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Dominguice

O populismo pode ser tudo mais o proverbial par de botas. Inclusive, pode ser algo bom, realizador da democracia (é estudar). Ou ser algo inevitável, inerente à democracia (é pensar). Mas na versão em que actualmente está associado à direita radical, dita nacionalista e autoritária, xenófoba e racista, antissistema (seja lá o que isto queira dizer), o populismo é essencialmente um tipo de estupidez. Vive de impressões imediatistas (leia-se, alarmismos e sensacionalismos). É incapaz de lidar com a complexidade, alimentado-se de reducionismos e simplismos, basicidades, (maus) instintos. Daí implicar fatalmente uma identidade tribal maximizada, um maniqueísmo. Aí chegado, o populismo consuma-se na pura alucinação. Pode ser a vitória de Trump em 2020 ou os nazis na Ucrânia, a ideia de que os deputados portugueses (todos juntos!) fazem leis para proteger os corruptos ou que estamos a ser invadidos por fulanos estrangeiros, escurinhos e de telemóvel (último modelo) na mão ao arribarem às praias dos Algarves.

O populista é um poço sem fundo de palavras dos outros, de propaganda. Tem alergia à inteligência (isto é, à incerteza).

Crónicas da Belenzada

O que o Presidente não deve fazer (36): O poder desestabilizador

O que o Presidente não deve fazer (37) : Teoria da (ir)responsabilidade política

NOTA

Em cima da crise causada pela chantagem de Marcelo sobre Costa, ouvi num canal qualquer Miguel Prata Roque deixar uma ponderação que só tem ganhado acutilância e peso desde esse início de Maio. Disse ele que o comportamento de Marcelo punha em causa para o futuro a política do PS em relação às presidenciais. Aquando da recandidatura do actual Presidente da República, o PS deu liberdade de voto aos seus militantes e simpatizantes, não oferecendo apoio institucional a qualquer candidatura. Para além desta posição ter despertado o rancor mais desvairado em Ana Gomes, todas as interpretações foram unânimes em vê-la como um apoio oficioso a Marcelo. Ora, aquele que recolheu votos dessa “neutralidade” do PS estava agora a ser um factor de crise gravíssima para a governação socialista apesar da existência de uma maioria absoluta ainda no início da sua legislatura. Conclusão do Roque: o PS deixava de poder confiar num candidato da direita, mesmo que o seu primeiro mandato fosse de exemplar sentido de Estado e serviço ao interesse nacional e ao bem comum — teria de passar a apostar sempre num candidato próprio, da sua área política.

Este é um aspecto profundamente relevante da coisa mas ainda mais valiosa é a denúncia de Vital Moreira, finalmente pondo preto no branco a palavra “desestabilizador”. Marcelo não está apenas a destruir o prestígio e influência da sua palavra e da sua marca, ele transformou-se no mais imprevisível e esdrúxulo factor de instabilidade política em Portugal. O texto de Pedro Sousa Carvalho, citado por Vital na primeira ligação, expõe a evidência disso mesmo e faz as contas ao potencial (em parte, já actual) calamitoso prejuízo para a economia que está em causa na brincadeira.

Ou seja, seria fácil reunir factos e argumentos para sustentar a tese de que Marcelo Rebelo de Sousa está a exercer uma presidência antipatriota.

Abjecção Democrática

Como se pode ouvir e ver nesta entrevista, a partir do quarto minuto, um líder de um partido fundador da Constituição que não consegue assumir se aceita ou recusa o apoio do Chega para formar Governo está a anunciar que a sua palavra vale o mesmo do que a de Ventura. Nivela-se por ele, pelo mesmo oportunismo sociológico, pelo mesmo abuso do regime, pela mesmo apelo à violência política. Daí não querer inviabilizar um cenário onde dependerá de protofascistas para alcançar o poder. Aí chegado, inventará uma fórmula em que o Chega fique pintado como o perfeito simétrico do PCP e do BE. Pelo que a culpa de o PSD levar racistas, xenófobos, saudosistas de Salazar e retintos broncos para S. Bento será dos socialistas, não tivessem estes feito o que fizeram em 2015 ao Passos e ao Cavaco.

