Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Saudação breve a Ana Carolina

Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer.

Tu não sabes, mas, minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos e fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes, mas nessa tarde choveu muito. As terras finalmente encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade.

E tu dormias descansada nos braços do teu avô, dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tua não sabes ainda, mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas».

Pequena e indefesa tu, oh! Ana Carolina, não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha, onde ficaste, e Lisboa, onde te escrevo esta saudação breve e emocionada.

Vejo naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer um anúncio de vida e de alegria contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de alegria. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura.

Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro do asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.

José do Carmo Francisco

Aborto, uma polémica de sempre

De Ana Cristina Leonardo recebemos este informado ensaio que, com prazer, pomos à vossa disposição.

Portugal reinicia uma discussão onde parece continuar a haver demasiado «ruído». Ou como alguns temas nos recordam os limites da razão humana.

«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.

Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida.


Ana Cristina Leonardo

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Talvez

Estava nas mesas de voto em 98. Comecei a ser chamado em meados dos anos 80 e deixei de receber a carta assim que as convocações passaram a ser pagas. Mas nesse Verão ainda não se recompensavam míseras ganâncias, ainda era o tempo dos que ofereciam o seu tempo, dedicação e responsabilidade à democracia. Por isso, foram poucos os que apareceram. Tão poucos que foi necessário juntar diferentes mesas de voto em salas comuns, por falta de gente até para cumprir os serviços mínimos. E tão poucos os que foram votar que o Colégio S. João de Brito parecia assombrado, os longos e escuros corredores silenciosos. No bar atendiam-nos ao chegar. Nunca lá houve domingo de votos mais desolador.

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Esta pergunta, e não outra

Peço mil desculpas – e mais uma – ao Público, mas este texto de Rui Tavares, de hoje, tem de ser lido pelo maior número possível de pessoas. E eu já paguei para o ler. Aqui vai.

Uma pergunta directa para uma resposta honesta

A pergunta a que vamos responder no referendo do próximo dia 11 é compreensível para qualquer pessoa que saiba ler e isso é algo que nenhum contorcionismo político ou gramatical poderá mudar. “Concorda com a despenalização…” A despenalização é, evidentemente, a palavra-chave desta pergunta. É talvez surpreendente, mas o referendo do próximo dia 11 não é acerca de quem gosta mais de bebés, tal como não é acerca de quem mais respeita o sofrimento das mulheres. A pergunta do referendo também não é “dê, por obséquio, o seu palpite acerca de quando é que a alma entra no corpo dos seres humanos”, matéria que sempre intrigou os teólogos. Não é acerca de quem gosta de fazer abortos e quem gosta de dar crianças para orfanatos. Por isso e acima de tudo, devo confessar que sofro de cada vez que ouço na televisão jornalistas falarem dos dois campos em debate como o “sim ao aborto” e o “não ao aborto”.

Rui Tavares
«Público» de 3 de Fevereiro de 2007

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O sorriso de Maria José

Na carruagem azul do Metropolitano de Lisboa, na Linha Verde, num fim de manhã cinzento, descubro um inesperado e doce sorriso. É Maria José que vem de um café com a sua irmã Hermínia na Baixa-Chiado e regressa a Arroios com o almoço em perspectiva. As mulheres são as mães dos milagres. Outra coisa não posso eu chamar a este encontro feliz que transformou a soturna carruagem do Metropolitano numa verde e alegre camioneta a caminho de Arganil mas com destino final em São Romão. De súbito era como se estivéssemos no meio de uma camioneta com cabazes de verga no tejadilho. Com pão e queijos, com fruta e vinho, com bolos de mel e azeite, com chouriços e morcelas de arroz. Da voz e do sorriso de Maria José vinha uma alegria do campo no meio de um transporte da cidade. Uma alegria pura e genuína tão pura e tão genuína como os sabores dos cabazes de verga no tejadilho da camioneta que eu imagino só de olhar para o sorriso de Maria José. Continua a ser a mulher-menina sempre pronta a desfazer o tempo, a ignorar a cronologia, a rejeitar as emboscadas do bilhete de identidade. No sorriso de Maria José o tempo não passa e é sempre lugar de alegria. As mulheres são as mães dos milagres. Por isso Maria José transforma o tempo e o espaço de quem a encontra no fim da manhã. Ao lado ninguém percebia, mas eu não me vou esquecer. O sorriso de Maria José veio obliterar – inesperado verbo para um encontro – o fim da minha manhã cinzenta no Metropolitano de Lisboa. O meu bilhete foi obliterado e muito bem obliterado pelo inesperado e doce sorriso de Maria José, na carruagem que lembra o velho autocarro verde com cabazes de verga no tejadilho.

