Dois dos mais notórios trânsfugas do Aspirina B mancomunaram-se com mais uns quantos elementos de má nota. O resultado só vai durar 60 dias, dizem eles. Assim sendo, o Caderno de Verão é apenas o feio (que fizeram vocês ao pobre template?) casulo de onde vai em breve emergir uma linda e original borboleta. Eu já lá fui deixar alguns comentários insultuosos; por que esperam vocês?
Falta de auto-estima? Aonde?
O “Record” de ontem resumia a nossa vitória contra o Irão com qualquer coisa no estilo de “Até já damos baile!” Isto depois de um jogo medíocre contra um adversário que patentemente não tinha ideia do que fazer quando se via com a bola nos pés. Falando de uma vitória que se solidificou com um penalty ingénuo cometido segundos depois de uma jogada em que só a inépcia terminal de um avançado iraniano evitou o empate.
Hoje, na TSF, ouvi o moderador da famosa “Bancada Central” entrevistar um comerciante turco, adepto do Sporting (!), colocando as suas questões num Inglês macarrónico. A fechar a peça, o jornalista não resistiu a comentar com condescendência o “Inglês deficiente” do entrevistado.
Fico sem saber se estes episódios autistas são um sintoma de doença colectiva ou apenas tontice banal. Não esqueçam que é a esta malta da imprensa que cabe dar voz ao sentir da alma lusa, amplificar as nossas idiossincrasias e dar antena aos estados de espírito que nos vão dominando. O que explica muita coisa.
1925
«O penalty do miúdo»
Você
Há o «você» tímido. Julgávamos poder usar «tu», mas receamos ferir. «Você podia baixar o som?»
Há o «você» jogando pelo seguro. Usar «o senhor» parece-nos exagerado respeito, mas falta-nos descaramento para o «tu». Costuma durar pouco.
Há o «você» prepotente. É o do patrão com o trabalhador. O do mandão das berças com o empregado de mesa na cidade.
Há o «você» desdenhoso. Quando substitui um «tu» já instalado, é assassino.
Há o «você» carinhoso. O que usamos com as crianças. Evita-se o pronome, mas usam-se as formas verbais. «Ande, coma a papinha».
Há o «você» filial. É comum no Norte, mas raríssimo no Sul.
Há o «você» anti-autoritário. Usam-no os pais para os filhos. Mesmo quando os filhos os tratam por… «tu».
Há o «você» telenovela. Ninguém se lembraria de usá-lo, não soasse ele tão brasileiro. Sente-se a gente um pretendente duma sinha moça, ou ela própria.
Há o «você» publicitário. «Existimos para você».
Há o «você» snob. Usam-no em boas, mas muito boas famílias, o homem para a mulher, a mulher para o homem. O irmão para a irmã, a irmã para o irmão. «Maninha, traga-me o jornal, seja simpática».
Há o «você» de escritório. Dez, vinte, trinta anos, dia após dia ao lado daquele tipo. Mas nunca lhe hei-de dar confiança. Mesmo quando sairmos daqui velhinhos.
Há o «você» quem-quer-que-você-seja. Um mapa, uma setinha e a informação «Você está aqui»
Conhece você outros «vocês»? Diga quais.
Migrantes
Antigamente viviam na província. Em Almendra, no Mazouco, em Freixo-de-Espada-à-Cinta. Onde batia o sol numa encosta, onde houvesse um pombal num outeiro. Desenhavam vertigens pelo céu, e catavam sementes no restolho, e bichos nas aradas.
Hoje habitam as praças da cidade, que acharam devolutas. E logradouros que os arquitectos riscam, quando encerram os projectos à pressa. Nos Poveiros já cobriram o sol. Na Batalha espanejam-se nos fios, e ameaçam de gripe os transeuntes.
As viúvas de coração instável são-lhes a divina providência. O seu maná é o pão que restou da semana e uns saquitos de milho. Um poeta chamou-lhes parasitas.
A fama deste estado social já chegou ao mar alto e atraiu as gaivotas. Ralham-me toda a tarde no telhado, cortejam-se ao serão, e andam num rodopio o dia todo, a engordar a criação.
Não sei que hei-de fazer. Ou entrar nos mercados de armamento, ou voltar à choupana em Carrazeda.
Jorge Carvalheira
Estação terminal [actualização]
O nosso TT achou-o um texto à Valupi. Não se podendo negá-lo, tem de reconhecer-se-lhe grande classe. Apareceu num comentário ao post anterior e foi modestamente assinado por «Zé das Couves». Merece estar aqui. Título da minha responsabilidade.
Não existe nada mais triste do que uma estação terminal. A beleza de uma linha férrea é a sua continuidade, o padrão interminável, madeira sim, madeira não, a estender-se para um lugar que os olhos não vêem mas o coração adivinha. Fico de pé, junto ao carril, e imagino aquela força que passa sem se deter, o delicioso impacto do vento que me empurra para trás sem me tirar do lugar; o som, depois o som perdendo-se enquanto galga os espaço de uma descoberta constante, lado a lado com o adolescente que nos olha do banco de trás de um carro. Uma revista aberta, um sono em recuperação, um olhar para o horizonte sem sincronia possível com o pensamento.
