Arquivo da Categoria: Júlio

Dizem que é semipresidencialismo

Vozes da direita têm alegado que vivemos em regime semipresidencialista, de onde inferem a legitimidade de o PR decidir livremente a nomeação do primeiro-ministro e, no caso presente, deixar de nomear Costa para encabeçar um governo com apoio parlamentar maioritário. É mais um argumento desesperado de gente tendenciosa e ignorante.

O próprio Cavaco afina por esse diapasão, desde que soltou a célebre cavacada de 22 de Outubro, a saber: “Cabe ao presidente da República, de forma inteiramente livre, fazer um juízo sobre as diversas soluções políticas com vista à nomeação do primeiro-ministro.” E depois de ter sustentado isto, Cavaco embrenhou-se em conhecidas considerações políticas, justificativas da escolha que fez de um primeiro-ministro sem maioria no parlamento, em detrimento da alternativa maioritária que lhe fora já apresentada pelos partidos de esquerda.

Quando se fala de semipresidencialismo, alude-se ao facto de em Portugal o PR ser eleito por sufrágio popular e de, por essa razão, deter poderes importantes, designadamente o de dissolver o parlamento e o de demitir o governo. Ora em 1982, com a direita no poder, houve uma importante revisão da Constituição. Entre outras alterações feitas, houve uma que fortaleceu, outra que enfraqueceu os poderes presidenciais: 1) foi extinto o Conselho da Revolução, passando o PR a poder dissolver a AR sem necessidade de prévio parecer favorável daquele órgão extinto; 2) o governo passou a ser politicamente responsável apenas perante a Assembleia da República, deixando de o ser perante o PR. Ambas as alterações à Constituição – que o PS também apoiou – vinham na sequência de anteriores guerras contra Eanes, protagonizadas sobretudo por Sá Carneiro, mas secundadas por Mário Soares. Houve quem comentasse, após a revisão de 1982, que o semipresidencialismo português tinha sofrido um rude golpe, mas ninguém verteu lágrimas por ele. Os chamados governos de iniciativa presidencial também acabaram com a revisão de 1982. O próprio Cavaco o reconheceu em 2013: “Se um Governo que passa na Assembleia não responde perante o Presidente mas só perante a Assembleia, então não faz qualquer sentido um Governo de iniciativa presidencial.”

Uma das consequências de o governo ter passado a ser politicamente responsável exclusivamente perante a AR foi o PR ter deixado de poder demitir o governo por razões políticas, apenas podendo fazê-lo em circunstâncias excepcionais, “para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas”. Mas se o PR não pode agora demitir um governo por razões políticas, também não pode nomear ou deixar de o nomear um governo com base em considerações ou preferências políticas. Para nomear o primeiro-ministro, o PR apenas tem de ouvir os partidos representados no parlamento e ter em conta os resultados eleitorais. Se não gostar nem de uns nem de outros, só lhe resta meter uma rolha ou renunciar ao cargo.

 

Constituição marada

O exemplar da Constituição de que Cavaco se serve foi comprado na Feira da Ladra a um vendedor de banha da cobra que costuma abastecer Belém. Estou em condições de afirmar que se trata de uma edição clandestina e apócrifa da lei fundamental. Cotejando a Constituição da República editada pela Imprensa Nacional com um exemplar da Constituição igual ao de Cavaco, que anteontem adquiri na dita feira, detectei uma grave disparidade no artigo 187.º, referente à formação do governo.

Constituição da República:

O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.

Exemplar da Constituição marada de Cavaco:

O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República quando lhe apetecer, depois de ouvidas as entidades que bem lhe aprouver, especialmente as seguintes: grupos de constitucionalistas, politólogos, banqueiros e economistas que pensam como o Presidente da República; o Fundo Monetário Internacional; a Associação dos Comerciantes de Carnes Verdes e Afins do Distrito de Leiria; a Confederação dos Grémios da Lavoura; a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho; o sr. João Salgueiro; as agências Fitch, Moody’s e Standard and Poor’s; o sr. Mariano Rajoy; o presidente do Automóvel Clube de Portugal; o Patriarca de Lisboa; o sr. Marques Mendes; a esposa do Presidente da República e demais pessoas da sua roda. Acessoriamente poderão ser ouvidos os partidos representados na Assembleia da República, com a condição de o Presidente da República previamente se munir de tampões para os ouvidos. O Presidente da República terá também em conta os resultados eleitorais, deduzindo porém, a título de sobretaxa, metade dos votos e dos deputados obtidos pelos partidos nefastos para a almofada financeira da Nação.

