Seria realmente bom saber quantas fundações existem em Portugal, se são públicas, privadas ou público-privadas, para que fins existem, que apoios financeiros e benefícios fiscais, legítimos ou ilegítimos, recebem do Estado, quantas pessoas servem ou beneficiam, com que eficácia laboram em vista dos benefícios da sua acção, quantas e quais é que foram criadas para fins de evasão fiscal, etc. O estudo agora publicado pelo governo não só não responde a muitas dessas questões, como lança poeira nos olhos e mistura alhos com bugalhos.
Pelo barulho histérico que os partidos actualmente no poder fizeram em torno desta questão quando estavam na oposição, era natural que o governo tivesse que prestar contas. Durante anos, essa gente lançou sobre as fundações, todas no mesmo saco, as maiores suspeitas, pondo o público influenciável pelos Mários e Marias Crespos a pensar que as fundações eram quadrilhas que existiam para chular o erário e fugir ao fisco. Com isso, os actuais governantes ficaram obrigados a estudar a realidade e a publicar os resultados da investigação. Aí estão eles, pendurados no Portal do Governo.
Dando uma primeira olhadela no Relatório, que vem acoplado de numerosos anexos e centenas de fichas em pdf, a primeira constatação é desoladora. O censo não foi exaustivo, confessam os inquiridores. Jornais insuspeitos constatam: “A avaliação não permitiu ainda saber quantas fundações existem em Portugal ou quanto gasta o Estado com todas elas e quanto deixa de receber devido a isenções fiscais”. De um universo de 831 fundações conhecidas do Instituto Nacional de Registos, apenas 401 fundações foram avaliadas pelo grupo de trabalho coordenado pela Inspecção Geral de Finanças. Ou seja, metade do universo.
Conhecedor dos costumes deste governo, pensei que o estudo tinha sido encomendado a uma empresa amiga do Relvas. Afinal parece que foi a um grupo de trabalho governamental. Mas não se sabe quem compôs o tal grupo de trabalho nem quanto custou o estudo, o que não é natural num governo com a obsessão do custo/benefício da actividade alheia.
Das 430 fundações que não foram avaliadas, 100 são da Igreja. O secretário de Estado da Administração Pública, na fila para uma canonização, excluiu-as do âmbito do inquérito, sob o pretexto de que teriam sido criadas ao abrigo da Concordata. É sobrenatural! Não importa se as fundações da Igreja recebem ou não apoio financeiro ou benefícios fiscais do Estado, nem quanto recebem. São da Igreja, logo foram excluídas do inquérito, ponto final. O que é da Igreja é fixe, o que não é da Igreja é suspeito. A agnóstica Fundação Mário Soares e a duvidosa Pro Dignitate, dirigida pela notória Maria Barroso, essas sim, estão na mira do governo.
Eu esperava, ao menos, encontrar no relatório do governo uma lista das fundações agrupadas por ordem dos apoios estatais usufruídos de 2008 a 2010, para ficar a conhecer as principais “quadrilhas” que andam a roubar o zé pagante e a ludibriar o fisco. Pois nada feito! Teremos de abrir centenas de pdf e trabalhar largas horas para lá chegar. Tal lista seria um fiasco para as intenções da propaganda do governo, por isso não a mostram. Na verdade, o inquérito apurou que as principais receptoras de apoios financeiros do governo são, além da fundação do Magalhães, velho alvo da sanha laranja, as fundações das universidades estatais – com as quais o Estado vai continuar a gastar o mesmo que gasta hoje, seja qual for a sua forma jurídica. Como são criação do tempo do Sócrates, são para lançar lama.
Com esta operação de manipulação, o governo pretende também dizer que os beneficiários dos computadores Magalhães não são as crianças que os receberam, mas sim uma fundação, sinónimo de quadrilha. Fica provado o “crime” do Magalhães!
Ficámos também a saber que a petrolífera Fundação Gulbenkian teve 13 milhões de apoios estatais no triénio em causa. Como o relatório não dá qualquer explicação para o caso, fica a suspeita de que a dita fundação anda a sugar indevidamente o Estado. Ora se há instituição privada que durante décadas tem beneficiado Portugal e o Estado português, investindo milhares de milhões em arte, educação, ciência e beneficência, substituindo durante muito tempo um inexistente ministério da cultura, ela é a Fundação Gulbenkian. O relatório do governo, omisso quanto ao destino de tais apoios, deixando pairar suspeitas de gastos injustificados, revela imbecilidade e uma grosseiríssima atitude de ingratidão. Espera-se uma reacção da Gulbenkian, que levou uma nota sofrível, abaixo de dezenas de outras fundações. Parece incrível, mas é verdade.
A sensação que fica, numa primeira análise do relatório governamental, é que a montanha pariu uma ratazana esquálida, reumática e com mau hálito. Se calhar, continuaremos a não saber quem é que tem realmente explorado indevidamente o estatuto jurídico das fundações. Por exemplo: que fundações foram criadas para fugir ao fisco? A demagogia laranja produziu mais um aborto. O governo diz que o estudo e as medidas que se seguirão irão talvez permitir poupar 150 milhões ao Estado. Estamos aqui para ver. Se lhes cortarem a mesma percentagem que cortaram aos funcionários públicos, talvez. Mas para isso não era preciso fazer esta porcaria deste estudo.