Que pena ter deixado de fumar

cigarros.jpg

Sou um fumador que não fuma desde Abril de 2006. Aproveitei um estado gripal e gripei o consumo. O vício ficou, e para sempre. Por isso ainda levo um isqueiro no bolso, ao sair de casa, para nunca me esquecer que continuo fumador. E por isso deixei os maços abertos onde eles estavam, onde eles estão, para me recordar da facilidade com que se atraiçoa a vontade. Mas só voltei a pegar num cigarro há uns meses, quando sonhei que estava a fumar. No próprio sonho, experimentei a delícia de fumar e o arrependimento por ter estragado mais de um ano de abstinência e castidade pulmonar, seguido do alívio por me saber a sonhar. Tudo isto a dormir. Ou tudo isto para me acordar.

Os que se opõem às restrições da lei do tabaco são, sem excepção, mentirosos. Podemos até usar esta questão (como outras, esta no caso) à laia de estetoscópio para diagnosticar o carácter de alguém. Tendo em conta que não há uma única razão que torne bondosa a exposição involuntária ao fumo do tabaco, aqueles que não se importam de contaminar o empregado que lhes serve a bica, por exemplo, são uns trastes em quem não se deve confiar. Porque eles não querem saber das consequências, não se relacionam com o empregado enquanto pessoa, apenas como meio para o café lhes chegar aos beiços. Vai daí, quando se puxa do cigarro ao balcão, ou no interior do estabelecimento, cada fumador é um convicto representante do solipsismo. Para logo a seguir, se o seu carro tiver a saída barrada por um estacionamento à má-fila, se anunciar fogoso procurador do Estado de direito. E ao chegar ao emprego, calhando não poder fumar no espaço onde trabalha, o fumador assume-se anarco-sindicalista, maldizendo a democracia vendida ao fundamentalismo higienista e antecipando a extinção de todas as liberdades para daí a duas semanas. Sim, estamos a lidar com filhos da puta. E eu fui um deles.

Continuar a lerQue pena ter deixado de fumar

I got the power

Um privilégio de se comentar em blog próprio é poder editar os nossos comentários. Ando tão contente com a sensação de omnipotência que até comento menos em blog alheio, onde não posso fazê-lo. Não sendo prática de vida possível, nas caixas de comentários do Aspirina saboreio o poder de alterar o passado.

Sobre uma fotografia de Nuno Ferrari

Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
O trabalho, a pressa de chegar, o jogo das obrigações, deixam-no, por agora, indiferente.
Ele vira as costas ao trânsito da Vida e caminha para a máquina, para o magnésio que lhe dará a revelação duma serena amargura.
A sua vida está suspensa nesse momento preciso.
Lesionado, impedido de jogar, toca nele, dentro dele, uma música triste.
Por isso se afasta do rio, do silêncio da água ou da neblina da manhã já alta.
As colunas do cais são um termómetro gigante a medir a amargura duma exclusão.
Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
Apanhado na trama secreta dum acaso infeliz, desloca memórias de tardes entre sol e pó, à procura dos longos abraços dos companheiros a correr do outro lado do campo.
Por isso não olha em frente a objectiva, não se enquadra nas sombras, nas rugas, na duvidosa estrada do futuro.
Imaginamos que ao lado passaram aves, rápidas, tensas, como urgentes vírgulas no tempo deste homem. Passam ou passaram a caminho do Sul mas este homem não teve a esperança do calor, nem do sal das praias nem do corpo efémero das ondas.
O seu olhar era amargo, demasiado real para o magnésio da verdade, demasiado forte para a revelação dum pequeno mundo a ser destruído.

Terra nostra

portugal_oliv.jpg

Olivença é território nacional? É, diz o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Pode ser mas não me interessa, faz perceber o Primeiro-Ministro, chamando ao tema «parte do folclore democrático».

Ora, nós sabemos – porque Sócrates dixit – que «não há uma política dos ministros, há uma política do Governo». O que, aqui, é lamentável.

Todos os 27 países da UE têm entre si Acordos de Fronteiras. Todos, menos um. O nosso, com a Espanha. Está bem feito. Mas, entretanto, um bocado, uma lasquinha, um bracito de Portugal continua em mãos estranhas.

