Todos os artigos de Valupi

Foodismo

Sabe tão bem ser foodista. Especialmente por alturas do Natal, com frio, numa cabana, em frente à lareira, hummm… (com frio e frente à lareira?! enfim, talvez se tenha acabado a lenha). Ou de manhã, depois de um sono tranquilo e revigorante, começar o dia a celebrar o foodismo na cama. Ou em cima da mesa da cozinha, a manteiga e a margarina ali mesmo à mão (questão de gosto, resultados cada vez mais parecidos). Ou de pé, encostado à janela ou debruçado na varanda, acenando para os vizinhos. São coisas do caraças, capazes de deixar um gajo (pelo menos, o gajo) satisfeito durante 24 horas. O foodismo nunca falha, prazer que se repete vezes sem conta como se fosse a primeira vez, nalguns casos aumentando de intensidade e refinamento com a idade. Aliás, quão menor a vergonha, maior o proveito que os foodistas obtêm do exercício desta ancestral arte dos sentidos. Já para não falar naquelas ocasiões festivas em que se juntam os familiares, os amigos, até estranhos (sim, pode ser belo ir para o foodismo com uma pessoa estranha – ou mais do que uma, assim duas ou três, vá lá, quatro, prontos – dessa forma estabelecendo laços de súbita e mágica intimidade). São momentos inesquecíveis; esses em que grupos inteiros se entregam à pulsão foodista entre risos e algazarra geral.

Desfruta o melhor que puderes do foodista que há em ti.

Sabedoria de Teófilo

Interessante é andar nos transportes públicos e ouvir as comadres a louvar o Manel como se ele fosse o Sebastião regressado do nevoeiro, a igreja católica a fazer-se passar pelo que não é e a dar a impressão que concorda com os que não acreditam nela, os analistas económicos a interpretarem gráficos às avessas, os liberais a gritar por nacionalizações, a esquerda de casaquinho de veludo ou blusão de pele fina a falar sobre a fome e o desemprego que desconhecem, a alta burguesia a gozar que nem nababos, os políticos a degladiarem-se pelo poder, jornalistas pagos a peso de ouro a falar na televisão sobre os seus colegas desempregados, comentadores que negam que os nossos problemas estejam afectados por uma crise que afectou globalmente o mundo industrializado, juízes a queixarem-se da falta de respeito enquanto soltam catilinárias sobre convidados para as suas casas, procuradores que se esquecem das virtudes do laconismo e se pelam pela exposição mediática, presidentes que se apressam a fazer comunicados ao País sobre questões que deveriam ser tratadas nos gabinetes e que calam opiniões sobre o que se passa no País, ministros que são expulsos por pressão dos jornais e outros que se vão deixando ficar porque são inócuos, um primeiro-ministro que apanha de todos se faz bem e volta a apanhar se faz mal, e um povo desnorteado que diz que nas próximas eleições sabe o que vai fazer, sem saber que o seu destino está preso por um fio.

Isto é o que se passa, só espero que o desnorte e a má-informação não arrastem este pobre povo, que vive do seu trabalho, que labuta e sofre na carne as agruras da crise que caíu em cima da nossa pobre Pátria, para um beco sem saída, onde os arautos da desgraça continuarão a debitar o seu discurso beberricando os seus vícios e gozando dos seus privilégios, sempre, sempre, pensando nos mais desfavorecidos.

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Oferta do nosso amigo teofilo m.