José do Carmo Francisco

Revelação literária de 2007 & Grande Português

Duas semanas com o computador avariado contribuíram para variadas experiências alternativas ao gasto habitual, uma delas a leitura de livro que me deu a conhecer aquele que é já o meu Prémio Revelação Literária para o corrente ano, venha quem vier a seguir. Ao mesmo tempo, a figura entra directamente para a tabela dos meus portugueses favoritos. Estou vencido da vida, a dele, mas não estou só. Para Ramalho Ortigão, este autor foi o português mais brilhantemente completo do seu tempo.

O meu português favorito é o Fernando Pessoa. E é também o Camões. E o Agostinho da Silva. E o padre António Vieira. E o Alexandre O’Neill. E o Ary dos Santos. Casos estes em que Portugal foi essência, não acidente. Agora acrescento Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho. O que li foram dois contos, inclusos no livro CONTOS DE OITOCENTOS, Fronteira do Caos Editores, 2006. Trata-se de uma antologia que reúne peças de Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, Maria Amália Vaz de Carvalho, entre outros. O elenco lê-se mais por curiosidade histórica e sociológica do que por proveito literário, contribuindo para o choque da descoberta que me estava reservada a partir da página 161.

O primeiro conto, Mais Uma: Cenas de Província, é o levantamento meticuloso do processo através do qual uma rapariga se decide prostituir por influência da mãe e da miséria. O segundo conto, A Caçada do Malhadeiro, é uma apologia da vingança de morte quando a honra está em causa. Em ambos, a mesma visão naturalista; seja pelo rigor das descrições fenoménicas, seja pela composição cénica, seja pela credibilidade dialógica, seja pelo preciosismo psicológico, seja pela ausência de Deus e dos deuses (ou seja, a ausência da moral e do castigo).

O domínio da técnica narrativa parece-me exemplar. O léxico está ao serviço de um impressionismo contido, mas tão intensamente gravado que se torna tangível, fotográfico, exacto. Somos levados para dentro de cenas em movimento. Somos levados para dentro das pessoas e dos seus movimentos. De tudo se gosta, tudo é natural, está aí. O rico que tenta comprar um corpo jovem está apenas a cumprir o seu papel, a ser coerente com o seu poder; e até oferece contrapartidas benéficas, legitimadas pela comunidade. E o pai que massacra 8 soldados franceses, com a ajuda do filho adolescente, é bom e amoroso, terno; santo. É que um homem deve morrer como um porco, se o for.

Nunca me tinha acontecido: ao acabar a leitura do segundo conto, voltei de imediato a ler o primeiro. E ainda não parei de recomeçar. É assim como ir passear ao Jardim Botânico e ter muita pena de sair.

Notas para a recordação do meu mestre Assis Pacheco

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Foi em Abril de 1980 que o conheci. Infiro isto da data que anotei no exemplar de Cuidar dos Vivos que ele me arranjou. Era a belíssima edição da Vértice, de 1963, que ele foi desencantar ainda algures. De alfarrabistas sabia ele. Ainda aí se lê: «Natal 1963 / Of. a prima / Maria Fernanda». Ignoro de todo em todo quem você seja, mas obrigado, prima ou primo desta Maria Fernanda, por ter-se desfeito do livrinho.

Encontrava-o sempre de fugida, trabalhando ele na redacção de O Jornal, ali à Avenida da Liberdade. Batia furiosamente as teclas (com um só dedo, efectivamente – não é lenda urbana), mas falando comigo, enquanto avançava no «Bookcionário». Não me lembro de tê-lo visto em outro sítio em Lisboa, de almoçarmos juntos, de sequer tomarmos um café. Digo em Lisboa, já que em 1985 teremos jantado em Roterdão, aquando da Poetry International, em que estiveram mais poetas lusos: Pedro Tamen, Melo e Castro, Armando Silva Carvalho, Casimiro de Brito, para só cuidar dos vivos.