‘Gatunos’ é um castelhanismo em português. Do adjectivo espanhol gatuno (relativo a gato) fizemos o que se sabe. É, talvez, o momento de devolver o vocábulo à procedência. Em voz alta e bem sonora.

*

Comunicado do Grupo dos Amigos de Olivença

www.olivenca.org

Reagindo à iniciativa do Grupo dos Amigos de Olivença que, no decurso da XXIII Cimeira Luso-Espanhola, levantou publicamente a questão de Olivença, o Senhor Primeiro-ministro, em entrevista à RTP, em 19-01-2008, veio dizer que o assunto «não foi discutido» na Cimeira (1).

Tal afirmação, que em si mesma nada traz de novo e só surpreende pela franqueza com que se admite e confessa publicamente uma prática política nada louvável, embora adoptada por sucessivos governos, deve ser sublinhada pela exuberância com que o Senhor Primeiro-ministro assume publicamente a existência do litígio, a sua relevância e a profunda perturbação que provoca no relacionamento político dos dois Estados.

No mais, a referência – aparentemente desdenhosa – à intervenção de tantos portugueses que em elevada manifestação de cidadania têm lembrando as responsabilidades que cabem ao Governo na sustentação dos direitos de soberania sobre uma parcela do território nacional, como fazendo «parte do folclore democrático», só pode ser entendido como um momento de infelicidade, decerto resultante da tensão a que o Senhor Primeiro-ministro estivera sujeito, traduzindo também alguma desatenção ou inabilidade políticas.

Aliás, não poderia ser de outra forma pois que, conforme afiançou recentemente o Senhor Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, em carta dirigida a esta associação em 12 de Novembro, p. p.:

«O Estado português é rigoroso na prática de actos externos, quanto à delimitação constitucional do seu território, em observação do que estipula o artigo 5.º da Constituição: “1. Portugal abrange o território historicamente definido no Continente europeu […] 3. O Estado não aliena qualquer parte do território português ou dos direitos de soberania que sobre eles exerce […]”. A política que o Ministério dos Negócios Estrangeiros tem seguido, e as orientações que tem dado […] tem sido de que nenhum acto, acordo ou solução em torno desta questão deve implicar o reconhecimento por Portugal da soberania espanhola sobre Olivença» (2).

O Grupo dos Amigos de Olivença faz notar que a sua actuação reproduz a posição político-constitucional portuguesa e, lamentando as palavras menos felizes e inapropriadas do Senhor Primeiro-ministro, reafirma a sua determinação em prosseguir os esforços que vem desenvolvendo pelo reencontro de Olivença com Portugal.

OLIVENÇA É TERRA PORTUGUESA!
VIVA OLIVENÇA PORTUGUESA!

O Presidente da Direcção
Lisboa, 20 de Janeiro de 2008.

(1) Pode consultar-se em : mms://195.245.128.30/rtpfiles/videos/auto/telejornal/telej_2_19012008.wmv (aos 27 min e 48 seg do vídeo)

(2) Pode consultar-se a Carta do MNE em: <http://www.olivenca.org/imagens/MNE_7905.pdf>

Rua Portas S. Antão, 58 (Casa do Alentejo) -1150-268 Lisboa
www.olivenca.org – olivenca@olivenca.org – Tlm. 96 743 17 69 – Fax. 21 259 05 77

O que aprendi hoje com a SIC Notícias

Que Mário Crespo é o mais bacano de todos os jornalistas da televisão portuguesa. A coisa assume tal proporção que ele devia ser obrigado a aparecer também na TVI e na RTP. Eu quero que o Mário Crespo seja considerado o jornalista oficial de Portugal, representando a Nação sempre que estiver em causa noticiar algum assunto sério. Para as brincadeiras e servicinhos, o resto da maralha dá conta do recado. E também quero que ele forje uma nova geração de jornalistas, e que pelo menos um dessa fornada acredite que, apesar das evidências, vale a pena ter coragem. E quero que ele tenha uma estátua em Gondomar. Alguém está a tomar nota disto?…

Que o Correia de Campos é o meu ministro favorito. Mas isso já eu sabia.

Que o António Nunes foi ao Parlamento dizer que é português o bastante para atravessar uma rua fora da passadeira, mesmo com um fotógrafo do Correio da Manhã por perto. E que esta confissão marialva foi suficiente para apaziguar o CDS e PSD.