Demita-se, sr. Cavaco!

“Eu, como primeiro-ministro de um governo, estive cinco meses em gestão.” Foi com esta baboseira que Cavaco respondeu na Madeira a uma pergunta sobre se não era urgente a nomeação de um novo primeiro-ministro.

Aquilo a que se referia passou-se em 1987, quando o seu governo minoritário foi derrubado por uma moção de censura do PRD apoiada pelo PS e pelo PCP (3 de Abril). Seguiram-se negociações entre o PS de Constâncio e o PRD chefiado por Eanes, que juntamente tinham mais deputados do que a direita. O presidente Mário Soares – cometendo, aliás, a maior asneira da sua carreira política – não aceitou essa alternativa de governo que lhe foi apresentada e, no pleno uso dos seus direitos, decidiu dissolver a AR. Foram convocadas novas eleições, que decorreram a 19 de Julho. A 17 de Agosto tomou posse o novo governo, também liderado por Cavaco, mas já com maioria absoluta. A 28 de Agosto o programa de governo passou na AR. Não houve qualquer arrastar da situação pelo presidente, mas apenas os passos normais que se dão num regime de democracia parlamentar, quando um governo é demitido a meio do  mandato. De resto, a decisão de Soares foi mais tarde considerada por Cavaco como uma “benesse”. Enorme hipocrisia a sua vir agora queixar-se de 1987!

Que analogia existe entre a crise de 1987 e a de 2015? Nenhuma. O PR não tem agora poder para dissolver a AR, enquanto em 1987 tinha-o inteiramente – e exerceu-o. Estamos agora no período de formação de um governo após eleições legislativas, enquanto em 1987 o governo minoritário saído das eleições de 1985 já governava há dois anos. Houve agora a rejeição de um programa de governo, enquanto em 1987 se tratou de uma moção de censura a um governo em exercício. Já nem menciono o facto de ser agora urgente aprovar o Orçamento, que Bruxelas exige todos os dias. Só uma mente chicaneira se lembraria de sustentar qualquer analogia com 1987 para tentar justificar o injustificável: um mês e meio passado sobre as eleições, ainda não há sombra de novo governo. Em 1987, um mês e dez dias depois das eleições, já havia  governo e o seu programa já tinha sido apreciado na AR.

Cavaco está, de facto, a gozar com o pagode, como já disse o director da TSF. Ora um presidente que decide gozar com o pagode arrisca-se a levar com ovos podres. Como recusa fazer o que a Constituição lhe impõe, só lhe resta uma saída constitucional: renunciar ao cargo. Por isso, sr. Cavaco, preste um serviço ao país e demita-se quanto antes!

O presidente chicaneiro

Chicaneiro. Diz-se do advogado que se vale de meios cavilosos para retardar o andamento de um processo.

A Constituição não prevê o caso insólito de um PR recusar ou ir protelando fazer o que lhe compete. Por exemplo, não há um prazo para, após a rejeição de um programa de governo, o PR nomear um novo primeiro-ministro. Na sua excessiva boa-fé, a Constituição espera que o PR faça sem demora o que tem de fazer.

Perante a situação inédita de um governo ser rejeitado pelo parlamento, Cavaco resolveu fazer cera, parecendo mesmo disposto a fazê-la até ao limite da paciência do país. Já sabíamos, desde os episódios do seu primeiro mandato, que nos tinha calhado na rifa um presidente mentiroso e golpista. Confirma-se agora que o indivíduo é também um chicaneiro disposto a explorar cavilosamente certas indefinições da lei para protelar indefinidamente aquilo que tem de fazer.