Uma estação terminal é um lugar triste. Uma parede que é um nada. Há-de haver um. Há-de haver um dia um comboio que, com a sua pesada vontade, não se deterá. Há sempre um. Por cada comboio que passou vem sempre outro a caminho.
«Zé das Couves»
Actualização
Pois é. Indirectamente alertado, fui dar com este texto no blogue A Origem do Amor de Miguel Tomar Nogueira. Estamos agora informados do seu autor. Sirva a oportunidade para sublinhar de novo a qualidade do texto. E para se nos permitir guardá-lo, já agora, também aqui.
Passeio bloguítico
Não é que eu tenha – e, a meu pesar, não tenho – tempo de mais para estas coisas. Mas acontece-me. Pego em mim, e vou por essa bloguítica portuguesa afora, debico aqui, debico ali. Há sítios de passagem já crónica, diária, maníaca. E há outros, esses ao calhas, fortuitos, para onde o vento soprar. Não vou revelar quais uns e quais outros. Este não é um blogue confessional (digo-o, repito-o, mas também já começo a duvidar).
O passeio de hoje leva-me à Floresta do Sul. É o blogue de António Manuel Venda, jornalista (é director da revista Pessoal, onde tem a rubrica «Os dias do blogue») e ficcionista (romance e conto, volume mais recente «O Amor Por Entre os Dedos»). Desvio ameno e instrutivo, este. Fico a saber muita coisa: que o anterior ministro das finanças amou sempre a legalidade, que ainda há confiança em Scolari (against all odds, e eles são tantos), que Salazar, e isto nem há muito tempo, entrevistou um Vermelho, enfim, que nem o George, o nosso, o tal, está livre de se ecoar a si mesmo.
Depois, passo pelos Canhões de Navarone, criação de Rui Ângelo Araújo, que até há pouco dirigiu essa agora para sempre chorada revista Periférica. Ali prossegue o Rui a sua sina de despertar-nos, sempre sério, sempre divertido, mas abandonou as railleries com que nos falava, no papel da revista. Cada médium o seu tom? Quem saberá dizê-lo? Está, de resto, na melhor companhia, a de J. Rentes de Carvalho, um dos maiores estilistas vivos do nosso idioma, segredo que não é de hoje, e não serei eu a revelá-lo. Passem por ali e verifiquem.
Os links? Para quê! Eles estão aqui mesmo à direita. Já estavam, aliás. Você é que, apressado, não reparou.
Vender saúde
Os bons frades fabricam e vendem o milagreiro tónico: uma mistura de aloé vera com mel e sabe lá Deus mais o quê. Eles não são avaros na promessa: a tal planta — que hoje em dia já infestou detergentes para a roupa, cosméticos, iogurtes, sabonetes, etc. — parece ter “poderes curativos” capazes de erradicar o cancro, pelo menos numa “grande percentagem de casos”.
Passei por lá em plena hora de ponta. Casais, velhos sozinhos, jovens de olhar furtivo; um corrupio de gente a sair dali com as preciosas garrafas. Quase todos corriam, sabe-se lá contra que adversários temíveis. Todos agarravam os seus sacos de plástico com ambas as mãos. Estão agora, mais do que nunca, lembrados de como a esperança é frágil.
SOBRE AS IDENTIFICAÇÕES – BdIs e BdEs.
Como ontem não vi absolutamente nadinha no Diário de Notícias nem no Público que a mim me parecesse digno das atenções das cabeças desvairadas que aqui vêm largar curas temporárias para males políticos permanentes, ou mobilizante do espírito de combate das infantarias maledicentes, aproveito para visitar a secção da loiça de barro estalado que acaba os seus dias como vaso improvisado, berço de salsa ou salva, num canto de quintal duma senhora pobre e viúva.
Segue-se que aos mais curiosos foi ontem oferecida, sobre a bandeja introdutória do Valupi ao meu escrito sobre os vários cinzentos-osga que dominam os palcos políticos a leste e oeste de todas as ideologias, uma oportunidade única e não repetível para descobrirem, com um pouco de paciência, no BdE, as origens blogosféricas da minha personalidade, as minhas idiossincrasias, princípios da minha identidade a partir do ovo social e grupo sanguíneo… Felizardos, felizardos, seus leonardos, que não sabeis para onde voltar-vos. Tratava-se, para o Valupi, julgo eu, dum dever, duma homenagem, espécie de esclarecimento de roda-pé-não-se-esqueçam com a intenção prima de preparar alguns para a refeição estranha que ele lhes punha no prato.
