre deixam vergonhas na cara, que um verniz ligeiro não disfarça. Tal como as mós de moinho penduradas ao pescoço, fazem peso na cabeça. Mesmo a um confuso nacional-revolucionário.

Jorge Carvalheira

Casa grande

– O que é que o senhor procura?
A interpelação acorda-o, e vem duma mulher vestida de preto, de vassoura na mão, no gesto de quem varre o pátio de cimento. O viajante já se tinha esquecido do que um dia leu nuns livros, mas aqui se lembrou novamente de que as palavras são mais que simples pedras atiradas ao vento. São como um cristal as palavras, disse-o quem sabia. Há que tomá-las na sua circunstância, atentar na moldura que as envolve, e observar com muito entendimento a ramagem que as enfeita. Não fora o tom cantado da voz, o sorriso aberto na cara desta miúda silhueta escura, e assim tão de surpresa interpelado, com tais palavras e uma lança nas mãos, lá ia o viajante, castelhano não sendo, pôr-se a imaginar uma padeira nova de Aljubarrota. Muita injustiça há neste mundo!
– Queria ver a sua igreja, por fora é bem bonita! Sabe quem tem a chave?
– Pois tem a porta aberta, aí ao lado! E o cemitério antigo, lá atrás, veja à sua vontade!

Jorge Carvalheira

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Aviso à navegação

Alguns comentadores que aqui me lêem textos, em vez de deixarem um comentário qualquer, a que terão direito, praticam afanosamente a velha técnica de acrescentar a continuação da história.
Não duvido de que o fazem na maior candura de alma, e de que apenas os move a busca da perfeição.
Mas peço-lhes um favor. Vão-se foder e desamparem-me a loja.
Não é por arrogância que o faço. É que já me falece a paciência.

Jorge Carvalheira

Pastor de Labão

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Nessa altura eu tinha namorada, e escrevia num blogue textos de circunstância. Mas a vida não corria bem. Eu há sete anos à procura dela, da vida e da namorada, e ela a persistir em esconder-se. Era uma teimosia. Eu a entregar-me cada vez mais aos textos, ela a desvanecer-se cada vez mais.

Um dia disfarçou-se de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa, vinha sempre fiel, estava sempre na caixa dos comentários, quando lá fazia falta. Trazia a sua nota, deixava um incentivo, era a leitora melhor que pode haver.

Até que não resistiu e apareceu-me no e-mail, a duras penas descobrira o endereço. Exagerou na sua admiração, e sussurrou-me, no fim, que dispusesse. Eu culpei algum amigo inconfidente e fiquei sossegado.

Assim passámos a viver a três. A namorada a esvanecer-me em casa, eu a escrever textos de circunstância, e a minha fiel leitora a comentar. A própria namorada lhe sentiu a persistência – tens aqui admiradora apaixonada! – fez-me notar certa vez. De horas em quando ela aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários. E eu deixei andar por si aquele enleio, a imaginar feitiços na literatura, a convencer-me que o verbo pode operar maravilhas.

Um dia, ao fim de sete anos, acabou por dissipar-se a namorada. Foi-se embora, exasperada, por tanto se esconder. E eu abri a corte à minha admiradora, subindo a escada emotiva costumeira. Ela acompanhava-me a escalada com reticências discretas, e sugestões nebulosas, e os véus translúcidos que um bom pudor não dispensa. As coisas chegaram a aquecer, em bom rigor havia incêndio à vista.

Certa noite chegaram dois e-mails, iguais rigorosamente. Um vinha da antiga namorada, o outro da virtual admiradora. Avisavam que eram ambas uma só, e vinham despedir-se para sempre.

Eu sorri, pus-me a pensar na vida. Se ela não fosse tão curta, quem ficava outros sete anos era eu, a escrever num blogue textos de circunstância. Não chegariam para convencer Labão. Mas ao menos acreditava eu em feitiços da literatura. E vivia a confiar que um bom verbo opera maravilhas.