Que um frente-a-frente entre o Ângelo Correia e a Odete Santos é quase tão hilariante como o programa Serralves Fora d’Horas, na SIC Mulher, onde o patego do Machado Vaz e a boneca Ana Mesquita dão caloroso espectáculo. Só falta comerem-se um ao outro à nossa frente, e não vou ser eu a censurar o apetite do xaroposo professor. Já a Odete Santos estica os limites do burlesco; e o Ângelo entra na festa, soltando a franga e o galaró.

Que a mente brilhante responsável por ter juntado o Luís Delgado e o Rui Tavares, comentando a problemática da Saúde, prestou um serviço inestimável ao espectador. O Delgado personifica, hodiernamente, o conceito de mistério. Isto é, não há forma de justificar a razão pela qual alguém o convida para falar em público. A sua função é a de provar, na actual crise de epifanias com chancela da Igreja, que debaixo do Céu ainda há factos e pessoas que alcançam suspender a lógica e as Leis da Natureza. E isso não se explica: ou se adora (o meu caso), ou se foge apavorado (também o meu caso). Daí, a parelha com o Tavares foi um tremendo achado. Porque o Tavares conseguiu aquilo que talvez ainda não tenha nome, mas que consiste num desafio à própria noção de omnipotência. É conhecida a célebre armadilha para noviços, paradoxo sofístico, onde se pergunta se o Deus Todo-Poderoso conseguiria criar um abismo tão grande que nem Ele o fosse capaz de ultrapassar. Pois bem, comparado com o feito de se conseguir ter menos interesse do que o Delgado, qualquer abismo infinito se salta ao pé-coxinho. Os factos são os seguintes: o Rui Tavares abriu a boca e algo no espectador se perdeu para sempre, a sua noção de absoluto. Porque, até então, era absoluto o critério que o Delgado representava. Ele era o fim da linha, o vácuo, o zero — corrijo, o zerinho; que é ainda um zero, mas muito mais pequeno. Pois Tavares consegue criar um novo Delgado a partir do nada, o seu. Fica-se com a insustentável e dilacerante suspeita de que, se calhar, vai na volta, olha queres ver, o Delgado até terá dito alguma coisa. Porque ele era o inultrapassável boçal, agora relativizado na comparação. E Tavares obtém este triunfo com o simples poder do seu verbo. Deus que se cuide.

Que o Barreto conserva melhor a sanidade mental no registo oral do que no escrito. Que o Júdice é um ser feliz. E que o António José Teixeira também se deve estar a sentir bem.

Que o Presidente da República gozou com a ASAE. E que, acto contínuo, largou um oxímoro, também sobre o mesmo popular tópico. É Cavaco a dizer aos portugueses que isto do País não é para levar muito a sério. Se nunca foi, porque raio haveria de ser logo agora, com ele na Presidência, e quando há tantas outras coisas para fazer? Era um grande ASAE… perdão, azar…

Não pretendo imitar o talento do João Pedro para títulos mas cada um faz o que pode

A desarrumação é a primeira das minhas qualidades. Recordo-me de a conhecer ainda antes da desorganização e dos lapsos de memória (quase uma afasia) relativos às obrigações mais chatas. Sem dúvida terá sido uma das principais motivações de diálogo entre a minha mãe e eu. Conversas que desenvolveram uma capacidade argumentativa redutora, nos outros, da paciência para me aturarem.
Mas, dizia eu, sou desarrumada, dizem. Por isso, quando carrego a bateria do meu telemóvel, prefiro deixar o carregador no seu lugar apropriado: ligado à ficha. Vendo bem, até sou arrumada, pois faço questão de o deixar sempre no sítio. O certo.
Aí ficou, em casa dos meus pais, na última ocasião em que o carreguei. Por um mistério ainda por resolver, o carregador desapareceu. Para mim o enigma há-de esconder alguma nefasta arrumação: com essa mania de arrumar depois nunca sabem onde puseram as coisas.
Reduzida à dependência do isqueiro do meu bólide, desloco-me amiúde à rua. Pareço um marido adúltero, a fazer telefonemas do carro, por vezes depois da meia-noite. Já imaginei a imaginação de algum indiscreto observador de janela. Bem sei que a conexão é arrevesada, mas vinha a pensar nisto, ontem, quando fui do carro à pastelaria comer um folhado misto. Foi lá que encontrei o vídeo que mostro abaixo. Não porque me preocupe a vigilância policial (alguém investiria na seca de me espiolhar?), mas porque a animação é gira.

