
Mais um “anti-semita larvar”, desta vez em Israel
Tenho pena de não dispor de tempo para traduzir este artigo de Ze’ev Maoz, professor na Universidade de Tel Aviv. Mas fico feliz por ver que muita gente em Israel ainda não sucumbiu à idiotice do dogma da superioridade moral israelita. Um dia, teremos por cá malta assim.
Recomendo-vos a visita ao “Haaretz” e deixo-vos com duas passagens: «On July 28, 1989, we kidnapped Sheikh Obeid, and on May 12, 1994, we kidnapped Mustafa Dirani, who had captured Ron Arad. Israel held these two people and another 20-odd Lebanese detainees without trial, as “negotiating chips.” That which is permissible to us is, of course, forbidden to Hezbollah.»; «What exactly is the difference between launching Katyushas into civilian population centers in Israel and the Israel Air Force bombing population centers in south Beirut, Tyre, Sidon and Tripoli? The IDF has fired thousands of shells into south Lebanon villages, alleging that Hezbollah men are concealed among the civilian population. Approximately 25 Israeli civilians have been killed as a result of Katyusha missiles to date. The number of dead in Lebanon, the vast majority comprised of civilians who have nothing to do with Hezbollah, is more than 300.» Bravo.
War fever
No “Da Literatura”, Eduardo Pitta prossegue a sua laboriosa campanha contra o anti-semitismo que, de olho clínico em riste, vislumbra a medrar por todo o lado. Esse insidioso vírus cresce pela calada em malta que finge ignorar as atrocidades que Putin vai ordenando na Tchetchénia; prospera em gente, como Eduardo Lourenço, que nada terá dito a propósito do genocídio do Ruanda ou dos primeiros ataques da UPA em Angola (!); floresce, por fim, na néscia manada que ignora olimpicamente a crueldade do blitz alemão sobre Londres e da invasão de Berlim pelos russos (a sério: o homem escreveu mesmo isto).
Tudo para atingir um corolário quase admirável: «argumentar com a soi disant “desproporcionalidade” não deixa de ser uma infantilidade. Insistir nessa tecla é uma forma naïf de dizer o indizível. Podiam assumir de uma vez por todas o anti-semitismo larvar.» Porquê? Não se explica. Mas entende-se: como desde há anos, o número de acusações de anti-semitismo em circulação num dado momento continua a ser um excelente barómetro do comportamento do Estado de Israel.
Noutras paragens, há quem imagine, de espírito dilacerado, uma horda de bandidos sanguinolentos acoitados em Espanha e dedicados a martirizar os pobres portugueses. Nesse caso, «teria ou não o Exército Português direito a internar-se em território espanhol, dar caça aos bandidos e eliminar redutos, arsenais, paióis e instalações utilizadas pelos terroristas?» E logo vem a conclusão triunfante: «Ora, é o que o exército de Israel está a fazer no Líbano. É o direito à resposta, o direito à retaliação; em suma, uma guerra justa.» Quer dizer que as pontes demolidas, os bairros residenciais arrasados, as populações sem água, as ameaças de represálias bárbaras, as carrinhas cheias de civis alvejadas do ar, etc… nada passa de uma sinistra montagem anti-semita: trata-se sim de uma mera questão de paióis e outros “redutos”, tudo tão bem camuflado. (Já agora, respondendo a este senhor, existe um tratado entre Portugal e Espanha a permitir perseguições transfronteiriças, desde que com conta, peso e medida, como é de esperar de nações civilizadas e democráticas. )
Que um colunista prestigiado como Akiva Eldar tenha perguntado «será possível que um estadista sábio mude a sua doutrina por causa de um bando de lançadores de foguetes? (…) Ainda não aprendemos que, na relação entre nós e os nossos vizinhos, a força é o problema, não a solução?» é pormenor de somenos para os cultores do simplismo; que mesmo organizações de direitos humanos israelitas acusem o seu exército de usar civis como escudos (coisa que só os malandros do Hezbollah fazem, como todos sabemos) é-lhes indiferente. Israel tem sempre razão, Israel é sempre moralmente superior, Israel tem o direito divino de esmagar tudo e todos e quem disto duvidar é parvo, anti-semita ou as duas coisas em simultâneo.
O pior é que a tontice revela-se mal contagioso. O infantil arremedo de raciocínio acima descrito foi destacado no Insurgente como “Uma pergunta para os amigos dos terroristas”; estes serão, suponho, malta como Eduardo Lourenço ou qualquer outro mânfio que não se tenha manifestado em tempo certo contra os ataques da UPA. A inteligência, como sempre, é a primeira vítima da guerra.