A segunda conversa com o Fernando seria muito proveitosa. Tinha-lhe eu dado a ler umas coisitas minhas. «Parece o Mário-Henrique Leiria», disse. Hoje sei que isso desmerecia grandemente do autor do Gin Tonic, mas o importante foi saber, ali, da sua existência. Eu já por então vivia fora, e longe. Escapara-me essa obra cimeira da nossa ficção, cujo autor, de resto, falecera havia pouco. [Contei esta história em 1995, no JL, já o Fernando tinha morrido. Está em Maquinações e Bons Sentimentos, onde reuni crónicas da altura]. Corri a comprar os dois volumes de Leiria, e passei uma tarde inesquecível à beira-rio, em Belém.

Aprendi com o Fernando alguma escrita. Como aprendi com Cardoso Pires. Falo dos cronistas. Quem os conhecer a ambos sabe a que me refiro. Eles escreveram algum do mais belo português que o século XX produziu. Um português impecável, clássico à prova de todas as gramáticas, mas descontraído, fluido, nervurento, cheio de relevos e malícia.

Nunca falámos disso, o Fernando e eu, como nunca falámos de outras coisas importantes. Mas estou em que ele o sabia. Que lê-lo me era um gozo e uma escola. Foi por mão dele que se publicou no JL, em Julho de 1981, o meu primeiro do que iam ser muitas dezenas de artigos. Era uma longa crítica, educada mas feroz, ao livro Língua Portuguesa de João de Araújo Correia. Ainda hoje não me envergonha, vá lá. Tempos depois, haveria de mandar-me ter com o Mega Ferreira, umas portas abaixo. Redigira eu um textozinho faceto sobre a festança pessoana de 85, que se divisava. O Mega, que eu via por primeira vez de perto, percorreu o texto em três segundos e meio (cálculo por alto), dizendo «Publica-se». É daquelas sortes. E eu ia bem recomendado.

Tinha o Fernando sempre plaquetes, artesanais mas cuidadosíssimas, que oferecia aos amigos. Assim tenho (cito sem ordem nenhuma) Variações em Sousa, A profissão dominante, Nausicaah! e A bela do bairro. Tudo isto está hoje reunido, editado primeiro na Hiena, depois na Asa, agora na Assírio. É uma poesia fundamental. Como foi a de O’Neill, como foi a de Sena.

O Fernando Assis Pacheco faria hoje 70 anos? É capaz de ser verdade.

Actualização

Como o meu referido artigo a pretexto de M.-H. Leiria é de 13 de Setembro de 1995, e o FAP faleceu em Novembro, ele tê-lo-á lido, confio.

A Olivetti de FAP – e mais outras coisas de ver e ler – está no blogue do Francisco José Viegas.

E deitam culpas ao Camões

Fernando Assis Pacheco escreveu (veja-se um soneto de 1981, «Por uma cona assim eu perco o tino», ou um poema às «segóvias» da guerra de África) algumas peças de mimosa pornografia. Um poeta assim inspira. Tal como ele próprio se inspirara em Bocage. Tal como, a este, o inspirara Camões.

O sagazmente camoniano José Luiz Tavares tinha coisas assim na aljava, pois tinha. Publicada uma ali abaixo, encheu-se ele de brios e fez-nos chegar as abas do tríptico. Aqui vão. O pretexto é o aniversário, amanhã, de Assis Pacheco? O difícil era arranjar-se algum melhor.

2.