Há um abismo entre Montenegro (ou qualquer outro alegado “social-democrata” que aceite usar o Chega) e a direita que esteve na fundação e consolidação da democracia, e que foi a votos até à primeira metade dos anos 80 ou pouco mais. Essa gente, na sua melhor parte, teria seguido o exemplo de Freitas do Amaral e Basílio Horta; num outro sentido também o exemplo de Adriano Moreira e até Narana Coissoró, entre tantos outros, que preservaram admiravelmente a dignidade e foram paladinos do bem comum, dentro e fora da política activa.

Sá Carneiro e Lucas Pires, se hoje vivos, sentiriam, pensariam e diriam que a actual direita é abjecta.

2 de Maio vezes 3 142

Durante este mês de crise política, balizado pelos discursos do 25 de Abril na Assembleia da República e o actual panorama de Portugal estar em cada vez melhores condições económicas, Pacheco Pereira escreveu dois textos que ofereceram consolo aos socialistas e provocaram azia e maus fígados nos direitolas, A crise do Governo, a crise do Presidente e a crise do jornalismo e Intoxicação da opinião pública. Escolho uma citação de cada, para ilustrar o acerto e relevância das suas palavras:

«No dia 2 de Maio, o dia da crise, em vários órgãos de comunicação o estilo e o tom político dominante foi todo o dia igual ao das manhãs do Observador, muitas vezes com o efeito repetidor das mesmas pessoas em vários órgãos de informação. Há um precedente a este efeito, o papel d'OIndependente que preparou a entrada de Paulo Portas na política, acabou com o CDS "centrista", e contribuiu para o fim do "cavaquismo". Na verdade, ninguém como a direita radical sabe fazer melhor este papel [...]»

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«Na ausência de qualquer trabalho jornalístico, que incluía, por exemplo, ter preparado citações, e imagens, com as versões anteriores dos acontecimentos e mostrando contradições e mentiras, ou ter construído uma cronologia com o que se sabia, o que daria uma base muito mais sólida do que usar interpretações capciosas dos comentadores e jornalistas na base de impressões, ou apresentar como "novidades" coisas que de há muito eram conhecidas, o papel de imediatamente "interpretar" o que estava a suceder foi entregue a comentadores e jornalistas-comentadores esmagadoramente de direita, com relevo para a brigada do Observador, agora também à noite na CNN. Repetiu-se o que aconteceu no dia da crise, a 2 de Maio, uma fúria incontrolada que, insisto, nada tem que ver com o jornalismo. Quando um diz mata, o outro diz esfola e, por fim, outro diz esquarteje-se.»

O Pacheco não é apenas um ex-político do PSD com altas responsabilidades durante o cavaquismo e depois no consulado de Ferreira Leite, nem apenas um dos comentadores mais famosos e caudalosos há décadas, nem apenas um historiador com relevante obra de investigação na área política, ele é também um autointitulado especialista em comunicação social e jornalismo. Da soma destes predicados, a que acresce o seu papel de perseguidor apaixonado de Sócrates, resulta uma coisa muito parecida com autoridade. Autoridade na matéria, nesta: o monopólio da direita no espaço mediático desde os anos 90.

A mesma, mesmíssima, direita que provocou uma crise política que teve o seu clímax (mas ainda não o seu epílogo) numa certa terça-feira. Um dia em que essa tal direita dominante — ubíqua na imprensa, das direcções às redações, dos comentadores fixos aos volantes — foi toureada por um primeiro-ministro que optou por não se deixar chantagear. O espectáculo foi tão imprevisto, tão impressionante, que no primeiro texto o Pacheco chega a exclamar “não sei se daqui a dez anos haverá uma escola ou um curso académico de Comunicação que estude o dia 2 de Maio de 2023, nas rádios e na televisão, e os dias subsequentes. De manhã à noite não encontrará jornalismo.

Só que há nas suas descritivas palavras grossa chatice. Resulta de ele ter dois pesos e duas medidas, o que deixa indelével nódoa de bosta no que pretende seja a sua imaculada honestidade intelectual. Ir até aos tempos do Independente para encontrar um precedente para o “2 de Maio” é falso seja qual for o ângulo da comparação. Então, essas capas geravam animação noticiosa nos telejornais mas não correspondiam a um domínio sistemático sobre todo — todo! — o editorialismo e comentariado em períodos contínuos de 24 sobre 24 horas, juntando-se o cabo e as redes sociais. Se a intenção fosse, realmente, a de encontrar um precedente outra data teria de ser convocada: 21 de Novembro de 2014, pelas 10 da noite.