Memórias de Aqui-ao-Lado

Leia-se, no «Público» de hoje, o artigo de Vital Moreira em que – a propósito dos 70 anos do deflagrar da Guerra Civil espanhola – se comenta a persistente recusa da Direita aqui tão perto, com a sua Igreja Católica, em eliminar a simbologia franquista da vida pública. Como se não bastasse, Direita e Igreja recusam-se a recordar as atrocidades que cometeram e permitiram. Poderiam aproveitar para lembrar que algumas delas se deveram a provocadores da Esquerda. Mas essa inteligência falece-lhes.
E porque hoje, 25 de Julho, é o dia da Pátria Galega, e porque as primeiras vítimas de Franco foram os seus compatrícios galegos (Franco subiu tranquilamente ao longo da nossa fronteira leste, chateando de caminho Badajoz), compatrícios que foram massacrados aos milhares (lembre-se «O Lápis do Carpinteiro», de Manuel Ribas, o livro e o filme), leia-se igualmente o artigo de Carlos Morais, no portal Vieiros (Caminhos), sobre as circunstâncias do martírio da Galiza.
Same old story

Não é de todo difícil confirmar a minha antipatia de estimação com a Clara Ferreira Alves. Mas até um relógio parado dá as horas precisas duas vezes ao dia. E a hora da “Pluma Caprichosa” quase chegou no passado dia 8 de Julho. Quase; ou, como Graham Greene bem poderia ter dito, “close, but no cigar”.
A nervosa cronista foi desta vez irritada por um documentário sobre Portugal que a CNN resolveu emitir, a propósito da deslumbrante carreira lusa no mundial do chuto na bola. E com razão, se a coisa foi como ela a descreve: “uma charrete, um homem de colete e bota alentejana a tocar um cavalo, uns homens e mulheres rodopiando o vira, ou o corridinho, ou o que quer que seja e seja folclórico, mais o chouriço assado e a taberna, o lenço vermelho e a taroca, o boné e a festa popular.” Os espectadores da CNN terão assim ficado “com uma ideia de Portugal que nos coloca, exactamente, no tempo de Salazar mas… a cores.”
Até aqui, tudo mal. Mas a Pluma descarrila quando chega a altura de encontrar causas para a miopia do documentário. Saca de um preconceito para explicar outro: é americano, só pode ser ignorante. Assim: “O problema da CNN e da sua abordagem em ângulo fechado é o problema típico do império americano no século XXI, ignorância e falta de curiosidade à mistura com ingenuidade e arrogância.”
Será que já ninguém se recorda de uma pérola cinéfila de nome “Lisbon Story”, realizada por Wim Wenders, produzida com ajuda do omnipresente Paulo Branco e paga com dinheiro da Lisboa 94? O que ali se via de Lisboa poderia ter sido filmado bem antes de Salazar: eléctricos decrépitos, terraços sobre bairros de má nota, tralha derrelicta a cair pelos cantos. Com menos de 50 anos, só alguns prédios que teimaram em intrometer-se nos enquadramentos artísticos da obra. Como banda sonora, o neo-faduncho suburbano-depressivo dos Madredeus. Não foi preciso, naquela instância, encomendar a vinda de americanos para nos encontrarmos de tal forma retratados: um país melancólico, pobre, velho e infeliz.
Talvez não seja só má vontade de quem quer pintar frescos às três pancadas com a pobre pátria tuga como modelo. Talvez sejamos mesmo assim. Se pensamos em Espanha, imaginamos flamenco, largadas de touros, tomatinas, arquitectura arrojada, progresso, gente colorida em busca da praça e das tapas mais próximas. De Portugal, entrevemos lampejos de tascas escuras onde se geme o fado, destinos tuberculosos, saudade a escorrer a sua peçonha por calçadas às ondas.
Imagino que a CNN e Wim Wenders se tenham esforçado bastante para encontrar pontos de vista simpáticos sobre esta doença crónica disfarçada de país. Não é obra fácil.
Onde é que já vimos isto?

Israel ameaça destruir 10 edifícios libaneses por cada novo ataque de foguetes.
Há uns anos, duas aldeias checas foram arrasadas como represália por um outro ataque. Mudam-se os tempos, permanecem as vontades de mais sangue.
O que vale é que os jornalistas lusos encontraram um lenitivo para mais este degrau na descida rumo à barbárie: os edifícios assim condenados estão, ao que parece, em “bastiões do Hezbollah”. É por certo uma espécie de “efeito Helena Matos”: se morreu, devia ser terrorista. Mesmo que, por exemplo, apenas tivesse cometido o crime de viajar de carrinha; hoje em dia, tal basta para atrair a fúria justiceira da “única democracia da zona”.
O acelera
Nunca diz que aprendeu a guiar à socapa. E sai do carro, ao cimo da subida, no triunfante jeito de quem cortou a meta. Trabalha ali na garagem de recolhas.