Por incrível que possa parecer, nenhum órgão de soberania tem competência para verificar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos actos e omissões do PR. Se o chicaneiro de Belém resolver não nomear novo PM e persistir na actual atitude obstrucionista e provocatória, continuando a viajar e a fingir que ausculta o país, o que poderá legalmente fazer-se para acabar com isso? Quase nada:

1 – A AR pode impedir que o governo demitido exorbite das suas funções de “gestão”, mas os deputados não têm aparentemente poder para impedir o PR de arrastar indefinidamente a nomeação de novo primeiro-ministro. No seu art. 162.º, alínea a), a Constituição diz que compete à AR “Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração”. O cumprimento da Constituição parece não se aplicar aos actos do PR.

2 – A Constituição permite que, por iniciativa de 2/3 dos deputados, o STJ inicie um processo de destituição do PR por crime praticado no exercício das suas funções, mas seria necessário provar que é crime recusar fazer o que a Constituição lhe impõe, coisa que os juízes do STJ demorariam seis meses a fazer – ou, mais provavelmente, a não fazer. A sugestão há dias feita por Vasco Lourenço para que seja futuramente possível destituir o PR por referendo é uma má ideia, além de inútil no momento presente.

3 – A renúncia do PR seria uma boa solução. Nesse caso, o presidente interino, Ferro Rodrigues, nomearia sem demora um novo primeiro-ministro, após audição obrigatória do Conselho de Estado. Mas tal solução está dependente da vontade do… chicaneiro.

4 – Podem sempre fazer-se manifestações de rua, greves, boicotes, etc., para exigir a substituição do governo demitido por um governo com apoio maioritário na AR. O arremesso de tomates e ovos podres ao PR e ao PM parece não ser uma forma legal de expressão da indignação.

Conclusão: muito cuidado com o PR que se elege, porque pode sair uma alimária chicaneira.

Há limites para a estupidez

Prova-o bem o laranja Paulo Mota Pinto, que, apesar de estupidamente sustentar que um governo de esquerda está ferido de “ilegitimidade democrática”, não leva a sua estupidez aos cumes atingidos pelo seu correlegionário Passos Coelho, que se lembrou agora de propor uma revisão constitucional de afogadilho para permitir realizar novas eleições legislativas.

“A revisão constitucional não deve ser usada como arma na luta político-partidária quotidiana, nem deve ser feita a reboque de uma situação ou caso concretos”disse, e bem, o constitucionalista laranja Mota Pinto.

Acrescentou, e bem, que a proposta de Passos Coelho é “irrealista e, portanto, mero argumento na luta político-partidária”. Isto porque, segundo alegou, o apoio do PS seria sempre imprescindível para encetar essa revisão, o que agora não iria obviamente acontecer.  Ou seja, digo eu, a proposta não passa de uma estúpida provocação de Passos Coelho.

Declarou por fim Mota Pinto, e muito bem, que a proibição de dissolução da AR que se aplica nos seis meses posteriores às eleições legislativas “foi prevista justamente para evitar a repetição a curto prazo de eleições no intuito de forçar mudanças na expressão da vontade popular até se obter um resultado ‘adequado’, em substituição do acordo entre partidos com representação parlamentar”.

Manobras de concertação dilatória

Em lugar de consultar os partidos e nomear um novo primeiro-ministro, como a Constituição lhe impõe, Cavaco tem-se entretido a conversar com os parceiros sociais. Para a semana, o farsante, que diz estar preocupado com o Orçamento, vai passar dois dias à Madeira – coisa absolutamente prioritária neste momento. Um jornal diz que lá para o fim do mês haverá nomeação de primeiro-ministro. Antes do Natal talvez haja um governo a funcionar.