A detenção de Sócrates foi planeada para ser um dos mais poderosos espectáculos mediáticos alguma vez registados em Portugal. Foi distribuído horas ou dias antes a certos jornalistas o argumentário que o Ministério Público iria apresentar ao juiz Carlos Alexandre, o que eles publicaram, comentaram e divulgaram em cima do acontecimento. Equipas de televisão foram avisadas para se apanhar o bandido a ser transportado para o calabouço. O comentariado entrou em êxtase, bacanal de vingança e ódio. Um político do PSD, amigo do juiz, usou o Facebook para agradecer a Deus. O resultado foi um misto de blitzkrieg com shock and awe, onde se pretendeu impor o julgamento instantâneo de um certo cidadão. Julgamento político para efeitos de linchamento social e condenação criminal. Julgamento criminal para efeitos de linchamento social e condenação política. Nessa noite, nos dias seguintes, nas semanas seguintes, nos meses seguintes, nos anos seguintes, que fez o jornalismo?

Que fez e faz o jornalismo a respeito das evidências de não fazer sentido deter, muito menos para efeitos da instigação de culpabilidade e destruição de direitos de personalidade, quem está a entrar no País? Ou de as suspeitas nessa data apresentadas como justificação para a sua detenção não passarem de hipóteses agora dadas como infundadas? Ou de a data para a sua detenção e prisão parecer ter sido escolhida não por algum motivo atinente à investigação mas antes ao calendário político das eleições de 2015, ocorrendo um dia antes de António Costa iniciar o mandato de secretário-geral do PS? Ou de não existir objectividade racional e legitimidade moral para a prisão preventiva em estabelecimento prisional, tendo sido um arbítrio do juiz a pedido do MP? Ou de toda a comunicação social ter sido conivente com os crimes cometidos por magistrados na violação do segredo de justiça, e os ter explorado política e comercialmente? Ou de se ter iniciado uma caçada judicial e mediática a terceiros com relações pessoais ou profissionais a Sócrates? Ou de nunca se ter provado qualquer acto corrupto, apesar da completa devassa feita aos registos públicos e privados onde apareceu o nome José Sócrates? Ou de o juiz Ivo Rosa ter desmontado, e publicamente explicitado, o que não passou do maior e mais obsceno embuste na história da Justiça portuguesa em democracia? Que opinião tem o Pacheco a respeito do trabalho jornalístico neste caso e suas avassaladoras questões para qualquer defensor do Estado de direito e da civilização onde queremos viver?

Nunca o saberemos. Ou melhor, sabemos. Acha bem. Se tem a ver com Sócrates, os métodos da direita radical são um refresco que o Pacheco saboreia deliciado. Já se contam 3 142 dias em que o jornalismo se transformou em auxiliar do Ministério Público por actos e omissões. Ao lado deste fenómeno, o 2 de Maio é pateticamente risível.

Pois. Mas o Frederico Pinheiro…

Exportações batem recorde: ultrapassam 100 mil milhões de euros

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Desemprego volta a descer e atinge o valor mais baixo de sempre no mês de abril

Confiança dos consumidores portugueses em máximos desde início da guerra

Revolution through evolution

Married people who cheat don’t often regret it
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Gender trumps politics in determining people’s ability to read others’ minds
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Flavonol-rich foods like apples and blackberries can lower chances of developing frailty
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Colon cancer: Curcumin activates tumor suppressive signaling pathway
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Exercise seems to protect against major brain hemorrhage
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Consistent link between the seaside and better health
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Study reveals the persistent effects of corruption on trust and voting
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Dominguice

O primeiro, o mais decisivo, poder do tirano está na sua pessoa individual. Ele começa por querer ser tirano, na ausência desta condição não temos tirano. Mas sozinho não conseguiria tiranizar, precisa de ajuda. Então encontra aqueles que estão dispostos a servirem o tirano, recebendo benefícios da tirania imposta. Porque o plano do tirano não é nunca abdicar do poder sobre os outros que alcançou, ele recorre a qualquer tipo de violência disponível para se manter a tiranizar. Os círculos que o servem, e que se servem da tirania ou a tal ambicionam, concretizam a violência exigida pelo tirano. Sem a violência máxima à disposição, mesmo que só aplique parte dela consoante as circunstâncias, nenhum tirano o chegaria a ser, ou apenas efemeramente assim se conseguiria manter.