Minha senhora quero enfiar minha maça
em sua nassa assim acavalitados té sana
iríamos com licença da senhora sua mana
hosanas cantaríamos alegria del’ e nossa

nosso feito seria invejado até na nasa
(poisar assim suave sem nenhuma mossa)
em televisão daria audiência grossa
mesmo se à luz desta pobre chama rasa

noite lassa não haveria que minha
maça é bom vigia té grota escura palmilha
ó cadelinha que em lume fazes este molosso

outros te dirão que no coração fosso
lhes fazes eu dou-te só o ardor que posso
como forçado condenado ao poço

3.

amor é foda? eu fui deste celeste
quimbo soba de porrete e cassetete
intendente deste escuro palacete
por isso não me chameis de cafajeste

esgaçar cricas é arte nobre
é fogo que arde e se vê
mesmo se em porno canal de tevê
ou nesta pobre rima pobre

eu não diria suave milagre
esse deslizar da piça até à cona
mas louvo seu acre odor vinagre
néctar para a língua sabichona

ó minha escarranchada puta bela dona
conta-me essa da ovelha e do padre

JOSÉ LUIZ TAVARES

O valor das ideias (dos outros)

Já repararam no novo anúncio televisivo do banco Santander Totta? Aquele em que os clientes satisfeitos vão aparecendo em planos que emergem uns dos outros (num engenhoso mis en abîme que sugere uma matrioshka fractal)? É giro, não é?
Agora vejam, ou recordem, este videoclip dos White Stripes:

Pois.
E o mais engraçado é o slogan escolhido para esta campanha tão original: «O Valor das Ideias.»
Assim mesmo: o valor das ideias (que pelos vistos nem sequer são nossas).
Deixem-me rir.

Complemento directo

Nem só o Fernando Venâncio recorda o aniversário de Assis Pacheco, que se tornaria amanhã septuagenário (não tivesse “tropeçado sem querer” em 1995). A Casa Fernando Pessoa, em conjunto com a família do escritor-jornalista-poeta-boémio, vai organizar um mês inteiro de actividades “assis-pachequianas”. A programação detalhada pode ser lida aqui.

70 grandes anos

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Fernando Assis Pacheco faria amanhã, 1 de Fevereiro, 70 anos. Para recordá-lo em adequada forma, José Luiz Tavares escreveu (e ofereceu-nos) este soneto muito assis-pachequiano.

Posso mesmo dizer-te que gramei esta
foda? Repetir em linguado (ou filete)
os viris uivos que mais que ardor deleite
foram? Caberia em dicionário a lesta

batida em que jamais a seta erra a fresta?
Mas um torpor me vara a língua em que me
alonguei até ao fosso. Fora outra a fome,
serias só cândida fruta na nascente floresta

de espinhaços. Cem foles, porém, não são
metáfora digna pró árduo sugar do piço
descrever. Se acontecia faltar-lhe o viço

arengava-o num trejeito meretriz — lição
de bem foder me deu esta pura niña
pelos couvais onde a poterna se aninha.

JOSÉ LUIZ TAVARES

P.S. Recomendamos à niña em apreço uma proveitosa leitura de Respiração Assistida (edição de Assírio & Alvim).
fv

«Acalmem-se»

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Hoje, no Público, um excelente comentário de Rui Ramos, historiador. Transcreve-se o final.

Quanto a Salazar e Cunhal, que dizem de nós? Divididos por muitas coisas, estiveram unidos por uma grande coisa: a recusa de que Portugal alguma vez pudesse ter um regime igual aos da Europa ocidental. Os seus votos traduzem qualquer incompatibilidade da nação profunda com a actual democracia europeísta? Não é preciso ir tão longe. A votação de Cunhal é provavelmente um esforço do partido que todos os anos faz a Festa do Avante!. Obviamente, nem o PSD nem o PS julgaram urgente colocar Sá Carneiro ou Soares na corrida. O PS e o PSD esperam ganhar eleições. Os militantes e simpatizantes do PCP já só podem ganhar concursos. Deixá-los. E Salazar? O defunto regime terá certamente as suas viúvas e órfãos. Mas suspeito do carácter genuíno deste salazarismo de concurso. A RTP, num lapso de zelo antifascista, omitira Salazar. Foi o que bastou para muita gente votar nele. A democracia vive também deste espírito de contradição e pirraça. De resto, Portugal é um dos poucos países da Europa onde a extrema-direita não conta. Conta na Itália, na Áustria, e nesses faróis da civilização que são os países nórdicos. O vencedor dos Grandes Holandeses foi Pim Fortuyn. Nem assim a Holanda é ainda uma ditadura. Enfim, caso Salazar ou Cunhal ganhem, tentem poupar-se às epilepsias de antifascismo, ou aos alarmes anticomunistas. Nenhum regime acabou por causa de um concurso. Acalmem-se. Nem Salazar nem Cunhal voltam para a semana. Tal como D. Sebastião nunca voltou.