Mas não era preciso. Assinar o que escrevo sob o pseudónimo de Germano Filipe ou o meu verdadeiro nome de Bomba Madalena II, generala da beira-rio, não influi nem agrava, altera ou beneficia o conteúdo ou significado das declarações nem a verdade das suposições nem o objectivo dos ensinamentos nem a moralidade ou imoralidade das confusões. A verdade independe do preço das maçarocas e das camisas que as vestem. Lembrem-se que o Álvaro Cunhal não assinava tudo o que escrevia. E no fim levou um dos maiores funerais de sempre, se calhar uma estátua inderrubável a eternizá-lo algures numa terra proletária como eu. Uma pessoa tem que pensar na posteridade a que tem direito.
Um dito de anónimo, quando não encerra ofensa de fazer sangue nas honras, virgindades reais, relativas ou perversas, de políticos, banqueiros e padres da melhor estirpe rabo-jesuítica, que não deixe entrever a selvajaria dum cérebro demente, na acepção física, espiritual e aritmética do termo, tem tanto valor, ou tem menos, ou mais, se calhar os dois, como valor tem a frase pomposa e pingante de rodeios e madeixas onduladas do catedrático reconhecido e respeitado. Sem desprimor para os lentes de primeira e segunda que adornam estas páginas. Valha-nos isso, senão este mundo já tinha acabado com os pios de gente como eu.
Queria acabar isto com uma frase de latim, mas não encontrei nada no frigorífico. Raios partam a sorte.
TT (forever)
Crítica Nocticolor
Começa, com o texto abaixo, a participação no Aspirina de uma personalidade de vários nomes e muitos mais enigmas. Temos o gosto da sua companhia desde o BdE, quando o Fernando, eu e ele nos descobrimos numa inverosímil e bombástica afinidade (a que outros se juntaram, como o Luís Oliveira e o Filipe Moura, por exemplo). Coisas desta coisa — palavras escritas, anonimatos, imaginações à solta. Enjoy.
A noite passada, aí por volta das duas, abri os olhos e tive de imediato a certeza de que não iria tornar a fechá-los antes das três, ou mesmo mais tarde, quem sabe até se lá pelas horas dos galispos. Virei-me, portanto, a “trabalhar”. A lucubração na posição horizontal é, como se sabe, um hábito facilitado pelos negrumes de quartos das traseiras. E não custa nada nem dói, é tudo trabalho de cabeça, contas de somar, ejaculações heróicas do estro que duram uma eternidade. Em resumo: produções no vazio com consumos baixos de energia. Daí que até encoraje com gosto estes devaneios nocturnos, em tempos de crise, especialmente, ou quando me envolvo com parvos do meu tamanho na discussão das ideias políticas inventadas para nos distraírem e nos conservarem frios — frio, frio, como as pedras do rio das infâncias de mistério e procura. Ideias que, permitam-me que deixe isto claro não vá cair no ressono novamente, nos empurram constantemente para becos circulares mal iluminados e de arquitecturas bizarras, maldosas na intenção primeira e longínqua, inverificáveis e improváveis sem ajuda de microscópios negros ou de leituras recomendadas pelos santos-ofícios dos partidos.
“Trabalho” é como eu — Homem Bom e de Nobres Sentimentos, algemado a vaidades inexplicáveis, a vícios de apreciação de perfumes de rosas e ervilhas-de-cheiro que a minha mulher transplanta e semeia e trata constantemente com enlevo e a outros bons costumes que diluem em parte as raivas enlatadas que me dormem no peito há um ror de tempo — prefiro classificar os meus discursos imaginários de descontentamento, discursos de apontar o dedo, por vezes o do meio, grosseiro, de reparar com deslouvor, de permanecer convictamente zangado e cansado com a Política. Na malvada vigília de ontem à noite, deu-me para aspergir acusações aciduladas sobre um congresso de indivíduos vestidos de cinzentos corrompidos, contudo crentes (admirai esta inocência!) de que estão a fazer o melhor que podem para o bem do aglomerado-nação que tende cada vez mais a bater menos palmas à excelência musical demonstrada por esses senhores pela via de pandeiretas e outros instrumentos percussão. O teor do meu vigilante raspanete foi simples e quase inofensivo, mas a respeitável amplitude que lhe imprimi encarregou-se do resto pela serra abaixo, atravessou muros e galgou valados e espalhou-se por terrenos com delimitações políticas cada vez mais duvidosas e propositadamente complicantes. De facto, não poupou nada nem ninguém na torrente do derrame quente, mas não excedeu — importa reparar nisto porque é a prova suprema da bondade que vive dentro de mim — a violência da mera arranhadela às peles bronzeadas dos desvergonhados, à mandriice e aos interesses calculistas subordinados ao rolamento de esferas que mantêm a Promessa Politica em eterno movimento igual. Infelizmente, sobrou um único mas importantíssimo problema. Nenhum desses gatos da restrita e exclusiva comunidade palreira, objectos do meu furor à distância, me viu ou ouviu. Tiveram sorte, os malandros.