A alegria do Rui Tavares

Nunca me ri tanto numa entrevista política como nesta de Manuel Alegre na Sic Notícias ontem. Mas, a abrir, uma palavra para Augusto Santos Silva, entrevistado por Mário Crespo no Jornal das 9 meia-hora antes: cromo. Tão cromo que Crespo se foi derretendo aos poucos, tendo começado tonto e acabado rendido. Porque Santos Silva é um excelente comunicador: poder de síntese, descontracção, acutilância, veneno, humor. Voltando ao Alegre, foi um fartote: o PS é ele, a esquerda é ele, a nova esquerda é ele, a antiga esquerda é ele, a actual maioria do PS é dele, o futuro do País é com ele. A pobre da Ana Lourenço cometeu a imprudência de se ter referido à sua votação nas presidenciais como tendo sido de 1 milhão de votos só para ser de imediato corrigida e admoestada: Mais de 1 milhão!, com direito a gesto de mão e sorriso triunfal. Ficámos a saber que Sócrates já está avisado quanto aos poderes demiúrgicos desta força da Natureza. Não há nada que ele não consiga fazer, basta que se lhe meta na cabeça uma qualquer intuição poética [sic e sick]. Também se pronunciou sobre certos militantes do PS que entraram para o partido mas que não têm os mínimos: não conhecem a História nem têm cultura. Que o mesmo é dizer: não têm respeito pela gerontocracia nem aparecem nas reuniões com os seus livros na mão. Eis a esquerda ideal para Alegre: organizada por ordem de entrada, fundadores no topo da cadeia alimentar. O resto é indiferente, pois, basta lembrar o seu percurso.

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Sakharov by Nik

Uma das facetas menos conhecidas deste grande Russo do século XX é a de visionário da liberdade de informação e, correlativamente, de profeta da internet! Eis como, num artigo publicado num semanário liberal americano, em 1974, o então já “dissidente” soviético Sakharov previu o advento, à escala planetária, de uma rede de informação livre, acessível por toda a gente, que hoje, 32 anos depois, sob o nome de internet ou world wide web se tornou já numa realidade indispensável para todos nós – ou quase:

Antevejo um sistema universal de informação (SUI) que dará a toda a gente, a todo o momento, acesso ao conteúdo de qualquer livro publicado ou a qualquer revista ou a qualquer facto. O SUI será composto por terminais de computadores miniaturizados, centros de controlo do fluxo de informação e canais de comunicação veiculando milhares de comunicações artificiais através de satélites, cabos e linhas laser. Mesmo uma realização parcial do SUI afectará profundamente as pessoas, os seus tempos livres e o seu desenvolvimento intelectual e artístico. Contrariamente à televisão, o SUI proporcionará a cada pessoa uma liberdade máxima de escolha e implicará uma acção individual. Contudo, o papel verdadeiramente histórico do SUI será o de quebrar as barreiras à livre troca de informação entre países e entre pessoas.” (Saturday Review / World, Nova Iorque, 24 de Agosto de 1974.)

Por este texto visionário se pode também ver distintamente quais eram as preocupações, os ideais e os valores (igualdade de acesso à cultura, liberdade de escolha, papel da indivualidade) que guiavam o pensamento e a acção cívico-política de Sakharov. Pensamento certamente muito mais avançado, muito mais socialista, muito mais revolucionário até do que a vulgata pseudo-marxista e opressora posta a circular pelo Partido Comunista da União Soviética e divulgada pelo nosso obediente PCP durante 70 ou 80 anos. Sakharov teve uma vida exemplar de socialista autêntico e, quando deixou de o ser, foi principalmente para se afastar e diferenciar da nomenklatura do regime opressivo e liberticida fundado por Lenine, Trotsky e Staline. Ele e Brejnev não partilhavam nem podiam partilhar a mesma doutrina nem os mesmos ideais.

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Oferta do nosso amigo Nik.

Porque será?

Porque será que quando Mário Soares, Garcia Leandro, Loureiro dos Santos, Manuel Alegre, Pacheco Pereira, Santana Lopes, Marinho Pinto e a SEDES, entre outros passarões que não tenho paciência para recordar neste momento, fazem alertas para revoltas sociais iminentes nós ficamos com a nítida sensação de estarem a expressar um melífluo desejo?

E quem gostariam eles que se revoltasse? Só os desempregados e os estudantes cábulas? Ou também gostariam de ver as donas-de-casa e os reformados a atirar pedras à polícia e às montras? A que tipo e grau de destruição gostariam de assistir para poderem gritar Eu avisei? Será que até sorririam de satisfação se um ricochetezinho acertasse num miúdo, de modo a que PC e BE pudessem barricar ruas e soltar a fúria do povo?