Jorge Carvalheira

Paranóias

Despejava eu, tranquilo, o carrito das compras na bagageira do panzer, no parque do hipermercado. Praticamente de costas, ou de esguelha, mostrava um perfil enviesado, difícil de analisar. Mas ele foi decidido e peremptório. Parou-me ali ao lado, abriu o vidro do Corsa, esticou o pescocil e pôs-se a chamar pelo Jorge, que é o meu nome.
Eu lá fui ao seu encontro, debrucei-me na janela, vi-lhe o ventre dilatado a roçar-se no volante, observei-lhe as feições. Do arquivo não me saiu nada parecido.
– Desculpe, mas…
– Sou o genro do Teixeira! Tenho uns quilitos a mais, umas entradas aqui, que o tempo passa. Mas lembro-me bem de si!
E lá insistia, a apresentar-me a nuca, as misérias do cabelo. Eu voltei a mirar-lhe os trinta anos, o descair do olhar, a silhueta estranha. Voltei a remexer cá dentro nos ficheiros. E nada.
– Genro do Teixeira?! Mas qual deles?
– O funcionário do banco! Primeiro no Canidelo, mais tarde nos Francelos!
Lembrei-me do Abadesso, das traduções de alemão, mas do Teixeira do banco nem sinal.
– Não há nenhum Teixeira que eu conheça… nunca fui ao Canidelo…
– Então você onde mora?
– Lá para as Antas!
– É daí, fui lá carteiro! Você não se chama Jorge?
– É verdade!
E fui cedendo. Têm-se visto verdades mais atacadas de enigma do que as fábulas da esfinge.
– Pois é daí, eu despachava o correio!
Ele às vezes reparo nos carteiros. Trazem-me cartas do banco, os avisos dos impostos, trazem notícias longínquas de guerras administrativas que sustento há trinta anos. Mas, de quantos conheci, nenhum carteiro era assim.
– Trabalho agora em Alverca. Conhece Alverca?
– Muito bem!
Aterrei lá muita vez, dei lá lições do Camões, e um dia fui ver o Museu do Ar, que entre espólios mais concretos me guarda a mim bocados do canastro.
– Ele é um bocado longe, andar abaixo e acima!
– Pois compreendo…
Sinto-me à entrada do delírio. Carteiro ou não, eu nunca o vi mais gordo. Mas ele é novo demais para sofrer de paranóias. E eu, que já estou por tudo, passo em revista as últimas semanas. Tenho os impostos em dia, não me lembro de nenhum crime maior, e pecados só os do pensamento. Ele continua prazenteiro, fala-me outra vez de Alverca, jura que lhe sou familiar.
A instâncias minhas lá nos despedimos. E eu fico-me a pensar em espiões secretos, em conspirações maradas, a acreditar em bruxas, eu sei lá. Não tivesse a alma sossegada, e quem entrava em paranóias era eu.

Jorge Carvalheira

Crónica dum tempo

De manhã levantávamo-nos às oito e vinte e cinco para a aula das oito e meia, apertávamos os botões no caminho e galopávamos por escadarias e vielas íngremes contra o vento aguçado que nos fazia esperas às esquinas, e nos mordia a porcelana rósea das orelhas. O maço dos cadernos abraçado ao peito baloiçava ao compasso do coração que nos trotava desenfreado, e só amainava depois de entrar na sala, antes que se esgotasse a tolerância da campainha despótica. Lá dentro a norma era a do livro único, e o saber era um testamento de verdades definitivas, a gotejar dos lábios pausados do mestre sobre a turma desatenta, perdida a imaginar a vastidão dos desertos de Gobi ou a violência do mar nas escarpas da Camecháteca.

Jorge Carvalheira
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Perplexidades de deus

Tinha jurado a mim mesmo que o não iria maçar com a tal opiniãozinha. Por uma questão de pudor. Mas quando larguei a obra, entrou-me na cidadela uma suspeita, por alguma porta da traição.
Deixou-me num desalento. Com a compostura da forma, com a pertinência do tema, com a estrutura bizarra, com o hibridismo do género, com o título duvidoso. Senti-me um aprendiz de feiticeiro. De modo que agarrei no manuscrito e fui meter-lho na mão.
Para meu conforto só restava uma certeza. A de que ao sétimo dia Deus não dormira a sesta, como dizem. Antes se foi à fala com o diabo, a ver se estava em ordem o correr dos rios, a fúria das ventanias. A ver se batiam certas as dunas e as marés, a tirar alguma pinga do telhado. E a perguntar que nome dar àquilo.
Jorge Carvalheira

