Para um comentador literário, poucas coisas são mais irritantes do que a doentia necessidade de alguns colegas de ‘dizer bem’. Não é só por aquela decisão, cobarde, de nunca escrever ou falar sobre livros de que não se goste. As coisas são, se possível, piores ainda: por princípio, acha-se bom tudo quanto aparecer em papel. É a maior das falsificações. É a forma acabada do contrabando.
Porque o fazem eles? Certezas não tenho. Mas pode supor-se que desejem assim assegurar uns tostões. Há publicações preguiçosas que tudo aceitam. E pode imaginar-se que o móbil seja algo difuso: um vago medo de se verem chamados à responsabilidade. Dizendo logo bem de tudo, ninguém depois os virá chatear.
Acontece que tenho um respeito de fundo pelos meus colegas, e não penso logo na solução, ainda assim a melhor, de armar-lhes uma espera para a sova definitiva. Por isso, tento ‘explicar’ a bons modos. Explicar dá muito trabalho, mesmo mais do que armar esperas. Mas com alguma coisa se terá de ganhar o céu.
Peguemos por uma ponta erótica. Não porque o erotismo assegure logo especial prazer (exactamente não assegura, e é disso que vai falar-se), mas porque permite situações claras. É o que se consegue lendo, seguidos, dois livros: A Casa dos Budas Ditosos, do romancista brasileiro João Ubaldo Ribeiro (nas Publicações Dom Quixote), e A Vida Sexual de Catherine M., da escritora francesa Catherine Millet (nas Edições Asa). Podem ler-se em formato de bolso, indo o primeiro às 230 páginas e o segundo às 160. Num livro e noutro livro, uma mulher relata detidamente uma existência sexual dissoluta, e fá-lo em termos directos, despudorados. As semelhanças acabam, também, aqui.
Há, logo à partida, uma circunstância que aparta os livros. O de Millet é uma autobiografia, mesmo podendo admitir-se que, aqui e ali, pensando no bem do leitor, se ficcione o seu tanto. Já o de Ubaldo é ficção pura e dura, por mais que possa imaginar-se (e não faz mal fazê-lo) que o autor alude a factos seus conhecidos.
Mas onde os livros se afastam, para nunca mais se encontrarem, é no modo como um e outro autor conceberam a história e como a redigem. O livro de Catherine Millet é um desconsolo. Repetitivo, confuso, nunca levanta voo, antes consegue o pior: não criar surpresas nem qualquer esperança delas. Bem diferente nos surge João Ubaldo, de quem, de resto, se conheciam já romances vigorosíssimos, como Viva o Povo Brasileiro, em todos os sentidos um sucesso. Ora, quem é a narradora de A Casa dos Budas Ditosos? É uma tia espectacular, absolutamente insuperável, senhora de artes espantosas, de deixarem ofegante o leitor.
Da leitura dos dois romances, pelo menos isto ficará claro: que há uma literatura que nos arrasta consigo e uma outra que nem gato é, julgando-se lebre.
Aos críticos literários que, depois disto, não virem a diferença, desejo sinceramente que dêem bons hortelões.
[já vê, fernando: agora ninguém vem concordar consigo, não vá o diabo tecê-las e o fernando estar enganado…] ;)
Não é por coisas, Susana. Mas muito teria o diabo, desta vez, que tecer.
Não seja por isso: eu concordo. Não no que diz respeito aos livros em si, que não li (embora já tenha curiosidade de pegar no Ubaldo… mas a pilha de livros por ler tem mais de um metro de altura), mas no que se reporta à cobardia inerente à crítica-de-dizer-bem. A crítica-de-dizer-mal também faz falta, até aos próprios escritores, desde que consiga o equilíbrio necessário para dizer mal sem ser destrutiva nem malcriada, o que nem sempre é fácil. E desde que tenha a honestidade suficiente para separar a(s) qualidade(s), boas ou más, da obra do gosto pessoal do crítico.
Na _Os Meus Livros_ tem-se em geral conseguido fazer isso, apesar da exiguidade do espaço disponível, o George também o faz, e muito bem, mas há demasiados sítios onde o mesmo não é verdade e só se fala do que se gostou.
Isso talvez tenha a ver com alguns péssimos exemplos do passado; lembro-me por exemplo duma crítica do Francisco José Viegas, numa Ler antiga, intitulada “A Bosta do Trimestre”. Exemplo paradigmático da crítica malcriada e estúpida.
