Saber se Sócrates assinou projectos de que não foi autor, e/ou se não os conferiu tecnicamente antes de assinar, é relevante. Identificar caligrafias diferentes é suficiente para descobrir parcerias, no mínimo. Interrogar os proprietários dos imóveis em causa acrescenta dados importantes, mesmo que não decisivos. E o Público faz bem em dar a notícia.
Entretanto, Sócrates defende a sua verdade. O jornal voltará à carga. Os comentadores irão perorar. Menezes é capaz de se sair com alguma tonteira engraçada. Os cães espumarão de raiva. Que está aqui a faltar? O Zé Manel. Falta explicar duas coisas:
– Vai o Público mandar os seus jornalistas fazer o levantamento, e a investigação, dos casos similares que envolvam outras pessoas?
– Qual é a posição do Público, enquanto instituição cuja missão é a de exercer um jornalismo independente do poder político, face às irregularidades do poder autárquico? E quanto à temática da corrupção? Quais são as investigações que o Público levou a cabo sobre qualquer um dos grandes casos de corrupção ocorridos desde 74?
Porque é simples. Sócrates faz parte de um sistema, cultural e geracional, que convive simbioticamente com a corrupção desde as juventudes partidárias. Para além disso, conhece os modos pelos quais se fintam regularmente as leis no Poder Local, zona de ambiguidade que tanto pode ser ocasião de aproveitamento ilícito como de proveito público, ou ambos. E domina a lógica da confluência de interesses entre os grandes empresários e os políticos com capacidade para moldar legislações, regulamentos e directivas, entregar empreitadas e serviços, viabilizar negócios. Isto não faz dele um corrupto, atenção, mas deixa-o diminuído eticamente até ao fim da sua vida ou até ao fim do seu silêncio. Silêncio que é, afinal, o de todos. Acaso alguém ignora que é impossível a Mário Soares ou a Cavaco, só para dar os mais notáveis exemplos, alegar desconhecimento em matérias da grande, da média e da pequena corrupção? Contudo, nenhum deles a denunciou. Mais, nenhum deles a perseguiu ou diminuiu; e juntos somam um quarto de século com o poder máximo nas bem lavadas mãos. Não é por acaso que os processos de corrupção são ínfimos face ao clamor popular e aos indícios na comunicação social — é porque, neste 34 anos de democracia, as elites políticas nunca quiseram combater a corrupção. Todas as pessoas que exerceram cargos públicos são coniventes, seja de que forma for. Só se salva o João Cravinho, figura mal-amada pelo povo, talvez por ser o único português sério e a sério no problema. Povo que é, por sua vez, o caótico responsável final pela democracia gangrenada que temos.
O que é complicado, mesmo confuso, é o Zé Manel. Está danado para provar que Sócrates não poderá ser canonizado, não perdendo uma oportunidade para lançar suspeitas sobre situações simultaneamente ambíguas e ridículas. Porque é ridículo querer matar a mosca pousada na testa do guarda com um tiro nos cornos. A não ser que haja vantagens em acabar com o guarda. Seguramente, o pior que poderia acontecer a Portugal, e neste momento, era Sócrates pedir a demissão por causa de uma questão moral e hipócrita. Talvez até o Zé Manel consiga perceber isso.