Ou seja, pela violência os conhecereis, aos tiranos e candidatos a.

Cavaco e a empatia

Cavaco convida Costa a demitir-se num discurso arrasador para os socialistas: são "mentirosos" e "incompetentes"

Expresso

Cavaco Silva arrasa Governo e projecta um futuro com Montenegro

Público

Cavaco Silva sempre foi crítico do atual Governo, mas nunca como ontem: o ex-presidente acusou o Executivo de incompetência, de hipocrisia, de mentir, de usar a propaganda para "desinformar" os portugueses.

DN

Cavaco acusa Governo de ser "especialista na mentira" e de falta de ética no caso TAP

TSF

Ex-Presidente da República lançou o mais intenso e violento ataque de sempre de um antigo presidente a um primeiro-ministro e Governo

Renascença

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O que restou destes e doutros títulos e cabeçalhos ditirâmbicos, passadas apenas 48 horas, foram gélidas cinzas. Na segunda-feira, o discurso de Cavaco continuava a ser arrasador mas a direcção do arraso tinha mudado — do Governo para Montenegro, agora ainda mais desautorizado após os elogios paternalistas do tutor. Marcelo assassinou o mensageiro, o escorpião a picar a víbora. E a mensagem, nas partes melhores, só alcançava ser insultuosa. Pifiamente insultuosa. Inane.

Num texto com 3531 palavras, não se encontra uma singela frase onde se prove, sequer se indique, que o Governo mente. Que alguém no Governo mente ou mentiu, algures. Injúrias, sim, em barda. Honestidade intelectual, decência, racionalidade, módica argumentação, népias. O registo foi sermonário, na intenção uma descompostura, mas a retórica foi adaptada ao ambiente de taberna onde bastava dizer que os outros gajos não prestavam para nada, eram a ralé do bairro, para garantir urros e boinas no ar dos bêbados presentes.

Mentalmente, Cavaco cristalizou-se no ano de 2008, quando planeou derrotar Sócrates através de Ferreira Leite. Daí voltar a aparecer neste seu discurso em 2023 a fórmula do “falar verdade aos portugueses” que sintetizava a estratégia do tandem PSD-Presidência para as eleições legislativas de 2009. A lógica é a de que a “verdade” é uma cena que ele tem lá em casa, uma coisa muito dele. Donde, se a tem, os outros não a podem ter, né? A cognição para se chegar à posse da “verdade” é primária, resultando que os efeitos pretendidos na sua proclamação são igual e inevitavelmente primários. Cavaco ignora o fracasso da sua estratégia, o impacto do além-Troika passista, a invenção dos protofascistas do Chega no âmago do PSD. Despreza, e ofende, a entrega ao serviço público de tantos cidadãos com responsabilidades governativas e parlamentares durante a pandemia e na guerra da Rússia na Europa. Por conseguinte, não consegue oferecer à audiência uma qualquer ideia que se relacione com a comunidade ou o futuro — ou que fosse com a realidade.

Tratar os socialistas por “mentirosos e incompetentes” nem numa juventude partidária se aconselha caso alguém tenha pretensões a fazer carreira política. Porque é uma exibição de estupidez. É garantia de derrota política. Vindo da figura historicamente mais importante da direita portuguesa, com obrigações institucionais no plano do decoro e do sentido de Estado por inerência dos cargos ocupados, fica como monumento à sua falta de empatia. Só nesse estado, onde é incapaz de valorizar a alteridade, onde está destituído de interesse pela própria humanidade, se compreende a sua preferência pela caricatura infantilóide e pela diabolização tribal.

Ora, a falta de empatia do Cavaco desperta a minha empatia. Gostei de o ver, admirei o esforço que fez para aparecer como general pronto para a batalha. Tinha folhas nas mãos cheias de banalidades e misérias para vocalizar, e levou a tarefa até ao fim com dedicação e brio. Fiquei contente por ele, a imaginar os elogios exaltados que recebeu nesse dia, no dia seguinte. Aposto que se sentiu vinte anos mais novo. Quarenta. E que sorriu de sorriso rasgado ao se apanhar sozinho. Nostálgico e ovante.

Cavaco e os irredutíveis socialistas

«Em minha opinião, o PSD não deve cometar o erro de pré-anunciar qualquer política de coligações tendo em vista as próximas eleições legislativas. Se o PS, que está em queda não o faz, porque é que o PSD, que está a subir, deve fazê-lo? É uma armadilha orquestrada pela central de comunicação socialista em que algumas boas ou ingénuas intenções têm caído.