No quadro desta insólita concertação cavaquina, o presidente da Associação das Empresas Familiares (AEF) foi esta manhã a Belém dizer que a economia precisa de confiança e que é preciso conhecer rapidamente as orientações do novo Governo, “seja ele qual for”. Adiantou, porém, aos jornalistas que os “benefícios sociais” anunciados (pelo PS) são “preocupantes”. Sobre a esperada decisão de Cavaco relativamente à nomeação de um novo primeiro-ministro, o dirigente das empresas familiares disse que a decisão é da exclusiva responsabilidade do presidente e que não lhe fez recomendação num sentido nem noutro, mas acrescentou: “Explicámos as vantagens e as desvantagens de um cenário de continuação de um Governo de gestão ou da indigitação de um primeiro-ministro do PS com um Governo minoritário.” Não recomendaram nada, mas explicaram as vantagens e desvantagens. É giro.

Nunca tinha ouvido falar deste “parceiro social”, a AEF. Quando se fala em “empresas familiares” vêm à ideia os pequenos industriais, comerciantes ou agricultores portugueses que lutam por vezes com dificuldades para manter as suas empresas a laborar e pagar salários acima dos mínimos. Ora o presidente desta associação que supostamente os representa, de seu nome Peter Villax, é dono de um grupo multinacional da indústria farmacêutica que tem fábricas em três continentes e factura mais de 100 milhões, a Hovione. É uma boa empresa de hi-tech que exporta a sua produção e diz pagar bem aos seus mais de 500 trabalhadores (em três continentes). Mas qual será a dimensão ou a facturação média das empresas filiadas nessa Associação de Empresas Familiares? E onde é que Villax paga impostos? Não explicou nada disso, mas também não lhe perguntaram… (Este Villax é o mesmo que há tempos declarou que “os portugueses não gostam de trabalhar.”)

Pequeno exercício de história virtual

Pergunta:

Se o PS tivesse sido o partido mais votado em 4 de Outubro, com 36 ou 38% dos votos, como as sondagens durante longos meses indicaram, o que se teria passado?

Resposta:

Exactamente o mesmo que se passou: negociações falhadas do PS com a direita, negociações bem-sucedidas do PS com a esquerda, terminando com acordos de apoio do BE e do PCP a um governo minoritário chefiado por António Costa.

Teríamos a mesmíssima histeria da direita, acusando o PS de fazer acordos contra-natura com partidos revolucionários que querem Portugal fora do Euro e da Europa, que não respeitam os compromissos internacionais, blá, blá, blá.

Cavaco teria também feito o mesmíssimo e vergonhosíssimo discurso que fez a 6 de Outubro, tentando impor condições políticas às negociações entre partidos e tentando excluir o BE e o PCP de qualquer acordo partidário ou parlamentar com o PS.

Uma pequenina diferença haveria, porém. Após as eleições, António Costa teria sido chamado a Belém – tal como Passos Coelho o foi em Outubro –, mas Cavaco teria ameaçado não nomeá-lo primeiro-ministro se o líder socialista não lhe apresentasse uma solução governativa com estabilidade e durabilidade. Há muito que Cavaco vinha avisando que exigiria tal solução, dado considerar que governos sem apoio maioritário no parlamento não eram estáveis nem duráveis (sem razão, porque Guterres governou assim entre 1995 e 1999). Sabemos hoje – se alguma dúvida havia – que essa exigência de Cavaco era destinada apenas ao PS, se eventualmente recolhesse mais votos que o PSD e o CDS juntos, mas não tivesse maioria absoluta. Nomeando, como nomeou, Passos Coelho à frente de um governo sem maioria no parlamento, o presidente da República renegou sem vergonha os seus princípios e a sua palavra – que já não valiam nada, diga-se.

No fim, teríamos exactamente o mesmo resultado que agora se perfila: um governo minoritário do PS apoiado por uma maioria absoluta de esquerda no parlamento.

Cavaco deve agora chamar Costa e convidá-lo a formar governo. E depressinha, que se faz tarde.

 

De paf a puf

Amanhã é um grande dia para a direita. Vai finalmente perceber que perdeu as eleições de 4 de Outubro. Suspeitar, já suspeitava, mas precisava do desengano final.

Não é tragédia nenhuma, porém. O que custa mais são os primeiros quatro anos.