Este grupo de pessoas, a quem a comunicação social empola a importância, tem estado no poder desde o 25 de Abril. Nestes 34 anos fizeram as suas vidas à custa do Estado ou dos negócios com ele, acumularam riquezas para si e para a família, tiveram acesso a experiências de privilégio e luxo correspondentes ao estatuto de elite. Têm 60, 70 e 80 anos e comportam-se agora como inimputáveis e irresponsáveis, possuídos pelo egoísmo e ofuscados por tanatos. O problema não é a idade, antes a completa falta de sabedoria e carácter. Completa falta de amor pátrio, incapazes de fortalecer a comunidade e apostando tudo na sua fragilização. Comportam-se como se não valesse a pena confiar nas instituições e nas pessoas, como se apenas a diabolização dos adversários fizesse sentido.

Porque será que ninguém corre com eles?

Citações de ESTACA

O Manuel é um socialista de gema, à antiga, com frases curtas que bem em purradas entram no coração dos descontentes que arrastam corpos entorpecidos pelas vielas do desemprego e becos sem saída dos salários mínimos, trovejantes palavras, sons de cascos de cavalo a morderem o basalto que servirá de base de sustentação às futuras barricadas por onde correrá certamente muito do sangue pisado que as comunas anti-comunas comerão na forma sólida de chouriço demo-socialista. Que mais quereis, Valupi, le optimiste?

O homem lembrou e homenageou os deuses do passado, o pedreiro-livre americano e o novo limpa-chaminés, e o Blum francês, camarada do Churchill e do Konrad, que fugiu para Bordéus assim que ouviu os patos de ganso dos hunos em Dunquerque, bravura que ele imitaria anos mais tarde quando se agarrou à labita do Mário e procuraram os dois refúgio no quartel da maçonada nortenha. Se isto não é prova de coragem, o que é então?

Sejamos humanos. Ninguém pode roubar a um homem o direito de ter três metros de altura um dia por ano e uma barba espessa o resto da vida, né?

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Oferta do nosso amigo CHICO.

A ágora não é uma rua

É uma praça. Um local onde se pára e fala. Fala e pensa. Só depois se julga. E ainda se compram umas coisinhas; seja para a janta, seja para a vaidade que também deve ser alimentada.

A rua é para passar, para atravessar. Os que se deleitam com o poder da rua não gostam de estar na ágora. Nem gostam de pensar antes de julgar. Preferem ir para a rua interromper o trânsito. Mas só conseguem provocar obstipação cívica, seguida de diarreia ideológica. São uns democratas de merda.

Alegretes

A reconfiguração da esquerda implica a capacidade e a vontade de construir uma perspectiva alternativa de poder. Esta é a nova coragem que é preciso ter. Não só a coragem de resistir e persistir, de que muitos de nós temos experiência, mas a coragem de virar a página e construir uma nova esperança e uma nova alternativa.

O discurso de Manuel Alegre no Fórum das Esquerdas serviu-se de 2294 palavras, as quais gastaram 14329 caracteres. Se alguém ler o discurso à procura do que o autor entenda pelas expressões virar a página, nova esperança e nova alternativa vai ficar com a mesma informação que se encontra no espaço em branco entre as letras. E se alguém perguntar aos restantes intervenientes e apologistas do evento pelo significado das mesmas expressões, as respostas arriscam-se a serem variações de meter dó e marcha à ré. No entanto, é com este vazio que se estão a fazer as notícias a respeito do acontecimento.

A oposição em Portugal continua sem inteligência, seja à esquerda ou à direita. O discurso alucinado, feito de abstracções e descontextualizações, convoca paranóicos, deprimidos, esquizóides, ressabiados, biltres e pilha-galinhas. Aos oradores chega e sobra ter audiências que urrem e salivem, jornalistas que persigam e transmitam, familiares, amigos e populares que condescendam e aprovem. Nem é preciso pensar quando se está alegrete.