[...]

Recentemente, durante praticamente um mês, não houve um dia em que na imprensa ou na televisão não fosse feita a demonstração de que o Governo mente. Perguntem aos vossos munícipes se ainda se pode acreditar em quem passa os dias a mentir. Por tudo isto, não surpreende que o Governo socialista, sem rumo, dominado pela trepidação do quotidiano político e pelas sondagens, governe o país aos solavancos. Não tendo obra para apresentar, considera que o importante é ter uma boa central de propaganda, com dezenas de funcionários e reforçada por especialistas externos, como já foi noticiado. O objetivo é desinformar, condicionar os jornalistas e iludir, anestesiar e enganar os cidadãos, procurando esconder a situação a que conduziram o país.»

Pessoa que sabe do que fala

Uma das comissões de inquérito parlamentar mais pícaras e folclóricas de que há memória ocorreu em 2010, por iniciativa do PSD de Ferreira Leite: “exercício da liberdade de expressão em Portugal”, na Comissão de Ética. Tratava-se exclusivamente de alimentar a chicana à volta do processo Face Oculta e da “asfixia democrática” — obscenamente risível patranha lançada por Paulo Rangel no discurso do 25 de Abril de 2007 na Assembleia da República, tendo usado originalmente a expressão “claustrofobia democrática” para se referir à nomeação de Pina Moura para a Prisa, a mesma Prisa que viria pouco depois a dar a TVI ao casal Moniz. Ao tempo, com um Governo vindo de perder a maioria absoluta, a utilização dos poderes de uma comissão de inquérito permitia horas e horas, durante dias e semanas, de teorias da conspiração, difamações, calúnias à descarada e fogo de barragem sobre o PS. Como hoje.

O PSD meteu nesse circo Paulo Fernandes (Cofina), José Eduardo Moniz, Manuela Moura Guedes, Felícia Cabrita, José Manuel Fernandes, António José Saraiva, Henrique Monteiro, António Costa (jornalista) e Mário Crespo, de forma a garantir palhaços em sessões contínuas. E eles cumpriram. A brigada do ódio a Sócrates deu espectáculo como nunca se tinha visto no Parlamento. Mas uma sumamente irónica descoberta dessa comissão não nasceu da maledicência copiosamente (pun intended) vertida por estas vedetas, antes veio na forma de um relatório a respeito do investimento do Estado em publicidade na imprensa. E qual era o jornal a sacar mais guito dos cofres públicos no auge da tirania socrática? O Correio da Manhã. Por uma simples razão: o critério do investimento resultava das audiências. Não havia qualquer interferência do poder político na coisa.

Em 2010, não existia um único órgão de comunicação social que se pudesse associar à agenda do Governo e/ou dos socialistas. Nem um. Era ao contrário, quase todos eram parceiros do PSD, inclusive na RTP. Apesar disso, foi possível lançar campanhas negras a partir das reacções de defesa de quem era atacado vilmente com crimes de fuga ao segredo de justiça e calúnias imparáveis. Daí o protagonismo então alcançado por um miserável blogue, miserável na audiência e exposição por comparação com a imprensa profissional, chamado Câmara Corporativa. E compreende-se porquê: é que ele era excelente na desconstrução da verdadeira asfixia da democracia, e porque não havia mais nenhum outro local onde esse tipo de conteúdos estivessem acessíveis.

Saltemos para 2023. Eis Cavaco a recuperar as memórias da grande batalha contra o socratismo. A figura da “central de comunicação” — que com o Pacheco, em 2009 e seguintes, consistia em dois ou três maduros no gabinete do primeiro-ministro a teclar num blogue — é agora agitada como um papão que tem “dezenas de funcionários” e até “especialistas externos”. Medo, alerta Cavaco, tenham muito medo. Porque os jornalistas vão ser iludidos, os cidadãos anestesiados, a “verdade” ficará escondida, declara corajoso. E isto apesar de reconhecer que todos os dias a imprensa e a televisão demonstram que “o Governo mente”. Isto apesar de as regras do jornalismo terem desaparecido do espaço público, citando o Pacheco, para dar lugar a uma intoxicação da opinião pública contra o Governo, continuando a citar o Pacheco.