É já daqui a nada

Esta tarde, pelas 18h30, o ciclo de debates É a Cultura, Estúpido! contará com a presença de Mário Soares. O ex-presidente falará sobre “O futuro dos partidos políticos e as novas formas de organização partidária”. A conversa será moderada por Anabela Mota Ribeiro, com Pedro Mexia e Daniel Oliveira no papel de “agentes provocadores”. Nuno Artur Silva e José Mário Silva dirão o que andam a ler, ver e ouvir.

Build a better home in the Phantom Zone

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Há uns tempos que eu e o Jorge Mateus emigrámos ali para a coluna dos has-beens, dos obsoletos, dos “ex” do Aspirina B. Agora, apaziguando a comichão dos dedos do teclado, inaugurámos um outro estaminé, aqui mesmo ao lado: a Zona Fantasma. Ali iremos deixar as tralhas que andamos a produzir para o “Tal&Qual” e toneladas da costumeira fancaria.
Fazendo jus ao nome, a coisa ainda está ténue, desgrenhada e notoriamente carenciada dos iminentes arranjos gráficos. E, a bem da verdade, o ectoplasma Mateus ainda não deu um ar de sua graça. Mas é, para todos os efeitos, a nossa humilde casinha na blogosfera. Visitem-nos sempre que vos apetecer.

O MAL QUE DIVIDE AS ALDEIAS (2)

Por este andar, disse-me há dias um velhinho reformado, na mais feliz das hipóteses e sem dramatizar excessivamente a teatrada, as lutas por aumento de salários ou contra o desemprego, por melhores condições de trabalho, impostos mais baixos e outras bagatelas menores penduradas nas barracas da grande feira da reivindicação ainda serão daqui a mil anos a norma permitida e oficialmente encorajada pela assembleia dos justos, a isca e engodo que nos impedem de começar a considerar a verdade primeira dum planeta que cada vez mais nos parece ser, em todos os aspectos e sentidos, resultado do esforço dessintonizado duma mente colectiva influenciável, compulsòriamente afastada das áreas fundamentais do conhecimento, pescando apenas o que lhe ensinaram a pescar, para gáudio dos inescrupulosos detentores dos arcanos milenários.

E continuou, o velhote : já são horas de se tocar alguns sinos de rebate, já é tempo para os menos parvos ou iludidos começarem a interrogar-se sobre se não haverá infantilismo político a mais na ideia de se pensar que as anseios da Humanidade podem ser eternamente acalmados com mais um ou dois euros por hora de vez em quando para alegrar o olho ao papá e habilitar o menino a mais um ou dois gelados por altura dos banhos, ou com uma greve-geral de vinte em vinte anos. Concordei plenamente.

Mas, que fazer? Isso também eu gostaria de saber ao certo, eu e o velhote do lar de esperar pela morte. Todavia, sugestões merecedoras de alguma consideração não faltam por aí, a pingarem de bocas ou a bailarem em cabeças com boas intenções. Que tal, por exemplo, a proposta honesta dum tal Eurico da Labareda para se ultrapassar com urgência a mentalidade reivindicadora e materialística dos pobres e remediados, cujo resultado imediato, e esperado porque premeditado por quem a tolera e cultiva, é o de sancionar, justificar e assegurar aos ricos a enorme fatia que lhes cabe? Ou a ideia nada má de que seria aconselhável fugirmos para bem longe, e quanto mais cedo melhor, das gratuitas e bolorentas explicações oficiais para “o que somos?” e “donde viemos?” que nos vendem ou impõem com a ajuda de ciências a soldo de políticas que se estão, no fundo, marimbando para nós? Que tal aceitar que há, no desafio que se apresenta no futuro a toda a gente de carne e osso, vantagem em incluir a participação activa da Alma e do Espírito que fomos ensinados a desprezar, única forma de nos reposicionarmos harmoniosamente em relação ao cosmos, de nos limparmos das lamas de mentira, de revogarmos decretos inspirados em filosofias de atrito entre classes, de negarmos direitos de arbitragem às administrações centrais que nasceram da iniciativa de dúzia e meia de abutres políticos a quem ninguém encomendou o sermão?