 

A ratoeira de Assis

Desde o 4 de Outubro, António Costa tem mostrado o muito que vale. Aqueles socialistas que na noite das eleições pensavam em exigir a sua pele eram movidos por ressentimento e sede de vingança. O que resta dessa reacção de despeitados é hoje personificado por Francisco Assis. Um partido como o PS precisa de debate interno, como precisa de políticos com a qualidade, o perfil ideológico e a experiência de Assis, mas não no papel que ele tem estado a representar.

Na entrevista de ontem, Costa apontou a Assis, e bem, dois erros: estar contra um acordo que desconhece e achar preferível que o PS adoptasse a estratégia errada de ser oposição. A primeira acusação é verdadeira, mas a atitude de Assis resulta da sua oposição de fundo a uma aproximação do PS ao Bloco e ao PCP, algo que se pode respeitavelmente discutir dias, meses e anos a fio, sem qualquer resultado prático. A segunda acusação é também verdadeira, mas aí o erro de Assis é crasso, ao preconizar que o PS viabilizasse o governo da coligação e fosse depois oposição, ficando à espera das escorregadelas do governo para suscitar sucessivas crises políticas.

Na hipótese académica de termos Assis ao leme, portanto, o PS abstinha-se na apreciação do programa de governo, negociava meia dúzia de cedências contra uma abstenção no Orçamento e permanecia alerta no hemiciclo para impedir, juntamente com a restante esquerda, o tandem Passos-Portas de fazer o que lhe desse na real gana. Obtinha-se por esse modo muito do que o PS quer, mas sem sofrer o desgaste da governação minoritária nem ter que aturar as chantagens do Bloco e do PCP. Assim dito, parece lindo e fácil.

Continuar a lerA ratoeira de Assis

Mentirosos compulsivos

Hoje, perante a passividade bovina dos entrevistadores do Diário de Notícias, foi a vez do deputado laranja Costa Neves reincidir na mentira despudorada que temos ouvido das bandas da direita desde as eleições de 4 de Outubro:

“O ideal era que o PS fizesse o que o PSD, perante governos minoritários do PS, sempre fez ao longo de 40 anos de história: viabilizámos. (…) Como a história demonstra, o PSD viabilizaria um governo minoritário do PS. Fez isso com Guterres e com Sócrates.” (DN, 4.11.2015, p.5)

Assim, em pelote provocatório, ou ainda sob as vestes pudibundas de uma alegada “tradição” ou da “Constituição não escrita”, vem a direita repetindo a mentira a que tenta segurar-se desde o trambolhão de 4 de Outubro. É necessário, pois, martelar a verdade até que os ouvidos lhes doam.

Desde 1976 que a Constituição contém uma cláusula que estipula, invariavelmente, que a rejeição do programa do Governo exige maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (actualmente o art.º 192.º).

Quando é que o PSD ou os partidos de direita conjuntamente dispuseram de uma maioria absoluta para poderem chumbar um governo minoritário do PS? Em 1976? Em 1995? Em 1999? Em 2009? A resposta é: nunca!

A direita não inviabilizou os governos minoritários de Soares, Guterres e Sócrates porque nunca teve poder para os inviabilizar. Faltou-lhe sempre para isso o apoio dos partidos à esquerda do PS. Em contrapartida, o PSD não hesitou em sabotar o governo do Bloco Central (1985) e o PSD e o CDS não hesitaram em derrubar governos minoritários do PS, mas só quando puderam contar com os votos convergentes dos partidos à esquerda do PS (1977 e rejeição do PEC IV em 2011).

As responsabilidades do PCP e do Bloco

A primeira e última vez que o PS e o PCP celebraram uma espécie de acordo foi em Setembro de 1973, em Paris. Chamava-se “Comunicado conjunto” e preconizava a unidade na acção de comunistas e socialistas em prol de três grandes objectivos políticos: a “liquidação da ditadura fascista e a conquista das liberdades democráticas”; o “fim da guerra colonial e o início de negociações” com vista à independência das colónias; enfim, “a libertação de Portugal do domínio dos monopólios” – o que, nesta matéria, sugeria a adopção pelos socialistas do jargão leninista do PCP. O inspirador do acordo terá sido o socialista Mitterrand, que no ano anterior tinha acordado num “Programa comum” do PS francês com o PCF e os Radicais de Esquerda.