Paradoxo? Não. O problema é que mesmo com toda a imprensa, televisão e rádios a trabalhar para criar crises políticas e entregar o poder ao PSD — e ao Chega, fatal aliado — ainda há irredutíveis socialistas que insistem em divulgar as suas ideias. A sua força vem de uma poção mágica chamada liberdade. Cavaco não descansa enquanto não destruir essa aldeia a resistir ainda e sempre ao império da propaganda direitola.

Cavaco iliba e elogia Sócrates

«Nunca um Governo desceu tão baixo»

Sua Excelência o ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva

Cavaco Silva talvez seja quem, a seguir a Sócrates, melhor conhece o socratismo. Esse conhecimento advém de ter exercido funções presidenciais logo desde 2006, tendo acompanhado os dois Governos de Sócrates a partir de uma posição privilegiada, única, onde lhe chegava qualquer informação que desejasse obter. Não só o Governo, como os partidos da oposição, como ainda os órgãos policiais e da Justiça, todas as principais entidades com responsabilidades de autoridade no regime entregaram em Belém relatórios, dados, factos. Nos 1938 dias de convivência, nunca Cavaco Silva encontrou uma só razão para demitir algum desses dois Governos ou dissolver a Assembleia. O regular funcionamento das instituições ficou assim atestado pelo Presidente da República então em exercício, alguém insuspeito de cumplicidade ou favores ao PS, muito menos a José Sócrates.

Consequências? Inevitavelmente, respeitando a honra e prestígio da sua palavra, segue-se que Sua Excelência o ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva foi ao 3º Encontro Nacional de Autarcas Social-Democratas com o evidente propósito de ilibar o ex-primeiro-ministro Sócrates das acusações de qualquer acto corrupto. Não viu, afiança, e nem sequer faz sentido suspeitar disso, garante. Quais atentados ao Estado de direito, qual quê. Tudo tanga, tudo judicialização da política. Caso contrário, ele teria agido no momento através dos seus poderes constitucionais, por um lado, e jamais apareceria agora a considerar que o actual Governo de Costa é aquele que desceu mais baixo na história da democracia portuguesa, pelo outro. Ora, este mesmo Governo de Costa apresenta excelentes resultados na economia e vem de inventar soluções de apoio aos pobres, aos trabalhadores e aos empresários apanhados numa pandemia e numa guerra de invasão pela Rússia na Europa, com consequências sistémicas avassaladoras no custo da energia, matérias-primas e alimentação. Para além disso, não existem suspeitas de corrupção que atinjam os seus membros. Se, mesmo assim, é o pior Governo dos piores, a implicação lógica é a de que os Executivos de Sócrates ganham na comparação. É a lição do Professor Silva de Boliqueime, uma inteligência superior que nunca se engana e raramente tem dúvidas.

Não satisfeito, quis ainda deixar um rasgado elogio a José Sócrates, ao lembrar que este em 2011 teve um “rebate de consciência em resultado de uma reflexão sobre a situação do País”. Ou seja, o ex-primeiro-ministro socialista agiu com um sentido de Estado exemplar, ressalta no subtexto. Foi um admirável patriota, deixando insigne legado moral que mereceu, finalmente, o justo elogio de quem sempre colocou o Imperativo Categórico kantiano como farol, mapa e Estrela do Norte da sua acção: Sua Excelência o ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.

Agora, à luz deste superlativo discurso, compreende-se melhor algo que deixou a direita perplexa nos idos de Fevereiro de 2013. Refiro-me à condecoração de Pinto Monteiro com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo por Cavaco Silva. Essa direita vinha já com vários anos de campanha negra contra o ex-procurador-geral da República, acusando-o de feitos fabulosos onde teria usado a Justiça para impedir que se investigassem os crimes de Sócrates. Como é que ele teria feito tal sem ninguém o conseguir provar, sequer indiciar? Isso a direita nunca explicou nem perdeu tempo a tentar. Bastava que se alimentasse o embuste para a pulhice já valer a pena. Perante esse torpe ataque, decidido a limpar a imagem do alvo de todas as infames difamações, a condecoração de Pinto Monteiro foi uma estalada cheia de classe nas trombas dos broncos e dos profissionais da calúnia — dada por quem sabia, e sabe bem, que é preciso nascer duas vezes (pelo menos, mas à confiança vá de nascer seis ou sete) para se ser mais honesto do que a sua excelsa pessoa.