«Primeira pessoa» de Pedro Mexia

Todo o cronista aspira a ultrapassar o efémero do jornal ou da revista e juntar as suas crónicas em livro. Antes publicadas na «Grande Reportagem», há neste conjunto de tudo um pouco. A começar pela crónica em si: «Os textos de quem escreve vêm do mesmo sítio das conversas dos conversadores ou das recordações dos anciãos: desse sótão no qual se empilham murmúrios, recortes, quinquilharia.» E passando pelo autor, ele mesmo, o próprio: «Um gordo não é exactamente um homem: é um bom amigo. Um bom tipo. Horrorizado, chego à conclusão de que quase todas as pessoas que me conhecem me acham confiável, compreensivo e relativamente inofensivo.» Entre a crónica e o autor surge o Mundo: «O nosso mundo compõe-se de três categorias: aqueles de quem gostamos, aqueles de quem não gostamos e aqueles de quem gostamos porque gostam de nós.» Nem tudo é bom; às vezes aparecem inimigos: «O inimigo, na sua cabeça, vê a outra pessoa como uma caricatura demoníaca, desprovida de méritos, de atenuantes, mesmo de humanidade. O inimigo espreita cada passo. Constrói em negativo, uma relação quase amorosa.» E, se estamos no Mundo, há nele lugares: «Há quem deteste o ‘Snob’. Sei de duas ou três pessoas que dizem, enojadas: ‘Nem pensar, não quero ir a um lugar frequentado por jornalistas’. Não anuncio grande novidade se disser que são os jornalistas que dizem frases assim. Compreendo que as manchetes devem ser lidas de manhã, quando compramos os jornais na banca da esquina e não espiolhadas de véspera na maré das redacções que desaguam para um bife tardio e um copo reparador.»

Editora: Casa das Letras

Pináculo da sabedoria

hillary.jpg

Só os deuses saberão, porque eu não li tudo, mas há a forte probabilidade de o Público ter publicado no dia 15 de Janeiro, do corrente, o mais valioso texto dos últimos 12 meses. Na rubrica Escrito na Pedra (e nem de propósito), esta citação de Edmund Hillary:

As pessoas não decidem ser extraordinárias. Decidem fazer coisas extraordinárias.

Um Stradivarius no Pico da Vara

Paris, aeroporto de Orly, 27 de Outubro de 1949. Completa a lotação do voo da Air France com destino a Nova York. Na grande cidade americana, a solidão de Edith Piaf, que sofre uma das suas depressões tão frequentes. E espera que, na manhã seguinte, Marcel Cerdan se vá juntar-lhe. Mas não há lugar no Lockheed Constellation para o amante, fisicamente o seu oposto, que perdera em Junho o título de campeão do Mundo de pesos médios para Jake La Motta. A sorte, porém, parece estar do lado de Marcel e de Edith. Um casal em lua-de-mel desiste da viagem em favor do grande ídolo francês nascido na Argélia. O avião levanta voo às 20h 05m.

Esta parte da história contém talvez uma lenda romântica, pois só embarcaram trinta e sete passageiros, e o Constellation tinha capacidade para mais de sessenta.

Provavelmente Ginette e Marcel nunca se terão encontrado. Ela não frequenta ringues de boxe nem ele assiste a espectáculos musicais em que Edith Piaf não cante. Mas certamente que não passa despercebida a Cerdan aquela jovem de uma beleza serena, esguia e segura como uma deusa grega. Nem talvez o violino, um Stradivarius, que leva consigo. Viaja com ela um homem também muito novo, que vagamente se lhe assemelha. É seu irmão, Jean-Paul, que costuma acompanhá-la quando as obras a interpretar exigem piano.