Com a queda de Caetano em Abril de 1974, a aproximação esboçada em Paris entre o PS e o PCP entraria brevemente a definhar, vindo à tona tudo quanto profundamente os separava política e ideologicamente. A ruptura total entre socialistas e comunistas, consumada em 1975, manteve-se praticamente durante os últimos quarenta anos, recheada de episódios assassinos, gerando uma perene divisão da esquerda que se foi revelando uma eficaz apólice de seguro para a direita. Notáveis excepções foram o apoio decisivo de toda a esquerda, incluindo os comunistas, a Soares na segunda volta das presidenciais de 1985 e a recusa do PCP em inviabilizar a formação de vários governos minoritários do PS, para o que teria bastado apresentar uma moção de rejeição do programa de governo, que a direita teria aproveitado para votar, ou alinhar numa moção apresentada pela direita. O PCP foi obrigado a actuar assim, de tal modo era óbvio para os eleitores comunistas que, se o PCP não procedesse desse modo, a direita governaria ou Freitas do Amaral seria eleito presidente. No poder autárquico, porém, houve uma aliança notável entre PS e PCP, em Lisboa, de 1989 a 2001, que em 2009 António Costa considerou “inspiradora”.

Estamos agora numa situação só parcialmente idêntica àquelas em que, no passado, o PCP contribuiu para derrotar a direita. O Bloco tem agora mais deputados do que o PCP, mas isso não retira aos comunistas o poder de decidir. Diferença mais notável está em que, caso o PCP não contribua eficazmente para um governo de Costa, a composição do parlamento eleito manter-se-á a mesma, tornando a vida difícil ou impossível a um governo de direita que queira continuar na mesma senda que o anterior. Mas, nesse caso, o PCP deve saber que estará a empurrar o PS para negociar com o PSD a viabilização do governo da coligação – ou, caso isso não resulte, a encorajar Cavaco e os golpistas da direita a tentarem outras soluções.

Se o PCP e o Bloco quiserem contribuir eficazmente para um governo chefiado por Costa, vão mesmo ter que se empenhar nisso a fundo. O PCP não pode limitar-se a afirmar que não votará moções de rejeição ou de censura ou a declarar da plateia que “o PS só não será governo se não quiser”. Costa não quer ser primeiro-ministro a todo o custo e recusará certamente governar com um apoio precário e condicional no parlamento, que o tornaria presa das chantagens do PCP ou do Bloco e o forçaria a demitir-se na primeira situação de impasse. A verdade, neste momento, é que o PS só não será governo se o PCP e o Bloco não quiserem.

Cavaco tem novo conselheiro

Henrique Neto, que anda a recolher assinaturas para se candidatar a Belém (Manuel João Vieira também), autonomeou-se conselheiro de Cavaco e escreveu-lhe uma carta a “explicitar” o que ele deve fazer.

Este antigo deputado socialista, que é suposto ter algumas noções acerca das competências dos vários órgãos de soberania, aconselha Cavaco a exigir que António Costa lhe apresente, por escrito, um “minucioso” acordo de governo para quatro anos apoiado pela maioria parlamentar de esquerda. Ou seja, Neto quer que Cavaco se antecipe e se substitua à Assembleia da República, que é o único órgão de soberania com competência expressa para apreciar programas de governo e, se for caso disso, rejeitá-los.

Neto desconhece em absoluto, ou finge desconhecer, a mecânica da democracia parlamentar, tal como está configurada na Constituição. Neto aparenta também desconhecer que qualquer governo que se forma a seguir a umas eleições é para governar durante um quadriénio – quer depois o consiga, quer não. Mas, pior ainda, Neto é francamente tolo, porque imagina que Cavaco ficaria mais satisfeito se Costa lhe apresentasse um compromisso formal da maioria de esquerda para governar durante quatro anos, quando isso é, na realidade, a última coisa que Cavaco deseja. Resumindo, Neto é tolo e totalmente incompetente para PR, para candidato a PR, para deputado e até para político em democracia.