Até que alguém nos ilumine sobre essas ou outras sugestões mais capazes ou menos chocantes para o pusilânime mas satisfeito troglodita, uma simples passagem da nossa mão pela crista do galo politico que nos acorda todos os dias às seis da manhã com ordens para continuarmos o trabalho da Repetição servirá, no mínimo, para nos lembrar que o segredo supremo do Mal – a Manutenção e Congelamento da História Que Nos Ensinaram– continua a não dar mostras de querer revelar-se ou abrir-se voluntàriamente, apesar de tanta testa franzida, de tanto reparo por parte dos curiosos e preocupados inquiridores. Vê-se que o Senhor Mal ainda sabe a força que tem, provavelmente soma controlada das energias de todos os seus aliados

Mas há um obstáculo de difícil transposição atravessado no caminho do Mal e dos seus vassalos. É que a História, se bem que com tendência a coincidir nalguns aspectos do seu desenrolar não confirmado e por confirmar, só se repete nos sonhos e nas imaginações optimistas dos que pretendem falsificá-la ou escrevê-la a seu bel-prazer. A essa gente escapa-lhes a importante necessidade de não se esquecer que tudo tem um prazo para se consumir, sob pena de se causar enjoo ou repulsa ao consumidor. As coisas ou são frescas para poderem enganar ou espirituais para poderem perdurar.. O uso prolongado dum método de convencimento expressamente criado para criar ignorância torna evidente o caracter perecível e degradante da política que o utiliza. Tais métodos, quando batidos e gastos, são passiveis de promoção a lixo, senão redundam em desastre. E os desfechos últimos de registo histórico, mesmo se isso fosse, que não é, considerado fundamental e importante para uma solução final com base no Amor e Compreensão, dependerão sobretudo das reacções avisadas ou naturais do duplo elemento Humano-Espiritual. E é por isso que já começa a notar-se que esta não é das melhores épocas para se fazerem prognósticos fáceis usando as réguas e compassos do sistema antigo – uma enorme dor de cabeça para a irredutível, enganosa e enganada filosofia do Poder, para os Planeadores Gerais e para as Elites a soldo do Mal.

Passeio bloguítico

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Não é Luís Carmelo o único a interrogar os blogueiros sobre que os move e espevita. Também João Ferreira Dias o faz, no seu Contrastes, e vai lançado. Veja-se aí, por exemplo, e é um exemplo bom, a recente entrevista (a número 51) a Hélder Guégués, de que sou assíduo leitor.

*

A quem for, como eu, fã do ‘Gato’ Ricardo Araújo Pereira (conheço, e admiro-o, já há bem dez anos), aconselha-se o apontamento de 14 de Janeiro sito aqui. Estarão os quatro valentes, como aí, se afirma, a pôr tão alta a fasquia que o resto, mesmo próximo, passa a vida ganindo? Quem sabe…

A poesia, agora de comboio

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Dois poetas holandeses, Hagar Peeters e (o bem mais conhecido) Simon Vinkenoog, leram ontem live poesia em comboios. Num comboio ao calhas, num comboio à sorte – e digamos que a sorte era real.

Que tal se hoje, por alturas de Pombal, lhe surgissem, nos fones, os graves de Manuel Alegre, ou por alturas de Vendas Novas, a carícia de Maria do Rosário Pedreira, viajando ali com você, claro?

Boa viagem.

Pelos olhos de Célia

Pelos olhos de Célia passa toda a profundidade e todo o silêncio dos caminhos do Sul, toda a solidão dos montes perdidos entre o vento e a luz, todo o longe das planícies secas neste Verão que parece não ter fim.

Emília, a dona da casa onde escuto e contemplo Célia, serve-nos um aromático café que se perfila na mesa ao lado de uma taça de arroz-doce e um prato com algumas batatas doces acabadas de assar no forno.