Continuar a lerUm Stradivarius no Pico da Vara

Amenezes

Vasco Pulido Valente é a mais recente vítima da síndroma da amenezes ou amenézia, doença que varre o País desde o Outono de 2007, e que ameaça aspirar o PSD antes de 2008 chegar à Primavera. A doença recolhe o nome do seu inventor, Luís Filipe Menezes, o homem que já nos tinha brindado com outro faraónico projecto que ainda há-de meter muita água. A sintomatologia é difusa, mas apresenta um denominador comum: em todos os casos, está em causa superar o Almirante Américo Thomaz como referência mor do anedotário politico. Não espanta que o próprio Menezes esteja na frente, tendo até conquistado extraordinário avanço com a peregrina sugestão de uma nova grelha de comentadores — naquelas que são, já reconhecidas pela comunidade académica, e por alguns laboratórios estrangeiros habituados a fazer experiências com rãs, as mais patuscas declarações de um político desde que Valentim Loureiro, aos berros e arriscando enfarte, pediu num comício do PSD para se aclamar Guterres.

Pois o Vasco está contaminado. Na sua crónica de domingo, no Público, informa os leitores que a Quadratura do Círculo é um programa da RTP. O que estará na origem da idiossincrática consideração ainda não é do domínio público, mas há quem avance a hipótese de Pulido Valente nunca ter posto os olhinhos na coisa. Outros avançam a sugestão de a crónica ter sido escrita à pressa, sempre má conselheira e a deixar mazelas em vários sintagmas mal amanhados. A minha tese é outra, a da amenezes, onde a simples audição do Menezes pode causar distúrbio, confusão, fadiga, incapacidade de distinguir entre a RTP e a SIC e urticária (não necessariamente por esta ordem). O grau de virulência deve ser muito elevado, pois ninguém no jornal teve discernimento profissional para avisar o colunista. Pode também acontecer que no jornal do senhor Fernandes não se leia o que Pulido Valente envia, limitando-se o pessoal a paginar o texto como se fosse uma mancha, uma borra. Mas o que mais me inquieta é ter a prova de que VPV também não põe os olhinhos no Aspirina; e, isso, é muito grave como prognóstico de evolução da maleita.

Morreu um menino grande

O Júlio era um menino grande que andava aqui pelo Camões, pelo Calhariz e pela Calçada do Combro. À maneira dos galegos do século passado mas sem as cordas nos ombros, o Júlio, menino grande da nossa rua, fazia uns fretes e ajudava as pessoas com a sua força braçal. Caixotes, volumes e recados eram levados pelo Júlio ao destino com perfeição e rapidez. Uma vez por ano o Júlio aparecia na procissão da Semana Santa aqui na igreja de Santa Catarina. A capa que lhe vestiam e o lugar que lhe permitiam tomar na procissão, ora na espia de um estandarte ora duma bandeira, era uma espécie de ressalva de uma vida passada no lado inferior dos alcatruzes. O Júlio tinha 62 anos mas era um menino grande. O seu sorriso na procissão era bem o sorriso bom do menino que uma vez por ano se sentia igual aos outros. Mas os alcatruzes da vida que nunca o puxaram para cima pareciam estar combinados com os alcatruzes do elevador da Bica. O Júlio acabou por cair no buraco da casa das máquinas do elevador. Costelas partidas, contusões diversas, lá foi para o Hospital. Mas por pouco tempo, que os Hospitais de hoje não podem ter as pessoas muito tempo por causa da redução de custos. Por isso, numa casa fria, sem medicamentos, sem comida, sem um olhar amigo, o Júlio, esse menino de 62 anos, morreu. Morreu de solidão porque a assistente social que lá foi com a Polícia voltou para trás ao ver que ninguém abria a porta. Na próxima procissão da Semana Santa o Júlio já não vai segurar a espia do estandarte ou da bandeira de Santa Catarina. Não morreu cortado por uma roda de navalhas como a sua padroeira mas cortado por lâminas de solidão, de vazio e de desespero. E todos nós somos um pouco responsáveis por isso.

Gostaria de agradecer ao Governo o seguinte reflexo condicionado: à mínima sensação de frio, fico logo com uma traça descomunal.

Era para escrever sobre os Deerhunter, mas terá que ficar prá próxima, pois agora estou aflito com 3 vídeos que urge partilhar. Não é que não achasse piada à fase electro-clash, mas confesso que fiquei entusiasmado quando li há alguns meses que o novo álbum de Goldfrapp marcava um regresso às sonoridades cinematográficas do disco de estreia. Na verdade, não há regresso nenhum, mas uma síntese perfeita de todos os ingredientes dos três discos anteriores com um mais-valia absoluta: a electrónica deixa de ser ornato para passar a textura. Para prová-lo, há este delicadíssimo «A&E», cujo vídeo foi realizado por Dougal Wilson, o bacano que já tinha sido responsável por esta pequena maravilha (não é por acaso que os mais atentos conseguirão vislumbrar a fugaz aparição de uma bicicleta). Outra surpresa é o novo single de Moby, o tal rapaz que prometia imenso há uns dez anos e que depois se espetou com grande aparato no mainstream. «Alice», para além de ser um excelente tema hip-hop, vem acompanhado por um fenomenal e muito lynchiano exercício de VJing saído da mente do grande Andreas Nilsson (vejam, por exemplo, este brinquinho). Para terminar, deixo-vos ainda com o pedagógico «Back Out On The…» de Kevin Drew (Broken Social Scene). É favor de mostrar à chavalada para ver se eles aprendem, de uma vez por todas, o que é o rock’n’roll.

A Fome de um Duque

Se as casas vazias não se queixam, nem os gatos parecem estranhar muito ausências a que não estão acostumados, os cães ficam aparvalhados, andam como órfãos, vagueando à procura dos donos e de comida.

O pastor estava no seu almoço de pão e presunto quando viu o Duque. O animal andava vagarosamente. Parou a uns dez passos à sua frente, ficando a seguir com o olhar os movimentos da mão entre a mesa de pedra e a boca. Chamou-o: “Anda cá, Duque.” Ele chegou-se-lhe sem pressas, que talvez nem pudesse, e ficou com a cabeça quase encostada à sua perna direita, à espera. O pastor partiu metade do pão e do presunto, para lhe dar bocadinho a bocadinho. O cão mastigou cada pequeno naco de presunto de um lado, depois do outro, saboreando a fome. Engolia batendo várias vezes os maxilares, fazendo uns estalidos secos com os dentes, de beiços muito molhados e ligeiramente despegados, como que tomando gosto à saliva.

Duque não tinha genealogia. Era um rafeiro cuja nobreza não ia além do nome, uma ironia. Mas tinha carácter. Seria incapaz de deixar os donos como quem abandona um cão.

¡HOLA!

Primeira página num jornal de distribuição gratuita, uma menina espanhola desaparecida. Exemplar da crença popular, partilhada por todos, que vê em vulgares coincidências influência vinda do cosmos, Mari Luz emociona Espanha. A parcela do nome da criança coincidente com parte do nome da localidade onde Madeleine McCaan desapareceu, conta o texto, permite de imediato as associações habituais, marcadas pela superstição (conto eu). Concorrem também para a onda dramática a contiguidade geográfica e a idade aproximada na altura de cada ocorrência. Uma réplica do caso Maddie à escala ibérica (vários graus abaixo na escala de Richter), porque a escala é também medida pela nacionalidade e pela língua dos personagens.
O que suscita particular interesse são as discrepâncias nos comportamentos dos pais das vítimas, porventura merecedoras de uma atenção analítica, com incursões pela antropologia, por parte de quem a queira fazer. Os pais da criança inglesa ligaram para um canal televiso britânico e mantiveram-se calmos. A mãe de Mari Luz desfaleceu em público. O pai, emocionado, agradeceu antecipadamente aos raptores a libertação próxima da filha. Apoiado na sua retaguarda religiosa, exibe a esperança de haver do outro lado uma mistura de bem e mal. Enfim, que haja uma pessoa. Como alguém que esteja mais perto da miséria humana pode presumir que ainda haja redenção.
Milagre dos milagres abençoados seria se calhasse estarem mesmo os dois casos relaccionados. E um dia destes aparecerem as duas meninas de mãos dadas num lugar público. Num jardim, na primavera.

Sexo, mentiras e chocolate (preto)

chocolate-sexo.jpg

Em Novembro de 2007, foi lançado um livro da autoria conjunta de um psicólogo cognitivo, Terry Horne, e de um bioquímico, Simon Wottoon: Teach Yourself: Training Your Brain. É mais um produto da úbere indústria da auto-ajuda, e, especificamente, de uma crescente moda editorial que vende a promessa do desenvolvimento da inteligência a partir de qualquer idade. E, se por mais nada, ficamos logo a saber que os autores são inteligentes porque estão a vender um livro que agrada por igual a homens e mulheres. Às mulheres, manda comer chocolate, preto de preferência, e fica resolvida a questão. Aos homens, receita fiambre e presunto ao pequeno-almoço, sexo com fartura e mentiras à fartazana*. Contudo, os autores arriscam provocar alguns dissabores no leitor lusitano, pois alertam contra as telenovelas, os copos, os charros e aquela malta que está sempre a queixar-se e a dizer mal de tudo e de todos, nefastos factores ambientais que diminuem a inteligência. Ou seja, os autores quiseram deliberadamente ofender 98% da população adulta portuguesa. E nisso estiveram mal, os cabrões. Voltam a estar bem ao recomendarem sessões de mimos a bebés, leitura em voz alta e um MBA. Excelentes conselhos, qual deles o melhor, e que juntos chegam para fundar uma civilização.

Do caleidoscópio de questões que surgem por associação perante estas contra-intuitivas e inusitadas recomendações para-científicas, agarro na temática religiosa. Porque muitas das recentes descobertas e hipóteses da neurologia, psicologia e dietética já faziam parte do legado milenar da experiência monástica. Os seres humanos que envelhecem com exercício físico regular, dieta frugal, vida social intensa e actividades intelectuais complexas, como acontece com os monges, vivem mais tempo e com mais saúde. E, hoje, tropeçamos nesses mesmos preceitos erigidos em última novidade da ciência e da medicina. Dir-se-ia que a religião judaico-cristã, fonte da moralidade ocidental, poderia capitalizar com este retorno às origens, aproveitando para dar a conhecer os tesouros antropológicos que guarda, mas não. Porque a religião não sabe o que fazer ao sexo, e tem andado a metê-lo nos buracos errados. Se não conseguir unir a sexualidade à espiritualidade, a religião vale menos do que uma boa tablete de chocolate preto. É científico.

__

* Estou a deturpar a coisa, mas os amigos podem ler os resumos aqui, ali e acolá. E onde bem vos apetecer, que os há em abundância.

ainda os apeadeiros

O encerramento de serviços de urgência em centros de saúde continua a dar que falar, agora com a morte de dois bebés no seu primeiro trimestre de vida. Ainda há pouco tempo me pareceu conclusivo que seria bem mais eficaz um sistema que tratasse do transporte dos doentes para o hospital mais próximo, em tempo útil. Porque os serviços de urgência dos centros de saúde raramente ofereciam mais do que uma triagem. E esta, por vezes, era caracterizada pela incompetência, tanto na demissão de casos graves e efectivamente urgentes, como no empolamento de situações triviais por médicos que não dominavam uma qualquer especialidade.
Continuar a lerainda os apeadeiros

Menezes e a Doxa

Gostava de ser amigo do Menezes. Daqueles amigos que se cruzam, mas não se procuram. Deve ser um fartote estar na rambóia com ele. A sua voz maviosa, o sorriso caloroso, o olhar de menino. Imagino-o simpático, talvez demasiado simpático. E também melancólico. E depois, o desfrute da sua matreirice ingénua, de provinciano a querer impressionar. Após um almoço bem regado, de cigarrilha na mão, os uísques a serem generosamente servidos, vejo-o a olhar para todos os lados da mesa, convocando os presentes. Mal se contendo para largar mais uma das suas chalaças, desta vez sobre os comentadores. Eles deviam era meter o maluco do Alegre na RTP, que esse é com cada bojarda que o Sócrates até se borra todo!… — risos alarves, barulheira na mesa. E depois ir buscar aquele puto, o… o… o Seguro!, e enfiá-lo na Quadratura só para foder o Pacheco! — apoiados, bocas contra o Pacheco, algazarra. Se o Marques Mendes… esse cagataco… os tivesse no sítio era o que estava a exigir às televisões. Mas ele não chega lá… não chega lá… Não chega láaaaaa… Hahahaha!… — gargalhadas monumentais, abraços, palmadas nas costas, brindes, o uísque de volta, generoso.

Continuar a lerMenezes e a Doxa