Há no entanto uma reduzidíssima possibilidade de que os homens de cinzento tenham sentido ou pressentido, detectado com os seus narizes, o gás revelador da presença e da intenção que telepaticamente transferi para os espaços vitais e necessários à expansão dos seus vácuos decretórios. Se isso não passa de suspeita infundada de quem não gosta de passar uma noite a trabalhar para o boneco, também não vou chorar, sequer amuar, ou morder a fronha asseada onde assento a cabeça de menino a quem nunca foi dado o chupa-chupa da absolvição, do reconhecimento, o doce da consolação merecida. Porque ainda tenho forças para levantar-me novamente e teimar, cambaleando, encostando-me aqui e ali, evitando sujar as mãos ou gatinhar como eles com as barrigas a lamberem as lamas da explicação fácil. Daqui, meus senhores cinzentos, pardas almas, ainda consigo manter funcional a capacidade para fixar os olhos num ponto móvel iluminado, esperando o lock perfeito no centro do esplendor, possível e ao alcance de qualquer um numa singela noite de vigília. E por aqui me vou indo, imaginando, medindo e considerando com cuidado, se isso for absolutamente necessário para manter respeito por realismos, a irrelevância ou pouco interesse que esta exposição encerra para aqueles que dormem com as consciências limpas a pensarem na bola redonda e no amor-livre masturbativo. E estendo este braço esquerdo e esta mão direita. Estendo-os sem ideias preconcebidas baseadas em percentagens. E sacrifícios, pois bem, se os há ou houver nesta procura, são de amor puro e dedicação à Nação-querida-da-minha-alma-lusitana, mãe de dez milhões de cidadãos de todas as idades e proprietária orgulhosa dum par de belíssimas e curvilíneas auto-estradas.
TT
“Vista” com banda sonora
Robert Fripp, o enorme compositor e guitarrista por detrás dos King Crimson e de milhentas outras coisas louváveis, gravou há pouco alguns temas que em breve estarão na sua secretária: o ambiente sonoro do novo sistema operativo da Microsoft, o “Windows Vista”. Assim, é certo que aquele terá pelo menos uma característica aproveitável que não foi copiada dos Macintosh. Aqui, podem encontrar um fascinante documentário sobre a excursão de Fripp ao “campus” de Redmond.
Já nem a Holanda é o que era?
Uma visita de 15 dias, há um ror de anos, e algumas conversas com o nosso Fernando Venâncio deixaram-me com uma excelente impressão da Holanda e dos holandeses. Malta afável, cosmopolita, comunicativa e hospitaleira. Assim uma espécie de portugueses, mas em bom (e sem fado, para melhorar as coisas).
Ontem, ao almoçar com um amigo que também é por lá professor, chegou a desilusão. Descobri que também os holandeses têm a sua “bible belt”; áreas pejadas de gente que se agarra ao Santo Livro em busca de instruções detalhadas para cada aspecto da sua vida quotidiana. Uma região sobretudo rural, onde até poderemos topar, segundo este meu amigo, sinais no meio dos campos relembrando aos passantes que por ali é proibido praguejar.
Proibido; isso mesmo. Vilas existem na Holanda que aprovaram regulamentos a interditar o uso de objurgações com linguagem menos apropriada e, claro está, a invocação a destempo do nome do Senhor. Mas um criminoso apanhado em flagrante com a boca suja só será multado se se provar que não estava a exercer o seu direito de expressão, garantido pela constituição. Presumo que ninguém tenha sido multado até hoje…
Quem quiser importar este salutar tendência, fica aqui com o contacto do que parece (não entendo mais que duas ou três palavras em todo o site) ser uma associação dedicada à limpeza da oralidade dos cidadãos holandeses.
Bestas de apocalipse
O viajante ouve dizer que o fogo começou na Póvoa e já comeu metade da serra do Feital. Ouvem-se roncar uns aviões por trás dos cerros das Terras Grandes, andam a combater o incêndio, mas o fumo já se espalhou no céu inteiro. E ele está tão descrente destes combates perdidos, e tão descoroçoado do calor, que nem quer ouvir falar do fogo. Mergulha na sombra do café, decidido a não voltar à rua enquanto o pior não passar. Matou a sede, aproveitou para almoçar, e só depois da partida dos barulhentos pedreiros é que voltou a si. O hospedeiro, um homem de bigodes e de poucas palavras, anda azafamado atrás do seu balcão. O viajante quer pagar a conta.
– Arderam quando, as Terras Grandes?
O homem dos bigodes encara o viajante e fica a concentrar-se na memória. Levanta a mão como quem vai responder, mas finalmente abre uma gaveta e pesca lá de dentro um livreco sebento. Descobre nele uma página e estende-a à frente do viajante.
– Está tudo aqui! O senhor sabe ler?
O viajante, que esperava tudo menos esta resposta, fica encantado com a oferta e volta a sentar-se à mesa. O que tem à sua frente é uma crónica do incêndio, num velho almanaque regional.