Pelos olhos de Célia passa uma paisagem povoada pela saudade: o arroz-doce lembra as alegres mondadeiras com lenço e chapéu que regressam a cantar do campo ao fim do dia e a batata doce lembra as jovens campaniças que passam a caminho de casa com o cesto dos mimos da horta fechando assim as portas da tarde.

O lugar onde Célia sorri e fala de mansinho tem o estuário do Tejo à esquerda e a Estrada de Pegões à direita. Entre a água e a terra, entre os pescadores e os camponeses, há neste lugar um intervalo onde apetece ficar. Como se o sal destas velhas salinas sugerisse o prolongamento deste encontro entre água e terra. Assim o encontro ficaria conservado numa espécie de arca onde o olhar de Célia – suas memórias e suas paisagens povoadas – não se iria perder na monotonia e no desgaste de todos os dias.

Pelos olhos de Célia passa uma música suave cruzando, de maneira harmónica, as cantigas das mondadeiras e as melodias da viola campaniça. É essa música, essa mistura da voz das raparigas e da viola campaniça, é essa música que eu continuo a ouvir em todos os cruzamentos da estrada no caminho de regresso às convenções, às conveniências e às obrigações do quotidiano.

José do Carmo Francisco

As mulheres e os maridos

O presidente do Conselho de Administração da União de Leiria terá provocado um conjunto de sonoras gargalhadas nos jornalistas presentes na apresentação do novo treinador do seu clube ao referir-se à ausência de público nos jogos disputados pela sua equipa em Leiria com a seguinte frase: «Só falam de Leiria. Mas Leiria é como todas as outras cidades. Apenas os três grandes têm sócios fidelizados. Antigamente não havia centros comerciais, cinemas… Além disso as mulheres agora mandam nos maridos.»

Para além do aspecto anedótico desta conversa é preciso ver algo mais. O que o presidente da União de Leiria lamenta é que o tempo em que os homens iam para o futebol ao domingo à tarde e as mulheres ficavam a passar a ferro, a costurar ou a arrumar roupa nas gavetas tenha acabado. Como sou natural de uma aldeia da Estremadura que pertence ao distrito de Leiria, conheço perfeitamente o assunto. As coisas e as relações entre as pessoas levaram uma grande volta nos últimos anos e hoje as mulheres pura e simplesmente deixaram de cozinhar aos domingos. Basta ir ao Vimeiro, ao Acipreste, ao Peso, à Mata de Porto Mouro ou à Portela para ver as enormes filas de espera que se formam às portas dos respectivos restaurantes.

E não são só as mulheres mais novas, também as mais velhas. Claro que as refeições acabam tarde e depois a sugestão é para um passeio à praia da Foz do Arelho ou a São Martinho do Porto. Bebem a bica e passeiam à beira-mar. Por isso o futebol fica para trás. E vai ficando cada vez mais porque as mulheres já não aceitam uma situação de subalternas. Mas parece que o presidente da União de Leiria ainda não percebeu que tudo à sua volta mudou nos últimos anos.

José do Carmo Francisco

Pois é

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Pois é, há três anos que EDUARDO GUERRA CARNEIRO morreu. Hoje, como há três anos, o blogueiro Xatoo podia, num poemazinho meritório, chamar-lhe «o poeta / de que ninguém ouviu falar».

Pois é, as histórias da poesia portuguesa contemporânea citavam-no pouco. Ou nada. Ele não alinhava, o parvo. Era só um bom jornalista, só «um bom poeta», como Francisco José Viegas dele disse, lembrando aos desatentos que não são «bons» todos os poetas que desaparecem.

Aqui há mais a seu respeito. E vai um poema. Este, que é um espanto.

CLARA

Disse que se chamava Clara
e sentou-se na mesa, chamando
o criado para pedir um uísque irlandês.
Eles abriram mais espaços, cruzaram
as pernas, perguntaram se os charutos
a incomodavam. Clara disse: «Não!»
Pediu mesmo se lhe ofereciam um.
«Claro!», ofereceu o mais jovem,
emprestando-lhe a tesourinha
niquelada. Disseram banalidades,
Vieram mais bebidas. Clara traçava
o rumo da conversa, entre baforadas
azuladas. Quando ela saiu, descruzaram
as pernas e ficaram sem saber o que dizer.

Eduardo Guerra Carneiro

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório