‘a estrada de auschwitz foi construída pelo ódio, mas o seu pavimento foi a indiferença’, diz esther, citando ian kershaw. tomo a liberdade de acrescentar a estupidez. porque o ódio é acima de tudo estupidez. e porque a indiferença é acima de tudo estupidez. e porque só a estupidez permite que alguém escreva um texto destes, e o publique, sem perceber que está a exemplificar exactamente aquilo que supostamente pretendia combater.
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O infame texto de Esther Mucznik – Hitler na escola – leva-nos para mais um daqueles momentos em que o grotesco à nossa frente nos obriga a pôr como primeira hipótese explicativa a possibilidade de a autora estar doente, ou a passar mal por efeito de trauma recente, ou sob a influência de substâncias químicas capazes de provocarem estados de consciência alterada. Mas a causa mais provável talvez seja mesmo esta que a Fernanda aponta: a estupidez.
A favor, vou citar um excerto particularmente estúpido no abjecto escrito:
O ex-chefe do Governo de Portugal que durante seis anos nos conduziu de vitória em vitória até à situação actual, que fugiu para França e das responsabilidades que nunca reconheceu, e cujo único comentário que exprimiu a propósito do Memorando – que ele próprio assinou – foi que as dívidas não são para pagar, esse homem não merece um espaço de autopromoção numa televisão que é paga com o dinheiro dos contribuintes.
Repare-se que não há neste jorro de fel uma única ideia que se aproveite. Isto é prosa de jota laranja e de taxista. Isto, deixa-me cá ver se arranjo um comparativo ainda mais insultuoso, podia muito bem ter sido assinado pelo José Manuel Fernandes ou pelo João Miguel Tavares. O que me prende em espanto a atenção, contudo, é o preciosismo de se ter ido buscar uma declaração de Sócrates a respeito das dívidas não serem para pagar – que no original reza assim: “As dívidas dos Estados são por definição eternas. As dívidas gerem-se.” Pelos vistos, Esther Mucznik, alguém que viveu em Israel e em Paris onde estudou, respectivamente, Língua e Cultura Hebraicas e Sociologia na Sorbonne, que é membro da direcção da Comunidade Israelita de Lisboa e sua vice-presidente desde 2000, que é fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos e membro dos seus corpos dirigentes, que é redactora da Revista de Estudos Judaicos, que é coordenadora da Comissão Instaladora do Museu Judaico e membro da coordenação do Itinerário Europeu do Património Judaico, sendo ainda co-fundadora da Associação Universos, Associação para o Diálogo Inter-Religioso e do Fórum Abraâmico de Portugal, acha que as dívidas dos Estados são para pagar sob pena de esses Estados passarem por caloteiros.
Estamos perante a metáfora do Estado como família. Consiste esta operação cognitiva em estabelecer uma analogia entre o que se passa na esfera doméstica e o que se deverá passar na esfera estatal e governativa. Adentro nessa lógica, o modo como uma família gere os seus rendimentos e despesas institui-se como matriz do que deverá ser a boa prática na gestão de um Estado: se uma família gasta mais do que ganha, ficará endividada e isso é algo da sua inteira e exclusiva (ir)responsabilidade – portanto, tal-qualmente, um Estado com dívidas é algo a evitar a todo o custo caso este pretenda sair à rua com a cara destapada e não ser alvo dos olhares reprovadores da gente séria, a tal gente que aparenta não ter dívidas nem dúvidas. Esta fórmula tem a beleza da simplicidade, por isso cativa demagogos e broncos por igual. Mas é uma expressão da estupidez, por um lado, e um estratagema ideológico, por outro.
Numa curiosa coincidência temporal, a Shyznogud publicou uma ligação para a obra completa de Jean-Jacques Rousseau – À distância de um clic – onde os valentes poderão apreciar um texto escrito no ano do Terramoto de Lisboa: DISCOURS SUR L’ECONOMIE POLITIQUE. Neste artigo, Rousseau casca em Jean Bodin a propósito de se conceber o Estado como uma família. Bodin tinha recorrido a essa analogia para justificar uma soberania absoluta e indivisível para o rei, o qual figuraria como um pai cujas decisões imitariam a natural ordenação do poder numa casa de família. Rousseau contrapõe que um pai procura adquirir património para o distribuir pelos membros da sua família. Se um rei se reger por estas inclinações e paixões naturais, então não estará a respeitar o interesse público. Bem ao contrário, o rei deve é servir a “vontade geral”.
Um soberano que se dedique a respeitar o bem comum é uma entidade que está sempre em dívida para com a comunidade. Simetricamente, um Estado que emita moeda está no mesmo passo a criar dívida. Só que essa dívida – entenda-se, essa moeda – é exactamente o que vai permitir a produção de riqueza através da sua circulação pela sociedade e pelo Estado. Exactamente como acontece com uma soberania que se cumpre no serviço aos cidadãos, sendo o garante dos seus direitos e liberdades.
Dito isto, não espero que Esther Mucznik deixe de odiar Sócrates. Os mistérios não se desvendam, sofrem-se. Apenas lhe desejo que a sua estupidez não seja tão grande que passe o resto da sua vida na ignorância de algumas noções básicas de economia e de política.