A francesa não iria gostar se lesse a crítica do Fernando, nada crispante, aliás.
Mas o Jorge…
“Sem ser destrutiva nem malcriada”… Olha quem fala.
Depois essa do “exemplo paradigmático” peca por esforçada.A evitar em futuras obras.
Sôrantunes, cada bicho recebe o tratamento que merece. O bicho-livro é tratado com respeito, ou pelo menos tenta-se; já os imbecis arrogantes e malcriados (em especial esse imbecil arrogante e malcriado em quem estás a pensar) são desancados sem contemplações.
Quanto a gostar das críticas ou não, também vai da personalidade de cada um. Quem tem a humildade de reconhecer que não sabe tudo é também provável que tenha a humildade de reconhecer que uma crítica negativa, se bem fundamentada e se não é crítica “à Viegas” (ou talvez seja mais justo dizer “à-aquela-crítica do Viegas”, porque é provável que em quinze anos de vida o homem tenha ganho juízo. Não garanto, porque depois daquilo me recusei a ler o resto da produção do homem, mas admito essa possibilidade), tem toda a razão de ser e até pode revelar-se bastante útil: eu aprendi muito mais com as opiniões negativas que recebi do que com as positivas, e só tenho pena de não as ter recebido em maior número. Já quem não passa dum egolatrazinho é provável que se chateie. E, tantas vezes, os que se chateiam são duma mediocridade a toda a prova. Exemplo célebre? A Margarida Rebelo Pinto, pois claro. Mas que tem que se chateiem? É a vida.
De resto quem não tem a casca suficientemente grossa para aguentar críticas negativas é bom que se limite a produzir para a gaveta, porque toda a gente que cria produtos culturais (e falo mesmo de TODA a gente, dos piores aos melhores) acabará por levar com críticas ou opiniões negativas mais tarde ou mais cedo, e com maior ou menor virulência. As pessoas são diferentes, quem produz opinião também, e mesmo deixando de lado quem não tenta fazer as coisas com honestidade, há necessariamente opiniões diferentes sobre as obras, por vezes até diametralmente opostas.
(Aliás, eu tenho cá comigo a ideia não provada de que as obras que parecem obter apreciações razoavelmente unânimes só muito raramente prestam para alguma coisa. Mas divago)
Não há crítico nenhum que produza “a verdade”. Todos produzem apenas a sua verdade. Até os detalhadíssimos desanques do George não são mais do que isso, porque todas as críticas (ou resenhas ou simples opiniões) são necessariamente selectivas naquilo que mostram ou de que falam.
Uma crítica decente, que é coisa que em Portugal não existe por motivos óbvios, é uma crítica múltipla, discordante, por vezes cacofónica, sem cordelinhos que a manipulem (o que não é bem a mesma coisa que dizer honesta, mas tem a ver) e exuberante.
A nossa é raquítica (duvido que se chegue a falar de 1% dos livros que são editados em Portugal), absolutamente repleta de amiguices, desamiguices e pequenos e grandes conluios, muitíssimo monocórdica (até porque as vozes dissonantes, nesta nossa terreola tão avessa ao contronto honesto de ideias, são mal vistas e perseguidas, em geral por omissão mas por vezes também activamente), enfim, uma treta.
A pequenez do meio é só parte do problema, até porque o meio é assim tão pequeno em parte precisamente porque dissonâncias são postas de lado.
(um parêntesis final para dizer que os blogues e a net, em geral, vieram alterar um pouco esse estado de coisas. Mas só um pouco, porque a crítica online geralmente não é respeitada. Com frequência, é como se nem sequer existisse. E que seja muito menos sujeita às manipulações das conveniências do que a outra não parece ter a menor importância)
Jorge,
O que expões é perfeitamente claro, e genericamente tens razão no que expões. Há pouquíssima crítica independente (ou que ‘representa’ independência, o que já não é mau de todo). Concordo em que «Os Meus Livros» faz, neste domínio, um trabalho exemplar.
Não me recordo do que contas do FJ Viegas, e da tal «bosta do trimestre». Não será lenda urbana? Eu acompanhei com atenção a «Ler», escrevi mesmo lá bastante, e não tenho ideia dessa secção. Poderias ser mais concreto (mais «específico», como dizem os parvos)?