Epifania

A frase primitiva é benesse dos deuses, há-de ser verdade, se o disse um francês. Aparece à hora mais acidental, e fica a iluminar o que obscuro andava, a ruminar saída na treva original. Umas vezes é primeira. Porém outras a última será, mas sempre definitiva e terminal.
Depois é dar as outras ao papel, que saem em torrente, antes que um vento as leve. É roçá-las nos lábios, devagar, para arredondar arestas. É impor uma cadência, sondar uma harmonia, tentear-lhes o ritmo, forçar um andamento. A língua do leitor há-de lambê-las com volúpia, e essa não é contorcionista, nem gosta de fazer saltos mortais.
Dizem que tudo parte dum bafejo dos deuses, e eu não sei como se avêm os ateus. Mas já me fui deixando de ateísmos.

Jorge Carvalheira

Ramón vermelho

À beira da estrada, num pequeno café, encontra o viajante refrigério. Que além de professora reformada e boa conversadora, a dona Mariazinha é a gentileza em pessoa. Os clientes são escassos, para não dizer nenhuns, salvo este velhote que tem bócio e veio encher a garrafa do tinto. E ela está entretida no croché, enquanto a irmã lá dentro traquina na cozinha. Logo quer saber a que anda o viajante, assim exposto ao calor, e o que faz ele na vida, e donde vem. Mas depressa aparece a cozinheira, a dar fé do que se passa. E acabam, ambas as duas, a contar ao viajante a história de Ramón.
O homem dormia na casa da escola, num quarto que ficava por trás do quadro preto. A dona Mariazinha e a irmã eram crianças na altura, e nunca mais se esqueceram do mistério. A professora encostava todos os dias o quadro àquela porta, e proibia alguém de lá entrar. Um dia em que a apanharam distraída houve quem a fosse abrir, e todos viram Ramón, que estava a dormir lá dentro. Logo nesse dia soube a aldeia inteira que havia um homem na casa das professoras.
Elas eram três irmãs. Uma trabalhava na costura, outra ocupava-se da casa, e a terceira dava aulas aos garotos. O homem era galego, dos vermelhos, andou na guerra de Espanha. E quando caíram as portelas da serra de Guadarrama, e a Casa de Campo sucumbiu às investidas, perderam-se também as esperanças de Ramón. Com o batalhão destroçado, em vez de recolher à ratoeira de Madrid, enterrou a escopeta por trás duma ruína e pôs-se a andar na direcção contrária. Mais de noite que de dia, mais por carreiros de bichos que por caminhos de gente, viu ao longe a serra de Ávila, depois os montes de Francia, passou dias escondido em casebres de pastores, um era de Alba de Tormes, outro era de Santo Estêvão, três vezes morreu de fome, e já lá iam dois meses quando uma noite saltou o rio Águeda e chegou a Portugal. Alguém lhe deu inculcas em Almendra, e só assim ficará explicado que o homem tenha vindo bater à porta do padre Júlio, aqui nos confins do mundo.
Durante muito tempo não saiu Ramón de casa, que o padre Júlio não era tolo nenhum. Até que um dia calhou ele morrer, e o Ramón foi ao enterro. Desde então deu em sair à rua, que já não aguentava a solidão. Juntou-se às fainas do campo, pôs-se a trabalhar à jorna, fez amigos aí no povo. No final já se mostrava pelas festas, não faltava a um bailarico, era mais um entre a gente. Sabia a guarda do caso há muito tempo, e as ordens eram severas. Mas sempre que ela aparecia, alguém havia a passar a palavra. E sumia-se o Ramón, no quarto por trás do quadro.
Um dia apareceu no povo um amola-tesouras que ninguém conhecia. Ficou dias por aí, rua abaixo, rua acima, a soprar numa flauta esganiçada. Foi ao Zabro, às Moreirinhas, aos Moinhos das Cebolas, a meter-se no coração a toda a gente e a dar fé das passadas de Ramón. Já não havia mais facas para aguçar, nem mais tesouras da poda, nem navalhas da enxertia, quando a guarda cá voltou. E o amolador, que afinal era espião, delatou-lhe o segredo de Ramón.
O padre já cá não estava, que era duro de roer. O Ramón foi parar ao calabouço, antes de o devolverem ao Vale dos Caídos, onde acabaram com ele. E a dona Mariazinha e a irmã ficaram sem escola, que as professoras desapareceram daí.
À saída, depois das alongadas despedidas, passa o viajante por uma escola abandonada. Mas não era a desta história. E pensando um pouco mais, conclui o viajante que o rei que Moreira teve não foi o pobre Dom Sancho.