Começou a ajudar às lavagens, passava a camurça nos cromados, e fazia sinais aos clientes, olhe à direita, meta-lhe a marcha-atrás. Cabiam lá quarenta, mas entravam sempre mais. E quando saía um, o patrão mexia em três ou quatro. Ele passou anos a estudar-lhe as manobras.
Fez o baptismo de volante num dia em que o patrão foi ao médico. Depois nunca mais parou. Até que lhe cederam o comando, a arrumar as viaturas. Agora passa o dia em derrapagens controladas, ataca as curvas no limite, e na rampa de saída mete gás à tábua, como fazem os craques na recta da meta.
Ganhou esta paixão dos carros. E se um dia tiver um, há-de ir à oficina dum amigo, que se dedica ao tuning.
Jorge Carvalheira
IMPORTANTE
O Aspirina está, neste exacto momento, sob fogo cerrado do pulha Bigornas da estúpida Riapa. Enquanto manda patróticos comentários para posts recentes, o sacana vai atulhando de URLs pornográficos – às dezenas por minuto – posts mais antigos. O sistema paralisa então automaticamente, e por isso os vossos comentários não entram.
Ao Desertor Desconhecido

Atravesso, no norte da França, as doces colinas da região do rio Somme. Nos bordos da auto-estrada preza-se a fertilidade dos campos, tal como noutros sítios se decantam os vinhedos. Mas a França não esquece a História, e relembra as batalhas aqui travadas nos finais da I Guerra Mundial. «Les batailles de la Somme», diz o placard gigante.
Às dezenas de milhares ficaram eles aqui. Alguns milhares eram miúdos portugueses, mal vestidos, mal treinados. E porquê? Porque o senhor Afonso Costa queria, à viva força, poder sentar-se com os grandes quando, em breve, o bolo fosse dividido. E uma bela fatia do bolo eram as nossas colónias africanas, em que a França e a Inglaterra (como, quando podia, também a Alemanha) punham gulosos olhos, mas que nós – nós – tínhamos o direito de explorar, enquanto a coisa desse. E deu ainda muito, mal sabiam eles. E pediu uma nova guerra, onde iriam morrer mais uns milhares de moços portugueses.
Apetece-me pensar que, em 1918, um deles não morreu. Ou que não morreu ali. Fugiu, escapou-se. Meu longínquo irmão, ele andou semanas aos tombos, até atingir a Holanda, a cento e cinquenta quilómetros, terra então pacífica.
Há guerras em que dizer «Não» é a única saída nobre.
fv, desertor do exército colonial português
Nacionalismo
Rui Moreira, economista e presidente da Associação Comercial do Porto, escrevia hoje no «Público»:
Nacionalismo é acreditar que a nossa selecção foi a melhor do Mundial.
Nacionalismo é acreditar que subjugamos todos os adversários.
Nacionalismo é afirmar que Angola e o Irão são equipas de topo a quem ganhámos.
Nacionalismo é afirmar que esprememos as laranjas holandesas e comemos os bifes ingleses.
Nacionalismo é chamar ladrão ao árbitro porque assinalou um penalti contra nós.
Nacionalismo é chamar fiteiro ao Henry e chorar a sucessão de faltas não assinaladas sobre o Cristiano Ronaldo.
Nacionalismo é dizer que perdemos com a França por isso e porque tivemos azar.
Nacionalismo é dizer que ainda bem que a Itália nos vingou ao ganhar aos cínicos gauleses.
Nacionalismo é apelidar o Deco de brasileiro quando joga mal.
Nacionalismo é apelidar o Deco de português quando joga bem.
Nacionalismo é insultar os holandeses pela falta de fair play.
Nacionalismo é insultar os que acham que nem sempre tivemos fair play.
Nacionalismo é multiplicar por dez os presentes no aeroporto e na festa dos heróis no Estádio do Jamor.
Nacionalismo é multiplicar por cem os elogios da imprensa internacional ao nosso futebol.
Nacionalismo é gritar que, mesmo que se perca, já se ganhou tudo.
Nacionalismo é gritar que ganhámos, quando não ganhámos coisa nenhuma.
Nacionalismo é defender que foi um feito histórico incomparável.
Nacionalismo é defender que, por isso, os nossos futebolistas e técnicos não deviam pagar impostos.
Nacionalismo é acusar de falta de profissionalismo quem ousa colocar reservas a algumas opções da selecção, como fez José Couceiro.
Nacionalismo é acusar de antipatrióticas as dúvidas sobre os critérios do seleccionador.
Nacionalismo é escrever que Scolari é o pai da pátria, agora que aprendeu a cantar o hino nacional.
Nacionalismo é escrever que ele levou o povo português a redescobrir o sentido da bandeira.