Caso seja chumbado na AR o programa do governo que o PR primeiramente indigitou, Cavaco deverá logicamente chamar Costa, como líder do segundo partido mais votado, e perguntar-lhe se ele tem apoio parlamentar para governar. O PR poderá também indagar directamente junto dos outros partidos de esquerda se existe tal apoio. Costa explicar-lhe-á que sim e Cavaco indigitá-lo-á para formar governo. Costa formará então governo, tomará posse e, no prazo máximo de dez dias, apresentará o seu programa na AR. O parlamento terá então três dias para, como lhe compete, apreciar e debater esse programa, prazo durante o qual uma de três coisas pode previsivelmente acontecer:
– não surge nenhuma moção, nem de confiança nem de rejeição, e o programa será tacitamente aceite pelo parlamento, quaisquer que tenham sido as críticas ou reservas suscitadas durante o debate;
– a direita apresenta uma moção de rejeição do programa, que previsivelmente será chumbada pelo parlamento,
– ou, o que vai dar ao mesmo, o governo apresenta uma moção de confiança, que previsivelmente será aprovada pelo parlamento.

Ponham o Assis a falar

Assis RTP

Os sinais de divisão interna no PS acentuam-se. Francisco Assis diz que vai reunir-se na próxima semana com militantes e deixar claro que “há uma corrente crítica e alternativa no partido” – afirma a RTP.

Não sei com quantos socialistas vai Assis reunir-se. Mas o seu lugar cativo de comentador político nas televisões, jornais diários e semanários parece agora absolutamente garantido para os próximos quatro anos.

 

Treme, corrupção, que vem aí o Calvão!

João Calvão da Silva, que o chefe do actual governo provisório, Passos Coelho, quer colocar no Ministério da Administração Interna, foi um dos juristas de Coimbra a quem o banqueiro Ricardo Salgado pediu em 2014 um parecer atestando a sua idoneidade, de modo a poder continuar à frente do BES, antes da queda do banco. Nesse parecer elaborado para o Banco de Portugal, Calvão da Silva considerou que a prenda de 14.000.000€ que o banqueiro recebeu do empreiteiro José Guilherme se enquadrava no “bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade – comum unidade –, com espírito de entreajuda e solidariedade”.

 

Uma ameaça

Marco António Costa botou faladura. No meio de ataques ao líder do PS, que acusou de agir por ambição pessoal, e de conjecturas pias sobre uma ainda possível retoma do diálogo com os socialistas, MAC teve uma tirada enigmática, como quem sabe mais do que nós:

“Eu não perfilho da ideia de que o governo tem que cair fruto da aprovação de uma moção de rejeição do programa de governo. Não vamos queimar etapas, não vamos falar sobre etapas futuras que ainda não chegaram”.

Que quer o fulano dizer?

Está a ameaçar que, depois de rejeitado o programa, o governo se vai manter de pé?
Ou só acredita que o governo da direita vai cair quando isso acontecer à sua frente, de preferência com estardalhaço e equimoses?

Os jornais foram unânimes em entender a faladura de MAC como um apelo ao diálogo (!?) com o PS . Eu entendi-a como uma ameaça. Estes gajos estão a preparar-se para abrir uma guerra contra a maioria parlamentar.

Constituição rifada

“O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.”

(Constituição da República, artigo 187.º, n.º1).

 

“Cabe ao Presidente da República, de forma inteiramente livre, fazer um juízo sobre as diversas soluções políticas com vista à nomeação do Primeiro-Ministro. Se o Governo formado pela coligação vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o País precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras, económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas.”

(Excerto da cavacada de ontem).

Em que artigo da Constituição é que Cavaco se fundamenta para fazer tais afirmações e tais juízos?

—————————

P.S. – Já foi encontrado o artigo da Constituição em falta. Diz assim:

“Compete ao Presidente da República nomear o Presidente do Conselho e os Ministros, de entre os cidadãos portugueses, e demiti-los”.

É o artigo 81.º, n.º 1, da Constituição de 1933!