Mas podes acreditar nisto: fazes mal em não ler o Viegas. Ele é um dos nossos grandes ficcionistas. Enterra, com garbo, os Antunes. Lê «Longe de Manaus» e reconcilia-te.
Quem quiser saber se é lenda urbana ou não só tem que pegar na Ler nº 23 do Verão de 1993. E não é secção nenhuma: é um artigo, curtíssimo por sinal, onde o disparate surge sem o mais pequeno exemplo que o justifique, sem o mínimo argumento. O problema não é tanto o qualificativo de “bosta do trismestre”; é a completa ausência da mais pequena justificação para ele e o desinteresse patente em explorar o lado positivo que a tal “bosta” possa ter. Uma crítica muito – mas muito – estúpida.
Quanto ao resto, até acredito que o Viegas possa, eventualmente, saber escrever. Já li muitos elogios à sua obra recente, e não me custa acreditar que seja mais interessante que o Antunes (do qual desisti depois de “As Naus”, por pura falta de paciência para aquele estilo).
Mas lá está: pilha de livros por ler com mais de um metro de altura, e a curiosidade, que já não é muita, esfuma-se.
Fui ver o que dizes. Creio que te referes à primeira colunazinha da pág. 33.
Francamente, Jorge. É estapafúrdio focares os holofotes numa merdita destas (um gajo lê e passa, podendo dar-lhe até razão de mão bejada – ou pode até, sendo o caso, dizer como tu «uma crítica muito, muito estúpida»), e esqueceres as já DEZENAS DE ANOS de aturado trabalho de FJV em prol da nossa literatura.
Não se te pode tomar a sério, desculpa.
Pois sim, mas nessas “dezenas de anos” os únicos cinco minutos que o Viegas dedicou à literatura que mais me interessa resultaram naquela merda. É precisamente por causa do contraste entre “as dezenas de anos” e aquilo que aquilo assume um significado muito maior do que o seu tamanho. Transforma-se num paradigma. Talvez devesses pensar um pouco sobre isto “antes de não me tomar a sério desculpa lá”.
Se bem que na verdade não me interessa que me tomes a sério ou não. É-me igual ao litro. E por várias razões:
– Porque um dos maiores problemas da supina mediocridade que por cá recebe o nome de elites (culturais ou não) é tomar-se demasiado a sério. Podes ter a certeza de que eu não me tomo lá muito a sério a mim próprio. Nem sempre consigo, às vezes lá me descai a patetice para achar-me mais relevante do que realmente sou (do I hear bells ringing?), mas em geral até consigo. Basta olhar para aqui.
– Porque por causa cá duns quantos quinhentos tampouco te tomo lá muito a sério a ti. Não só por uma questão de princípio, mas também porque acho que tens dias. Dias em que pareces um tipo às direitas, outros em que te mostras tal e qual o valupi, o que se fosse a ti acharia francamente deprimente.
– Porque não tomar a sério quem tem uma perspectiva diferente (enquanto se toma terrivelmente a sério quem alinha pela mesma cartilha) é algo que se espera nesta terreola tão avessa ao confronto honesto de ideias. Faz parte do território, faz parte do problema, faz parte da natureza pequenina, sob todos os aspectos, daquilo a que há quem chame, sem se rir (prodígio!), “intelectualidade portuguesa”.
– e mais uns quantos eteceteras que me aborrece explanar.
Jorge,
Se te entendo, houve, há quase 15 anos, uma anotação – de entre as centenas que o Viegas escreveu na Ler – em que descoincidiu, em questão de gosto, da «literatura que mais [te] interessa». A coisa ficou-te, pois, e bem, atravessada.
A essa literatura dedicou o V. cinco desgraçados minutos. Tão desgraçados que esse negro clarão apaga todo o resto. Eu li a peçazinha, e apenas vi que ele exigia qualidade. Como eu. Como tu.
Ora, exactamente isso faz-me curioso: qual é essa literatura que mais te interessa?
Fernando, onde te mostras igualzinho ao teu amigo da alcunha começada por v é nestes pequenos vícios de argumentação que envenenam de imediato qualquer conversa. E que me ajudam a realmente não te levar a sério.