Nacionalismo é invocar que não se pode discutir a selecção, porque a pátria não se discute.
Nacionalismo é invocar que quem não está cegamente com a selecção está contra ela.
Nacionalismo é confundir mérito inegável com façanha inigualável.
Nacionalismo é confundir a selecção com a pátria.
Desculpar-me-ão por não me deixar contagiar por essa “doença infantil da humanidade”, nem querer pertencer a essa seita unanimista, cantada por Roberto Leal e pululada de oportunistas. Perdoar-me-ão, também, se não pactuo com as suas histerias e se temo as suas consequências. Absolver-me-ão se isto me traz à memória o tempo em que não podíamos ajuizar do nosso destino, em que à custa de vitórias morais ficámos “orgulhosamente sós”.
Resta saber se este nacionalismo não é uma nova versão do provincianismo que Pessoa e Eça identificaram como o grande mal português. Não, não sou nacionalista, porque acredito no trabalho e no espírito crítico, porque sou optimista e sei que se formos exigentes podemos sempre ir mais longe, porque não consigo ver milagres nos desempenhos felizes que espelham as nossas capacidades, porque não alimento o amor aos meus com o ódio aos outros, porque continuo a acreditar na nobreza do patriotismo.
P.S. – Soube que o “insuspeito e desinteressado” fervor de José Couceiro acaba de ser premiado: foi nomeado técnico adjunto das selecções.
Mais vale sozinho que mal acompanhado
Vive como se fosses morrer amanhã. Aprende com se fosses viver para sempre.
Gandhi
Durante a minha infância de bicho social interessado na politica, esse espaço da airada existência que se estendeu dos dezoito aos trinta e seis e do qual acordei de repente, todo excitado com o cheiro de cravos de viveiro, acreditava em quase tudo o que me contavam, quando o que me contavam não perturbava os ensinamentos básicos que tinha adquirido com a leitura de vários panfletos revolucionários e doutras obras avulsas da propaganda politica literária “aconselhável”, dita de descrição dos sofrimentos da humanidade lusa e internacional e das grandes lutas de resposta revolucionária para acabar com tais sofrimentos. Quem, por ignorância ou sabedoria, tivesse a impertinente ousadia de levantar um dedinho de direita para me contrariar já sabia que não seria convidado para o meu casamento, e o facto de nunca ter convidado ninguém para essa importante cerimónia (realizada com intenção ideológica num registo civil de paróquia salazarista) pode ter sido, vejo agora, o primeiro sinal de que um dia não iria perder tempo na fase madura da minha vida a ouvir gloriosos e recauchutáveis sermões, nem dum lado nem do outro.
Quem teve a pachorra de me ler até aqui é capaz de começar a pensar que me deixei de políticas e me entreguei de corpo e alma à cultura das tais malvas com virtudes balsâmicas. Nada disso. Ainda leio jornais (cada vez menos, é verdade, para fugir à mentira organizada e ao esforço sobre-humano de ter que pesquisar no vácuo das entrelinhas jornalísticas) e vibro a bandeiras despregadas com a suposta seriedade da política de esquerda e de direita. O Capitalismo, com a ganância sem fim que gera nos corações financeiros dos seus mais fiéis seguidores, continua a ser um dos alvos favoritos das minhas raivas matinais inexplicáveis e fonte inesgotável de oportunidades para a utilização do dicionário de ferroadas rancorosas que expressamente criei para o efeito. No entanto, há muito que desisti de ver nele a etapa histórica “natural” que fui ensinado a criticar e a combater (abaixo o comodismo do determinismo económico!) a partir de visões baseadas na força dum proletariado de calo e ganga que se tem deixado diluir no molho branco social que o vai empurrando para a robotização geral e completa, transformando-o na máquina anónima de produção que aos poucos o fará esquecer a foice e martelo. Esperem pela pancada, senhores veteranos: andam por ai a esquissar os novos símbolos das bandeiras proletárias.
Reconheço que o pessimismo político, como o que aqui demonstro com saciedade e sem vergonha, pode engendrar atitudes pessoais completamente desafectas ao espírito dos frequentadores de bares em festas partidárias anuais, ou ao dos períodos quentes de eleições da esperança. Não vou chorar por isso e até bebo um copo de reforço à saúde da convicção que tenho de que nada nessa atitude afectará a minha capacidade para continuar a fazer perguntas e a aprender como se “fosse viver para sempre”. E, meus senhores e minhas senhoras, sobre o tema geral do progresso, evolução, consciencialização política e de classe etc., uma das perguntas que apetece fazer, já agora, é a seguinte: mas afinal, que merda é esta de pensarmos que precisamos de situar-nos politicamente à esquerda ou direita de qualquer coisa para darmos uma opinião justa e serena, cheia de bom senso e abalizada sobre as soluções mais adequadas e necessárias a este planeta — planeta que não pertence a ninguém e que ninguém sabe donde veio, muito embora abundem por ai explicações divinas e outras acerca de implosões de matéria e irrealidades palpáveis? E quem são estes importantes Oito, que agora sentaram as suas anatomias com excessos de gordura exactamente iguais às nossas à volta duma mesa enorme, para se porem a combinar, sem mandatos directos de ninguém, sobre a direcção mais apropriada para esta Terra envolta em fogos muito reles que eles, ou aqueles que os precederam nos tronos da Intriga mandona, foram os primeiros a atear de mil e uma formas?
Não me puxem pela língua, por favor!
TT
Que falta faço eu?
Ao viajante cerca-o a aflição deste largo, que é mais que a solidão, é mais que o abandono. Mas bem graves hão-de ser as aflições deste padeiro, que acaba de chegar numa carrinha. O alarido da buzina foi crescendo rua fora até chegar ao largo, parecia alguém aflito por tirar o pai da forca, e era apenas ele a chamar as freguesas. Vieram cinco, por junto, e só se calaram as trombetas quando apareceu a primeira. Vem da Prova, o padeiro, duas vezes por semana. Faz o seu giro aí pelas aldeias, como o carro da fruta, o da carne, o do peixe congelado. Meteu-se no negócio quando voltou de Moçambique, há muitos anos, alguma coisa havia de fazer. E bem podia encher meio mundo de pão, não fora o mercado fraco e tanta a concorrência. Outros vêm, doutros lados, que não dividem territórios. Fazem as mesmas rotas, os dias é que alternam.
O viajante queria ouvir o homem sobre as passadas vidas africanas, lá tem as suas razões. Se era dono de machambas, ou cantineiro do mato, ou funcionário de alguma açucareira. Ou mesmo chefe dum posto qualquer. Nunca se sabe quando ficou lá para trás, enterrada na areia, uma garrafa de diamantes, como já temos visto. Mas o mestre vende pão e já partiu, que este serviço está feito e o resto falta fazer.
Ao contrário do que atrás prometeu, o viajante não voltará à rua de alcatrão. Segue até ao fundo do largo, donde parte uma avenida 25 de Abril. E o promissor topónimo, se já foi bandeira de tantas esperanças, apenas vem aqui alvoroçar contradições ao viajante. Entre as muitas alegrias que nasceram, e este desconforto que ficou. Mas em boa hora tomou tal decisão, que há-de encontrar no caminho quem lhe vai salvar o ânimo. É a dona Celeste que ali está, passada a primeira esquina, sentada a ler num banquito, à sombra da parede. Veio dar um sol às pernas, cansadas de tantas lidas que já não querem andar.
A dona Celeste põe o viajante a remorder invejas, por mais que uma razão. Está a ler um livrito das suas devoções e não precisa de óculos, embora leve já na conta os seus noventa e um anos. Além disso traz no rosto a maior serenidade que o viajante já viu, e oferece-lhe o ar mais manso que ele podia encontrar. O viajante, que a vida tornou céptico, olha para esta figura e fica sem saber o que fará do cepticismo. Diz ela que mora ali ao lado, na casa duma filha, embora tenha casa sua, muito perto. Mas não pode lá viver, porque a vida não é sempre o que esperamos dela.
Não nasceu nesta aldeia, criou-se na terra quente. Veio para cá trabalhar numa casa de comércio, com pouco mais de vinte anos. E quando o patrão morreu, que já era bem velho, os herdeiros viviam na cidade e entregaram-lhe o governo da casa. Eram as vendas do comércio, e as rendas de muitas terras, e a lã de vários rebanhos quando chegava a tosquia, e as vitelas que os pobres aí criavam à razão de meio-ganho.
Havia então um rapaz que ficara lá na aldeia e andava a requestá-la. Chamava-se ele Albino, e não viam outra coisa aqueles olhos. Mas ela ainda não estava decidida, o que mais a ocupava era a carga dos trabalhos e as obrigações que tinha. Ou talvez gostasse doutro, não sabe explicar bem, ele tinha-se ido à África e ainda lhe mandou cartas que vinham de Benguela. Mas breve pararam elas, porque apanhou uma febre e lá morreu.
Com uma tristeza assim, mais parado ficou à dona Celeste o coração. E foi no meio de tal indecisão que apareceu um rapazola, irmão do falecido, que andara em Matosinhos a servir de marçano. Deu-lhe pena o desamparo do rapaz. O Albino bem mandou dizer que dava cabo da vida se não casasse com ela. Mas quem é que ia levar a sério uma palavra assim?
O viajante está encantado a ouvir esta conversa, já se esqueceu dos conflitos que trazia. Senta-se numa pedra e nem desvia os olhos da figura.
Quando a vida do comércio acabou, os senhores que estavam na cidade mudaram-na de casa e fizeram-na feitora. Era a casa mais mimosa da terra, chamavam-lhe o paraíso. E foi então que aceitou o casamento, por causa da lida das terras, com o tal irmão do falecido em Benguela. No mesmo dia da boda, lá na terra onde ficara, foram dar com o Albino afogado num poço.
A vida da dona Celeste tem sido bem prolongada, mas não foi o que podia, nem o que merecia ser. Quem se quer fazer não pode, quem o é já nasce feito, como ela explica, serena. Criou os seus cinco filhos, que não se cansa de encomendar a Deus, e lá fizeram da vida o que souberam. Muitas vezes sente pena das sem-razões antigas de tanto mau viver, e das aflições em que eles se criaram. Mas o seu homem era assim, foi sempre um destemperado, um algoz ensoberbado que não chegou a crescer.
– Eu levei a cruz ao meu calvário, que sempre quis viver de coração lavado. Até que um dia, com oitenta e oito anos, tive que fugir à frente dele para escapar às bengaladas, com este braço partido e o sangue a cair no chão. Foi Deus que me arranjou forças para me arrastar até à minha filha.
A dona Celeste diz estas coisas terríveis como se não fossem suas. Tem nos olhos a mansidão tranquila de quem já fez pelo mundo o que tinha a fazer. Não venha ele a salvar-se, não estará nela a culpa. E agora só está à espera que Deus se lembre dela, e um dia a venha buscar. Ao viajante vem-lhe à cabeça um turbilhão de pensamentos, nem sabe bem o que fazer com eles. Alguma coisa o prende aqui, será porque está perto um paraíso. Mas decide ir-se embora, que veio à procura de conversa e acabou silenciado.
– Não tenha pressa de partir, não sabe a falta que faz!
– Que falta faço eu?!
Jorge Carvalheira
BLOCO# 14
DEBATE?
Penso que o debate de ontem entre José Sócrates (PS) e Maria Avilez (PSD) foi claramente vencido pelo primeiro.
Curiosamente nunca vi na jornalista(?) Avilez tanta Aviltamento e Dureza a entrevistar um Durão.
Ou um Santana. Mas estes, com Marcelo, são os seus ‘meninos de oiro’ (sic. expresso). É verdade, Santana incluído!
Porra!
Ontem, numa das minhas voltinhas frequentes pelo dicionário de português, desta vez procurando um sinónimo mais ou menos paronímico da palavra “catamite” — definidora em dicionários ingleses do “rapazito mantido (fresco e saudável) para práticas sexuais”, etimologia latina pela via do etrusco, dizem-me eles — fui completamente distraído pela languidez ou preguiça do meu dedo que decidiu repousar em “catano!” e logo tomar uma bebida fresca, para apreciar com vagar a sua definição, de acordo com o evangelho dos dicionaristas portugueses.
Ficou o Tio Tadeu a saber que “catano!” é uma interjeição vulgar “usada como eufemismo para indicar admiração ou contrariedade”. Mas eufemismo de quê? Em princípio, de “catana”, palavra muito em voga nos anos sessenta nos manuais arsenalísticos dos movimentos de libertação africanos, antes das intervenções e contribuições do dólar e do rublo para animarem as festas balisticamente.
E andei eu um tempão do vergalho a pensar que “catano!” tinha mais a ver com o intuito de poupar certas senhoras e cavalheiros à ignomínia de terem de ouvir outras rimas mais mal sonantes. Por mera curiosidade, então a querer estender-se por influência do refresco, procurei debalde o eufemístico “poussa”, “poussas” ou “pouça”, de “pénis” ou “porra!”, também interjeição. E pagarei um copo de bom grado a quem descobrir no meu dicionário a palavra “caraças”, por vezes também explosão interjectiva na boca do palavroso e pobre vulgo. Se a encontrarem, tenho a certeza que ao lado dela lá estarão um par de carantonhas ou máscaras a provarem as origens e o poder dos eufemismos.
Mas, voltando ao “catamite”, talvez seja interessante notar aqui, a modos de fecho, o peso que as palavras, ou a eliminação total ou parcial dos seus significados, têm na preparação mental das pessoas para a moral política gizada pelas elites do beiço educado. Num dicionário “Oxford” de há dez anos, a palavra “catamite”, além da definição que acima dei dela para benefício do menino e vergonha do seu amo, também tinha uma segunda definição, que se escorria assim, para toda a gente ver: “a pessoa (partner) passiva em sodomia”. Num dicionário mais moderno desse mesmíssimo ilustre estabelecimento de ensino influenciador de governos e governação, tal definição foi pura e simplesmente excluída for good, quem sabe se por decreto ou se em reacção a um simples telefonema dum malandro qualquer. Ponha-se isso em termos de Narração Histórica das Coisas Mais Importantes e imagine-se o que a maltinha não anda por ai no dia-a-dia a engolir como verdadeiro, completo e bem contado. Os mais “progressistas” dirão que a exclusão dessa definição se justifica, para não se abusar da passividade de certa gente. São os que não têm voz activa nem passiva sobre nada, mas vivem na ilusão de que a têm.