Socialismo 2.0

O nosso amigo Joao trouxe-nos 15 minutos com Kevin Kellly. Destaco esta ideia: enquanto o comunismo pretende reduzir a comunidade ao mínimo denominador comum, atacando os que têm mais para dar aos que têm menos, a Internet pretende elevar a comunidade ao máximo das suas capacidades através do desenvolvimento dos individuos, contando até com os que têm menos para que a comunidade obtenha tudo. É uma economia do conhecimento, da criatividade e da socialização aberta, não do trabalho braçal, da máquina e da centralização.

O seu entendimento da tecnologia como sistema biológico, e o da biologia como desenvolvimento tecnológico, abre horizontes de reflexão.

Não importa se és de esquerda ou direita

Importa é se és optimista ou pessimista. Porque ninguém sabe o que é ser de esquerda ou direita. Nem os políticos profissionais, nem os opinadores amadores – nem Marx, cuja ciência da História era tão jeitosa que lhe passou ao lado a vitória do sector terciário, o desenvolvimento tecnológico que iria fortalecer a democracia e ainda as transformações culturais que tornaram irrelevantes as suas noções materialistas de trabalho e riqueza. Claro que não falta quem tenha os bolsos cheios de explicações para te dar, e que fique irritado com a conversa. Se puxares por eles, repetem vacuidades ou disparam argumentos de autoridade: celebridades, títulos de livros, trechos, frases, eventos. Quão mais irritados, maior a certeza de que apenas tentam salvar a sua religião horizontal ou a sua tribo colorida.

Os pessimistas são imbecis. Todos os pessimistas são imbecis. Porque todos desistem de resolver os problemas. Mais cedo do que mais tarde, desistem. Alguns desistem antes de começar. O que é lógico, pois o pessimismo acredita ser inútil qualquer esforço de construção, resolução, melhoria. Para quê o esforço, se a vida é este vale de lágrimas onde apenas a morte liberta? A luciferina crença leva ao paradoxo: o do pessimista que continua a querer viver. Vive, mas apenas para atacar o optimismo. Perseguir e tentar converter optimistas passa a ser o único sentido para a vil existência dos pessimistas. Reduzem a sua atenção ao mínimo – seja o que for que falhe ou demore à sua volta – e dão a esse mínimo o máximo de importância. O pessimista não admite erros, porque atrofiou a inteligência a tal ponto que não consegue aceitar que é errando, e na errância, que se aprende. Quando detecta um erro, regozija-se e celebra, reconforta-se. E se não apanhar algum, angustia-se, suspeita de tenebrosas maquinações para o enganar. Ele pode não estar a dar por ela, mas as coisas vão de mal a pior, isso é certinho. Portanto, o pessimista, para além de grande imbecil, é também um cínico hiperactivo.

Os optimistas são geniais. E humildes. Claro, ser humilde e genial é ainda mais genial. O optimista só sabe que nada sabe, eis a sua humildade. Desconhecendo o poder que tem e o que poderá alcançar, nunca desiste de procurar o bem. O bem pode até não passar da diminuição do mal em causa, mas chega para realizar o optimismo – porque o ser é sempre preferível ao nada. O optimismo gosta dos que tentam, dos que arriscam, dos corajosos. Acreditar que somos parte do mistério, portanto que o mistério é parte de nós, eis a genialidade que alegra o optimista.

Dois pessimistas de esquerda, ou direita, nunca se irão unir, sequer entender. Não podem, pois não confiam um no outro. Sabem de ginjeira que tão-só o fracasso se deve esperar da natureza humana, patético erro cósmico. Longe desse inferno, dois optimistas, um de direita e outro de esquerda, reconhecem-se à légua, nasceram na mesma família. Seja qual for a divergência, descobrem como a conciliar, ou descobrem como a ultrapassar; ou descobrem como a proteger e alimentar, colhendo os frutos. São ingénuos, mas no sentido em que a ingenuidade é uma qualidade dos criadores e dos que são livres. Um espaço de pureza, uma simplicidade potente. Querer ser ingénuo é o antídoto mais poderoso contra o cinismo.