Quem diabo te vendeu a peregrina ideia de que algo “apaga” o que quer que seja? Não terei já eu admitido que acho provável que o Viegas saiba escrever? Não terei por acaso feito logo a ressalva de que é provável que a estupidez crítica vieguina se resumisse àquela crítica? Será necessário apontar-te a dedo onde fiz uma coisa e outra? Estou certo que não; afinal sei que sabes escrever e, consequentemente, sei também que sabes ler, donde vem que o teu “esquecimento” de tudo aquilo de que não te interessa recordar só se pode dever a uma certa carência de boa fé argumentativa. Julgo eu. Posso, agora e sempre, enganar-me.
Ou será que achas que lá porque tu gostas do que faz Fulano de Tal, todos os demais são também obrigados a gostar ou, sequer, a interessar-se pelo que faz Fulano de Tal? É que foi apenas isso que eu fiz, percebes, pá?: demonstrar desinteresse pelo Viegas, e pelo que ele fez ou deixou por fazer. Não consideras legítimos os motivos? Mas quem diabo te julgas tu para opinar sobre os meus motivos?
Fernando, caro Fernando, eu leio por prazer, salvo quando leio porque a profissão a isso me obriga. E assim, salvo aquilo que sou obrigado a ler porque a profissão obriga, escolho o que leio com base nos meus próprios critérios. Não nos teus, não nos da Fada dos Desejos ou do Pai Natal, nos meus. Percebes? E os meus critérios não te dizem minimamente respeito, tal como os teus não me dizem respeito a mim. No máximo dos máximos poderá ser útil conhecê-los para avaliar se aquilo que dizes sobre o que vais lendo me interessa minimamente. E só isso, nada mais.
Assim sendo, a tua estapafúrdia ofensa por eu ter perdido interesse no que o Viegas faz ou não faz com base em algo que me pareceu demasiado estúpido e demasiado flagrante no que revela de preconceito é, desculpa que te diga, idiota. Que sugiras que leia, o “Longe de Manaus” ou outra coisa qualquer, bué da fixe como dizem os paquistaneses, mas não me venhas cá com merdas acerca do trabalho do viegas em prol da literatura, como se eu alguma vez tivesse reduzido esse trabalho a zero. Não me interessa o que ele escreve. Só. Nada mais e nada menos. Como é de meu direito.
Mais: leste a notazinha? Óptimo, só te fica bem. Convinha, já agora, era ler também o livro a que a notazinha diz respeito. Se o fizesses, e se a tua fãnzoquice pelo viegas não te toldasse a vista, talvez te apercebesses de que escrever uma crítica ou uma notazinha é suposto ser mais do que debitar umas palavrinhas impressionistas e sem a mais pequena sombra de comprovação daquilo que se diz. Uma crítica é mais do que um “epá, não gostei, achei uma seca, os portugueses e os brasileiros, e tal, pois, epá, não gostei, uma bosta, do trimestre”. Uma crítica não é o mesmo que um minuto de prosa, numa roda de amigos, num café, enquanto se galam as gajas que passam. Compara com esta outra notazinha sobre o mesmo livro. Espero que saibas ver a diferença, mesmo apesar da fãnzoquice. E antes que me venhas com o argumento do espaço disponível, hás de reparar que aquela notazinha, a do viegas, está impressa num tipo maior do que os das que estão ao lado. Se o viegas não disse mais foi porque não quis, porque não lhe apeteceu, porque resolveu resumir a coisa precisamente naquele texto merdoso que saiu na Ler e não noutro qualquer. Se não explicou foi porque não quis. Se ao exigir qualidade não ressalvou os sítios onde essa qualidade surgia, mesmo que a considerasse tímida, foi porque não quis. Se se aproveitou da sua posição na Ler para desferir um ataque em vez de fazer uma crítica honesta foi porque quis. E são estes os meus motivos para me desinteressar do que ele faz ou deixa de fazer. Os meus, pessoais e inalienáveis, percebes?
Hm… é a segunda vez que isto me acontece: à primeira dá erro, guardo o texto do comentário, forço o reload de toda a página para ver se apesar do erro o comentário entrou, vejo que não, volto a enviá-lo e aparece em duplicado. Peço desculpa, mas se a página, depois de recarregada (com CTRL+reload) não mostra o comentário, não estou a ver como evitar a duplicação.
[Jorge, retirei a duplicação e aproveitei para retocar o nome do interlocutor. O sistema é, de facto, deficiente em caso de recusa (técnica, claro). Mais tarde responderei ao teu comnentário].