TT
Pegos floridos
Nunca soube por que lhe chamavam Zé Maneto, se nada lhe faltava no corpo. Além do vinho, que desse andava sempre precisado. Aparecia lá em casa nos serões de inverno, quando acabava de cear. Pedia um copo, bebia dois ou três, aconchegava as pernas à lareira. E punha-se a desfiar enigmas e charadas, que ia inventar não sei onde. Seria a força do vinho, o alma do diabo!
Uma ocasião havia um franganote, que andava a namorar a filha do moleiro. Ia bem, o namoro. A um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar. O mar eu nunca o tinha visto, não sabia o que era uma cabeça doida, e ficava-me para trás, a imaginar um riso transparente. Ele já lá ia adiante.
Um dia foi-se a ver a namorada, passou a tarde a ajudá-la na horta, a regar o linhal. E foi ao morrer da tarde que lhe deixou cair a escusada pergunta, quando é que hei-de cá tornar a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e os moirões já estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Disse isto e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
O mequetrefe passou toda a noite em contendas, a cabeça num badanal. Mas chegara atrasado à feira de Deus, o pobre. E não sabendo atinar com a hora da moleira, nunca mais lá voltou.
Passaram anos em que ele andou por longe, foi-se à cidade, fez vida. E na vida há sempre um dia, basta darmos tempo ao tempo. Nesse dia foi ele à festa da Senhora da Saúde, e encontrou-a a sair da capela, tinha acabado o sermão. Quando ela o viu, cerrou a catadura. – Desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros. – Hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, já homens feitos, nunca mais lá tornaste… E os olhos a fugirem, perturbados. – Nunca atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos estiverem floridos, e agora me dirás que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, no rosto uma rosa a abrir. – Florescem os pegos todos, à hora em que dá neles o lume das estrelas; caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam; e os mortos enterram os vivos, quando só sobrarem cinzas num fogo que se apagou. – Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Bebia o último copo. – Para alumiar o caminho! – galhofava o Zé Maneto, que o sabia já de cor.
Jorge Carvalheira
Abre-se mais uma frente na Guerra de Religiões?
Pai dos pobres
O Felisberto já desvendou o seu crime e já se despediu do viajante. Este fica sozinho, pensativo, e não encontra a ponta deste novelo, por mais que se interrogue. Por sua própria experiência sabe ser a ignorância a mais escura das noites. Mas fica sempre pasmado, diante da escuridão. Sobretudo se já não há milagre que lhe possa valer.
Deixa os pombais para trás e já lá vai, ao longo do paredão do cemitério, e decide fazer-lhe uma visita. A um lado porque um cemitério é um espelho do mundo, e a outro porque vai à procura de sinais dum homem corajoso, de quem ouviu falar. O cemitério é obra asseada, tem aspecto cuidado e dimensão apropriada. Logo nele avultam três jazigos a chamar a atenção, mas antes quer o viajante descobrir a campa do padre Júlio de Moreira, que aqui foi sepultado. Vai andando devagar, entre lápides de gosto duvidoso, e neste particular conclui que já tem visto pior. Porém, como noutros lugares, quanto mais recentes são as sepulturas, mais estapafúrdios são os arrebiques e mais surpreendente o bricabraque. Por razões que só eles saberão, decidiram os vivos obrigar os defuntos a tomar parte nestes festins de mau gosto bacoco.
Mas já o viajante encontra o que procura. Encostados a uma campa recente que lhe tomou o lugar, lá estão os restos da lápide funerária do padre Júlio, uma cruz celta e um livro de pedra que ali deixaram aberto, e nunca ninguém fechou. Antigamente havia símbolos na morte, havia um pensamento ritual, uma coluna quebrada, um anjo de asa caída. Agora há só alindamentos, enfeites de arraial, um dia em breve serão formas vazias, entulho cultural.