Jorge Carvalheira

Um largo atordoado

As ruas de Moreira têm calçada antiga, do bom tempo, não ficaram à espera que os fundos europeus viessem cuidar delas. E depressa chega o viajante ao largo do pelourinho, vistoso exemplar manuelino com cinco degraus. Cercado de fraguedos e hortas secas, o povoado é pequeno. Filho de estratégias muito antigas, nasceu à sombra do castelo que além está, no alto dum penhasco. Ganhou em esplendores e amplidão de vistas o que perdeu em espaço vital. Afora as casas, algumas modernizadas, tudo o que se pode ver neste adro minúsculo são antiguidades de outro tempo. A primitiva igreja de Santa Marinha, há muito sem usos litúrgicos, ainda hoje tem à porta o padrão das medidas correntes, entalhado nas colunas. Bastando a qualquer um dois côvados de burel para cobrir os ombros, estava aqui a justa medição. E se estes primores de pedra do pelourinho impressionam o viajante, mais o comove a secular gravidade do negrilho ali ao lado. Já sustentou uma frondosa copa, já a perdeu, e agora ganhou outra renovada. Só a frescura da sombra, que o viajante aproveita, é que se mantém igual.
Mais antigas do que o largo, e o castelo, e o negrilho, são estas sepulturas cavadas a picão, na fraga dura. A igreja de Santa Marinha foi-lhes construída em cima, e muitas outras ficaram por aí, disseminadas no largo. Há sepulturas debaixo das casas e dos canteiros de flores, algumas estão cobertas pela base do pelourinho, outras foram ocupadas pelas raízes do negrilho. A julgar pela dimensão e a fundura, dormiram nelas o sono derradeiro adultos e crianças, infantes e anciãos. Fossem eles justos, fossem pecadores, adormeceram todos a contemplar o sol, que todas elas foram escavadas na direcção exacta do nascente. Estão aqui, ombro com ombro, na grande igualação da morte. Mas porque o nascer do sol varia de lugar no horizonte, nem todas são paralelas. Este aqui morreu dos frios do inverno, aquele além sucumbiu às estiagens do verão, põe-se a imaginar o viajante. Se as contas baterem certas, logo aqui se pode ver a falta que faz ao mundo a sombra refrescante dum negrilho, e o fogo dos ramos dele.
Para chegar ao penhasco do castelo tem este viajante que subir uma empinada ladeira. Já passou à porta duma mulher de preto, que tem os figos a secar num tabuleiro, enquanto malha o feijão à sombra dum alpendre. Mas vinha tão afoito e decidido, à procura da cadeira do rei Sancho, que o viajante mal lhe deu a salvação. Muito a custo subiu à cidadela, ao pouco que dela resta, com este sol desapiedado a morder-lhe nos costados. Não viu cadeira nenhuma, e as bagas de suor que já lhe escorrem da fronte põem-no descorçoado. Manuel não está aqui para o ajudar. E apesar do panorama deslumbrante, decide bater em retirada, para escapar à canícula.
Bom refúgio era a sombra do negrilho, se não estivesse ocupada por duas famílias buliçosas, à volta dum farnel improvisado. Vêm dos lados de Aveiro, e andam à procura de alguma casita velha que possam reconstruir, cativas deste silêncio e do sossego da aldeia. Mas fazem tal barulheira que logo veio um vizinho, a explicar as qualidades dum queijo que lá tem para lhes vender. As mulheres falam tão alto que deixam o adro inteiro atordoado, era uma vez o sossego dum largo. E o viajante despede-se do negrilho, algum lugar há-de haver onde matar a sede.

Jorge Carvalheira