Para os leitores do post abaixo, do Valupi, algumas informações mais,
de um artigo que publiquei na KAPA, em 1992.
Há tempos, O Independente ocupava-se de um tema amargo. Falava-se da estadia de gatos em ‘pensões’ durante as férias dos donos. Consolações só havia uma: a de o bicho, numa segunda estada, já ter noção do que lhe acontecia. A partir daí, escrevia o jornal, «o bichano já percebeu que só está ali de férias e que eventualmente o dono irá recolhê-lo». E nós, amigos de gatos, ficamos tristes outra vez. Porque afinal só eventualmente o dono o virá buscar. Depois, se o entristecimento não toldar de todo a razão, há-de haver quem recorde o seu inglês. E lá está: o dono há-de vir finalmente buscar o tareco. «Eventually», era bem de ver.
Este drama passou. Mas ainda há-de ver-se muito sofrimento inútil. Por impensável que, assim a frio, possa parecer, este decalque inglês vem tomando entre nós apreciável terreno. Não poupa ninguém. No Expresso pode escrever-se isto: «Os físicos do início deste século viviam um sentimento de crise e eventualmente de desespero». Leia-se em inglês e percebe-se. Mas mesmo um autor tão seguro como Jorge de Sena se refere a poemas «em que o poeta, eventualmente regressado à sua terra natal, se compraz nadando», etc. (em O Reino da Estupidez, II).
É grave? Não sei. Só sei que há mais e há pior. Por exemplo, já ninguém tem mão nesse tresloucado virtualmente. Pois, que pode supor-se signifique «O avião tornou-se virtualmente incontrolável?». Ou: «Possuindo uma aparência característica, é virtualmente impossível confundi-las»? Que aconteceu, para poder dizer-se «Todos os medicamentos são há anos virtualmente desviados para o Zaire»? Será verdade que «as visões da nossa poesia são virtualmente ilimitadas»? Tudo isto de fonte impoluta e exemplar, casos do Expresso ou do JL. Para quem não souber o que «virtually» quer dizer (e é esta coisa simples: ‘quase’, ‘praticamente’) aquilo são afirmações que soam no vazio.
A significação das palavras é, foi sempre, um dos segmentos mais movediços da linguagem. E nada como os advérbios para mostrarem elasticidade. Já a nossa bisavó gatinhava, e ainda o advérbio ultimamente significava ‘em último lugar’. Novamente equivalia, por essa altura, a ‘recentemente’. Assim continuará a ser. A semântica do advérbio é um encadear de desvirtuamentos. As acções de salvamento individuais não conservam, passados anos, senão o lado grotesco. Na melhor das hipóteses, consegue-se enternecer a posteridade.
Dito isso, avancemos. É que esta batalha pode não estar de todo perdida.
Não é só o inglês que nos perpassa as porosidades, o francês faz outro tanto. Todos temos um amigo português em França que nos escreve, rendido: «Finalmente tinhas razão». Ele quer, é evidente, dizer: «Afinal tinhas razão». Ou surge-nos de lá uma amiga, também portuguesa, a informar: «Normalmente chego hoje». Ela queria apenas dizer ‘em princípio’.
Mas como os amigos na França são muitos, há de que recear-se. Em particular quando as forças francesas e inglesas se aliam para a desestabilização. Veja-se o caso de aparentemente. Ele tem, coisa conhecida, o valor de ‘à primeira vista’, ‘na aparência’. Seja este exemplo: «O líder dos conservadores afirmou que a nova ideia, aparentemente benéfica, se transformara, quando posta em prática, numa monstruosidade perversa». É isso. Estava, não há muito, nesta revista.
Acontece porém que, dois em cada três casos, aparentemente se nos oferece com significado alienígena. Exemplos? Eles são diários, veja-os o leitor por si mesmo. E substitua-os por qualquer coisa como ‘ao que parece’, ‘segundo tudo indica’, ‘pelos vistos’, ‘ao que consta’. Isto é português e, para mais, bastante menos monótono.
É consigo. Mas, se fosse eu, agarrava esta língua antes que resvalasse mais. À bruta, se necessário.
O mais das vezes, nem tanto será preciso.
Revista KAPA, nº 11, 1992