O homem era de Almendra. E logo que se fez padre veio parar a esta freguesia, estava a chegar aí o século XX. O padre Júlio jurara, de boa fé, o celibato dos cânones. Mas quando aqui encontrou a Carmina, teve mais força a vida que as papeladas dela. A voz comum acabou por estranhar tão chegada mancebia. E bem fez o padre orelha mouca aos ditos, mas o bispo exilou-o para Moreira de Rei, por trás daqueles montes. Foi então a vez de Carmina pôr os pés ao caminho. Era inverno, a chegar a primavera, e ela lá vai, ladeira abaixo, por entre as eiras da Varela, passa a ponte velha sobre a Teja, faz uma vénia contrita ao santo que além está na capela, um São Sebastião debaixo duns negrilhos, sobe os cerros do Montrangão, atravessa a charneca das Terras Grandes, e senta-se a descansar no alto de Moreira, abrigada à capela do mesmo santo que outra vez ali a está esperando, à entrada do povo. Carmina dá tempo que chegue o fim da tarde, para dar menos nas vistas.
Outra vez o bispo investe contra a mundaneidade, e outra vez resistem Carmina e padre Júlio, ninguém sabe agora dizer qual deles com mais vigor. O bispo suspende o pastor, tira-lhe o priorado, agita uma interdição. Carmina responde mudando-se para Moreira, e se este bispo fosse uma vez ao jardim do paraíso, já ficava a saber que nada tem mais força que uma boa paixão. No fim o bispo recuou. E Moreira, que já tinha tido um rei vencido, ganhou agora dois vitoriosos, e uma família nova.
A bem dizer o viajante não se agrada de fariseus fraldisqueiros, mas o padre Júlio era um homem justo. Percebeu a grandíssima distância que vai de Cristo à igreja que dele dizem. E, tendo que escolher, não hesitou. Entregava as pistolas ao sacristão antes de entrar para a missa. Mas cá fora era republicano, apoiava Afonso Costa, e defendia, ó deuses, as leis de separação entre a igreja e o estado, contra o cego furor da clerezia. Num dia de invernia entrou, para se aquecer, numa cozinha do povo. A dona da casa bem que lhe dava uma chouriça assada, era o melhor que tinha. Mas era dia de abstinência e ela não pagara as bulas. O padre tirou uma bula do bolso, embrulhou nela a chouriça, assou-a no borralho e todos a comeram, com grande satisfação e muito maior proveito.
– Adeus, ó pai dos pobres! – chorava o povo de Moreira, quando o padre morreu. O viajante pensa que não se pode levar prenda melhor, depois de morto.
Jorge Carvalheira
Portugal profundo – 3
Na estrada, a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Não sei quem tem razão. Eu fui lá muitas vezes, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, e a simetria misteriosa das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. E acabei feito pagão, perdido de amores por uma pujante madona de terracota, que escondia promessas carnais num manto azul a esvoaçar. Cheguei a congeminar o plano caviloso de raptar a madona numa noite de inverno.
Nesse tempo era vivo o Gastão, um caseiro que habitava os anexos e olhava pelo conjunto. Fazia bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana que vendia aos passantes. Era naquilo tudo a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Levava-me às palmeiras do passal, à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, numas terras que o fidalgo arrematou, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer, pela Santa Inquisição. Subíamos depois ao belvedere e mostrava-me o salão de honra, nos altos do torreão. Pendiam do tecto caixotões de santos, a ameaçar ruína, alguns a desabar por causa das humidades. Finalmente levava-me à capela, onde a santa, à minha frente, se desfraldava num pedestal.
Depois contava-me a história. Que D. Luís se foi ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Que era capitão da Armada Real, e provedor dos quintos de el-rei, em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará.
– O muito e o pouco passava-lhe pela mão! Era de el-rei, mas quem parte e reparte… – sugeria o Gastão, sem avançar.
D. Luís tinha em casa uma escrava da Mina, por quem se apaixonou. E trazia, no regresso a Lisboa, a mulatinha Angélica, que vemos nestes quadros. “Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro.” E lá estava um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. “Milagre que fez Nosso Senhor … no mar da Bahia…”. E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
D. Luís era de Santa Marta de Penaguião. E, ao ver-se em aflição, prometeu erguer à Senhora da Penha esta capela. Ao lado do solar, e dum convento franciscano que não chegou a existir. “Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar.” O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão. E mostrava-me, num livro dum letrado, que o fidalgo tomara ordens sacras ao fazer sessenta anos, que a mulatinha morreu sem descendência no ano em que assaltaram a Bastilha, e que o Solar dos Brasis é um testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará. Eu sempre vi neste solar um túmulo, entre muitos, onde embalsamaram Portugal. Mas nunca cheguei a dizê-lo ao Gastão.
Não sei se os caixotões acabaram por cair, nem se a madona continua lá, a esvoaçar no pedestal. Quando há dias voltei ao Solar dos Brasis, o Gastão tinha acabado de morrer. E o IPPAR pôs um telhado novo ao torreão, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Fica-me a pena de não ter assaltado a madona, numa noite de inverno. Mas ainda bem que o Gastão foi embora, sem saber a verdade.
Jorge Carvalheira