«A primeira vez terá sido por culpa dum brasileiro, duma terra qualquer. Ninguém o conhecia, nem soube dar notícia dele, mas a voz correu à solta. O homem chegou aí comido de saudades, peregrinou por terras e caminhos, e acabou um dia a assar sardinhas à beira do giestal, ali nos outeiros da quinta do Forcas. Era o dia 20 de Setembro de 1982 e a tarde estava soalheira. Mas à hora a que o vento se levantou do sul e se pôs a trotar sobre o espinhaço dos montes, o inepto cozinheiro imaginou-se nas vastidões do Mato Grosso e perdeu a mão às labaredas, ateadas ali no meio da rodeira.
«No que restou do dia, e durante a noite inteira, viveu-se uma hecatombe. Os montes estavam saturados de carga térmica, se não é mais adequado dizer que estavam cobertos de arbustos e ramagens, de troncos abatidos e matorral sequíssimo, o desleixo e o abandono já por então faziam norma. Ora tudo isso ardia como paus de fósforo, era o final do verão.
«O fogo correu altíssimo pelos giestais das Poisadas e os matos de Castaíde, entrou a galopar nos morros da quinta dos Cavalos e nos pinheirais de Golfar, atacou, era já noite, os carvalhais do Zaragata e da quinta do Boco, sitiou bocas de minas e valadões do volfrâmio nos cerros do Montrangão, varreu restolhos velhos na Perqueixada e restos de matas no Vale Ferreiro, lambeu pela madrugada os junçais do Safrial e da Laja da Seara, abrasou num ai os pinheirais dos Crespos, galgou o ribeiro das Águas-Vivas e avançou para a Sobreposta, e só veio a morrer no final da manhã, aos pés do castro de Casteição, porque o malvado vento quis descansar.
«Cegas de pânico, as lebres tropeçavam nos lagartos azuis que abriam bocas desesperadas e fugiam alucinados pelas rodeiras do Ribeiro de Pau. E os corvos, num voo sem norte, largavam pragas pelo céu negro, ao chocar em carvões incandescentes, por entre a poalha de fuligens que lhes queimava as asas e os forçava a cerrar os olhos.Os caminhos estavam cheios do silvar agudo das cobras, ouvia-se a lamúria dos ratos do campo que protestavam contra a insânia do mundo, e os vultos dos homens impotentes tossiam, de enxada ao ombro, afogados na fumarada, por entre o estralejar dos gafanhotos que rebentavam como panchões da China. Os uivos aflitos da carne da terra chegavam à estrada da Castanheira, e o ronco surdo das combustões desenfreadas enchia de pavor todo o vale. Acabaram em cinzas quinze quilómetros de matagal entre a ribeira Teja e a estrada da Meda, nunca assim se vira tão desenfreada a besta do apocalipse.
«A réplica da hecatombe havia de chegar oito anos depois, em inverso sentido. Por razões tão criminosas como fúteis, um marginal paisano resolveu incendiar o pinhal dum vizinho, no sítio das Raposas, lá para a Castelhana, ao tempo não havia ainda o grande charco da barragem cobrindo as várzeas. Era meia noite e o povo andava batendo os matos incendiados com giestas negrais e pazadas de areia, quando entrou a soprar um vento ligeiro que subia do Douro. O fogo aproveitou uns restos de seara para escapar ao castigo e galgar a ribeira, alimentou-se nos matos rasteiros que haviam tomado o lugar dos pinheirais antigos, e na tarde seguinte acabava a morrer nas colinas da quinta do Forcas, no mesmo exacto ponto em que o brasileiro andara certo dia assando as sardinhas. Desta vez havia de cruzar a estrada da Meda, e por lá andou vitimando as matas que do alto das Sete Pipas se debruçam para a terra quente e os lameiros que vertem para a corda do Senhor da Pedra. Veio até a chamuscar as barbas inquietas dos castanheiros de Soito Maior e da Aldeia de Santo Inácio.
«Das sementes que tinham escapado ao incêndio primeiro, milhares de plantas haviam germinado, lutavam por viver entre tojos e matos, e eram a salvação do monte. Mas nem uma resistiu à renovada selvajaria. A paisagem mudou, e agora nem sete gerações bastarão para que volte nela a frescura das sombras antigas, as flautas de Pã do vento nas agulhas, o verde longínquo dos pinheirais da infância.
«O mundo tornou-se outro, se não é o mesmo que morrendo vai. Pasmam, confusos, os aldeãos a quem se paga para deixarem abandonada a terra. Pasmam, desertos, os campos, saudosos do trilhar dos gados e do rude gesto bíblico dos homens. Talvez possam os deuses evitar, pasmando assim os homens, que outras bestas apocalípticas venham um dia destes por aí. Mas isso ninguém o pode garantir, passado que está o tempo dos milagres.»
O viajante fica impressionado como relato, não esperava tanto quando fez a pergunta. Desfaz-se em agradecimentos ao estalajadeiro e decide referescar-se com mais uma cerveja, enquanto saboreia uma nova leitura. O homem acaba a oferecer-lhe o almanaque. E, quando o viajante se despede, parece até que vai reconciliado com o mundo.
Jorge Carvalheira
Transumâncias
A ponte é de um só olho. Assenta nuns fraguedos que ali estão há mil anos, e que outros tantos mil hão-de ficar, a ver passar as águas. Hoje em dia é o que vêem passar, que agora já não há rebanhos transumantes, vindos da Serra da Estrela, a escapar aos invernos. Cruzavam o Mondego na ponte de Juncais, subiam ao planalto pela estrada do Carapito, e matavam as sedes no Távora quando chegavam à ponte. Pernoitavam aqui no descampado e largavam de madrugada, que era preciso subir o vale da Ribeirinha, e alcançar Penedono que mirava a deslado, deixar para trás as minas de ouro e chegar a Trevões, e a Valongo dos Azeites, e passar às encostas da Pesqueira, onde a parra das vinhas começava a cair.
Assim ficou sem préstimo o logradouro baldio, depois que os gados da serra deixaram de passar. E a quinta do Fidalgo, por serem tão difusas as extermas, as mais delas cruzes talhadas em fraguedos que o tempo já comeu, logo lhe deitou a mão. Bastaram dois campónios para atestar, e um tabelião que tinha um selo branco e pouco escrúpulo. O povo não gostou. E tão mudados eram os tempos que pôs uma demanda em tribunal. Um dia algum juiz decidirá.
Decide e não decide, quem tem que se despachar é este viajante. Bem gostava de ficar aqui o dia todo, mas tem que chegar hoje a Lamego. E já vai estrada fora, de janelas abertas à fornalha da tarde, quando lhe sai à mão direita a esplanada dum café, ali na Ponte do Abade. Nem a propósito, que duma cerveja fresca vem ele muito precisado.
E logo dá consigo num clamor, uma pequena multidão à espera dum transporte, pelos vistos atrasado. É o que se conclui desta vozearia, destes inconformados gestos, e das pragas que fervem no ar. Terá o grupo umas doze pessoas, as mais delas mulheres já maduras. Têm ancas largas e seios fartos e ventres salientes, e comem uns farnéis e fumam e praguejam, em sotaques estranhos, como se estivessem numa caserna. Esta veio de Ovar, aquela de Ílhavo, aqueloutra de Leça, algumas de Viseu, da Pesqueira, de Moimenta, e esta família inteira veio do Ladário. Há três moços novatos que se riem do nada, e homens adultos, que são dois, e bebem a sua cerveja enquanto esperam. Elas agitam-se nos fatos de licra que lhes moldam as formas, falam aos filhos nos telemóveis, lembram o gato que vai morrer à fome, e recomendam cuidados à avó com a pasta da escola. Estão todos à espera dum transporte que vai levá-los para a Suíça, onde têm trabalho por três meses, em hotéis, em cozinhas, em serviços domésticos, e nas quintas agrícolas dos Alpes. Alguns vão à apanha dos morangos, e quando estes acabarem há-de vir a campanha das maçãs em França, e as vindimas na Rioja. Num barracão ao lado fica a central de chegadas e partidas. É lá que se amontoam sacos de batatas e máquinas de lavar, frigoríficos velhos e garrafões de vinho, caixotes de cartão e atados de roupa, e tubos enrolados, e cortadores de relva, e máquinas estranhas a que faltam pedaços, e jantes de alumínio, e sacos de viagem, e coisas que este viajante não é capaz de definir.
A bem dizer, o viajante já tinha ouvido falar nas campanhas da fruta. Mas uma coisa é ouvir alguém falar, e outra, bem diferente, é ver, e reparar. E o viajante já não sabe se parou num café de estrada a beber uma cerveja, ou se foi dar a um cais de Belém, donde partem as naus da Índia. São todas portuguesas, estas vidas. Ontem foram lastro de caravelas, hoje lastro são das sociedades desenvolvidas, amanhã serão lastro doutra coisa qualquer, vidas é que não parecem ser.
O viajante olha à sua volta e não exagera se disser que fica angustiado. Depois de séculos por trancos e barrancos, bem gostava ele de pensar que Portugal regressou à Europa e assumiu nela um papel como o de toda a gente. Não contava achar agora aqui este rebanho transumante, amontoado num cais, à espera duma nau.
Já bebeu a cerveja, já matou a sede, já partiu para Lamego. Leva lá dentro um conflito, que as brisas mornas da tarde lhe vão serenando. Por não ter que partir às campanhas da fruta.
Jorge Carvalheira
Parábola com bandeira
Era uma vez um país que tinha uma bandeira e um viajante que viajava nele. No país. Um dia o viajante passou numa estrada e encontrou a bandeira do país a ondular, no coruto dum pinheiro. No meio dum pinhal, ao lado duma aldeia.
O viajante sabia que andava a viajar num país de marinheiros, pois conhecia a história e já ouvira dizer que se haviam feito barcos dos pinheirais do país. Que atravessaram o mar, e fizeram conquistas, e plantaram padrões de pedra nas dunas longínquas. Para tornar grande o país, que era pequeno e pobre.
O viajante, cultor das primeiras causas, lembrou-se disso tudo, quando a bandeira, a ondular ali no pinheiral, o surpreendeu. E ou bem que havia naquela aldeia um marinheiro velho, saudoso dos antigos padrões que deixara nas dunas, e dos feitos antigos… ou era um novo marinheiro, orgulhoso da história, que também quisera agora plantar padrões. A alguma conquista nova, do país pequeno e pobre. Seria um padrão moderno, a bandeira a ondular, concluiu o viajante.
Os meses passaram, e também o viajante muitas vezes passou. Na estrada, ao lado duma aldeia, onde a bandeira continuava a ondular. Primeiro perdeu as cores, que o tempo foi comendo. Depois caíram-lhe as pontas, mordidas pelo vento. Por fim ficou um trapo, no coruto dum pinheiro, cansada de ondular.
Os antigos padrões, comidos da maresia, esfarelaram-se nas dunas. Este, que era moderno, picaram-no as gralhas. Destinos semelhantes, a feitos tão parecidos.
Jorge Carvalheira
O “Choque Tecnológico”, versão de 1878
Em Setembro de 1878, estreava-se a iluminação pública em Portugal, decorando a festa de anos do Príncipe D. Carlos. Meses depois, Sua Majestade oferecia ao Município de Lisboa os 6 inovadores candeeiros que importara de Paris. O Chiado iluminava assim as suas noites escuras quase ao mesmo tempo que a imperial Londres, com as novíssimas “velas Jablochkoff”; lâmpadas de arco voltaico com eléctrodos de carbono, alimentadas a corrente alterna.
Então como hoje, os senhores responsáveis esperavam que a invocação do santo nome de uma ou duas Entidades Modernas pudesse transformar de fio a pavio este triste pedaço de pântano disfarçado de país. Agora, são as miríficas “Tecnologias da Informação”; na altura, foi a Iluminação Pública.
A chegada do sumptuoso e bem-amado Progresso foi aplaudida da seguinte forma, por pena que não consigo identificar, em versos publicados no DN de 2 de Novembro do mesmo ano:
“Agora, sim, povo amado, / Que já tens um regabofe, / Vindo à noite no Chiado/ Ver a luz do Jablochkoff; / Luz, muita luz, luz imensa, / É da ventura o princípio, / Em ti, por fim alguém pensa, / Já tem luz o município./ Vai esconder-se o morcego,/ Vai sumir-se a trefa coruja, / Dos canos espero cedo/ Ver fugir a rata suja; / A luz descerá aos antros / Para as trevas dissipar,/ Dos pobres secando os prantos, / Nas covas sem luz, sem ar. / Lysia vai ter novas molas,/ Vão rasgar-se os boulevards, / Abrir-se asylos, escolas,/ Passeios, largos, bazares;/ Vai haver docas no Tejo, / Museus de estudo e recreio, / De gosos vasto cortejo, / Praças com repuxo ao meio; / Vai começar nova era,/ Vai surgir um tempo novo, / E há no bem que nele impera / Casas baratas p’ra o povo. / Até um homem escuro/ Disse com o ar mais franco : / – Esta luz traz bom futuro / Porque faz do preto branco. / E as românticas donzelas / Dizem amantes invalidas, / Com a luz parecem mais belas / Porque se mostram mais pálidas. / Gosa pois, ò povo amado, / Gosa o grátis regabofe, / vinde pasmar no Chiado/ Ante a luz do Jablochkoff.”
Como se vê, pouco mudámos em 128 anos. Continuamos nas mãos de autoridades convictas de que basta oferecer uns pós mágicos de Progresso ao indígena para que maravilhas mil aconteçam, sem a maçada de tratar primeiro do essencial. E já então atingíamos a excelência… no escárnio corrosivo.
Algo se salva desta história: a “vela” de Paul Jablochkoff veio a sofrer um melhoramento crucial quando a sua substituição se tornou automática, dispensando a intervenção contínua de serventes armados de escadotes. Foi um professor do liceu de Santarém, João Rodrigues Ribeiro, o inventor do decisivo “acendedor automático”.
De qualquer forma, a experiência do Chiado foi de curta vida: assustada pelos custos de manutenção do sistema, a Câmara Municipal logo tratou de o desligar.
Este desenlace parece-vos familiar?
Litígios e litigâncias
Há ocasiões em que a gente lê e não acredita. Volta a ler, e volta a não acreditar. E depois pasma.
Aconteceu-me há dias, quando levei para casa o Couves e Alforrecas, de João Pedro George. Decidido a tirar a limpo umas dúvidas íntimas. Tenho na literatura um prado de estimação, onde rumino, às vezes, conhecimento e prazeres. Insubstituíveis, que o verão já passou por mim. Adiante.
Havia uma senhora que vende muitos livros, havia um crítico a explicar porquê, e daí nascera uma providência cautelar, de efeitos, finalmente, conhecidos. Nenhuns. Assim à vista desarmada. Para aumentar esta perplexidade de leitor, aparecera depois, no fio do horizonte, uma outra voz de crítico, a voz entre as mais vozes, por uma vez directa e terminante. O crítico inicial era um débil mental.
Só havia que levar para casa o livrinho (50 páginas) com o seu lastro de acções feias. Uma delas era querer fazer dinheiro à custa da propriedade industrial alheia. Nem mais.
Ora o que nele se lê é um exercício de legítima crítica, feito por autor com obra no meio. E que já apelidaram de bulldozer, mas se comporta aqui do modo mais urbano e civil. O seu encontrão às normas será a trabalheira que tudo aquilo deu. É aquela minúcia de formiga, a que nem todos estão para se entregar. Claro que não deixa pedra sobre pedra, do “edifício literário” da senhora. Que eu não cito em voz alta, para não fazer dinheiro.
O assunto ficou-me, em parte, resolvido. Autora e editor saberão que é livre o negócio do gato, se tão esforçadamente o vão mercadejando. Mas não gostam de ver alguém a sublinhar-nos, a nós que pagamos o produto, que uma boa lebre é coisa distinta. E avançou a providência cautelar.
Em que país vivemos?
Então é com faenas tais que se atulha um tribunal e se ocupa o tempo dum juiz?
Então entretém-se o apertado universo das nossas cabeças pensantes, durante semanas, com jogos de sombras?
Quem é que estes senhores tomam por parvos?
Ou quererão amedrontar alguém?
Jorge Carvalheira
Longe de Manaus, o prémio
Francisco José Viegas anda há bem quinze anos a escrever romances. Alguns foram do melhor que, no ano deles, se escreveu. Agora, finalmente, surge o prémio, o reconhecimento (modesto, eu sei) dum autor que a crítica mainstream sempre olhou de alto. Porque ele nunca alinhou em snobismos? Vá-se lá saber. E nem interessa agora muito.
Longe de Manaus acaba de receber o grande prémio da APE. Acerca do romance escrevi, a 20.08.2005, um apontamento no Expresso. Aqui vai o final.
«No mundo de Viegas, há a ambiência de tranquilas épocas. Isto condiz com a imagem insistente de Portugal nos seus romances, sempre muito insular e interior norte, ou pacatamente portuense, banhando num “azedume triste, português”.
«O contraste com o buliçoso, cheiroso, sonoro Brasil é quase pungente, acentuado pela gramática e pelo boleio frásico brasileiros em que as narrações além-oceano saem redigidas. Depois de experiências de Almeida Faria e de Agualusa, temos agora um romance em que se revezam, extensamente, as duas variedades do idioma. E é facto: Viegas domina a sintaxe e a fraseologia brasileiras, ao ponto de usar giros (‘assistindo televisão’, ‘a faculdade lhe espera’) que, fraternamente, os gramáticos desaconselham.
«Esse vivo alerta linguístico produz excelentes diálogos. Naturais, chistosos, percucientes. Admire-se a tranquila cena do pequeno-almoço de Ramos [investigador da polícia portuense], num hotel de Manaus, com o colega local Osmar Santos. É um topo de elegância e virtuosismo. É também, para o inspector português, o apaziguamente merecido, para mais em pleno Brasil, essa “galeria de malandros simpáticos com quem não queria viver para não lhes aturar a alegria excessiva”. Jaime Ramos dirá mais tarde, já em Amarante: “Tenho uma forma muito estranha de ganhar a vida”. Nisso já havíamos reparado.»
TUGAS!
Na Guiné, em 73, nós, a eles, chamávamos-lhes turras. Era um modo abreviado de lhes chamarmos terroristas. Sorrateiro. E às vezes tímido. Porque não acreditávamos que o fossem. Sentíamos que o não eram. Sentíamos que eles eram, como nós, marionetas duma feira. Juntos todos num grande cul-de-sac. A esbracejar.
A certo ponto começaram eles a chamar-nos tugas. Contrapondo, abreviando portugas. Havia para eles portugueses e portugas. Os portugas eram a tropa portuguesa, que andava ali a chateá-los. E que eles aterrorizavam. E massacravam. Com artilharia que nós não tínhamos. Com armamento melhor que o nosso. Quando chegavam os aviões de alerta ( única coisa que ainda ali mexia) recebiam-nos com mísseis de infra-vermelhos, que levavam ao ombro. Calavam-se durante um quarto de hora e chamavam-nos tugas com escárnio, porque tinham perdido o respeito por nós.
Não sei quem foi o português que pôs este nome à selecção nacional, esse elixir de delírios. Não sei se é o mesmo que mandou pôr as bandeiras na guilhotina das janelas. Sei que é um terrorista que também perdeu o respeito por nós. E por si, o que não seria grave. Sei que é um onagro mentecapto, que se diverte a gozar com coisas sérias. Sei que nós aceitamos, alguns babando-se de tanto gozo.
Cá por mim, como dizia o Campos, “De um modo completo, de um modo total, de um modo integral: MERDA!”.
Jorge Carvalheira