Querem dar cabo do Chomsky com umas macacadas

Donde vem a linguagem humana? É questão quase tão difícil como a de saber para onde vai o PSD, mas não compliquemos. Noam Chomsky fez fama, e teoria, a defender a origem genética da linguagem, fonte que incluiria as estruturas que dariam origem às diferentes gramáticas. Assim, só o ser humano teria capacidade verbal. Esta posição assinala um retinto judaísmo, diga-se como curiosidade. Pois bem, então que fazer com os símios que revelam capacidades dialogantes análogas às dos humanos? Ou como lidar com um orangotango que aprendeu espontaneamente a assobiar? Enquanto se pensa nestas urgentes questões, o melhor é ver o vídeo onde Panbanisha, uma fêmea bonobo, consegue convencer com paleio um dos seus tratadores a largar o cão que tinha ao colo para andar com ela às cavalitas.

E, por favor, não contes nada disto ao pessoal do PC e BE, pois eles são bem capazes de aproveitar a deixa para irem partir umas montras no Rossio, denunciando a conspiração israelo-americana contra o grande Chomsky. Há pessoas que só encontram alguma paz de espírito quando destroem a propriedade alheia, pelo que todo o cuidado é pouco com esses macacões.

Fim da crise

O nosso amigo Shark já pode encher o peito de orgulho benfiquista. A BOLA já pode fazer capas de um lampionismo monumental. 6 milhões de portugueses espalhados pelo Mundo já podem marcar almoçaradas, churrascadas, mariscadas, caldeiradas, cabritadas e chispalhadas com ânimo e garbo. A crise acabou, temos o Benfica no 1º lugar. Espero que lá fiquem durante 6 meses – não é preciso mais, de acordo com a Manela – de modo a este país entrar nos eixos, carrilar, avançar para a frente e a direito. Mas só até 17 de Maio, ok?

94%

Chegámos a 12 de Março de 2005 em profunda decadência cívica. Quem se der ao trabalho de ler o que escrevem os publicistas desde meados dos anos 80, mas em espiral desvairada desde 2001, vai encontrar a repetição desta mensagem: os políticos são maus porque o povo não se envolve na política. Se interrogado, o povo usa a versão simétrica do mesmo argumento: não se envolve na política porque os políticos são maus. O consumismo provinciano que foge da cultura, a ignorância financeira que perpetua a pobreza, os baixíssimos índices de escolaridade que impedem o pensamento político, o generalizado anti-intelectualismo que impede o pensamento complexo, a enorme iliteracia que impede até o pensamento simples, mais o diabo a sete, fornecem ângulos sortidos para os diagnósticos. Mas esta visão fica inevitavelmente solta e quebradiça, por ser abstracta. Falta o cimento do concreto.

Na loucura do dia-a-dia, cada um de nós toma decisões lógicas, mesmo que a sua base e consequências possam revelar-se ilógicas. Até 2005, ser adulto implicava ter uma iniciação à fraude fiscal, entre outras disciplinas congéneres. Quando um cidadão se confrontava com um mecânico, pintor, electricista, pedreiro ou canalizador a oferecer-lhe um muito razoável desconto a troco da evaporação da factura, isso, com a repetição, passava a ser parte da normalidade. Afinal, é o que todos fazem, o que é suposto fazer-se. Porquê? Porque, lá está, todos o fazem, olha a estupidez da pergunta. A seguir, o cidadão convivia alegremente com empregados de restaurante que lhe davam molhos de facturas para entregar ao patrão que as usava para esconder remunerações. Este fenómeno, posto que sem vergonha e festivo, confortava-o, dizia-lhe que ele pertencia a uma comunidade tão popular que até incluía casas de pasto. Finalmente, calhando ao cidadão entrar num consultório médico, iria encontrar as mesmas vantagens: se fosse sem factura, a caríssima consulta privada ficava muito mais em conta. Este era o ponto em que o cidadão se tornava partidário do sistema, dado que até os aristocráticos e impolutos doutores o utilizavam às descaradas. Naturalmente, quando apareciam notícias de haver empresários organizados em cartel para roubarem o Estado em dezenas ou centenas de milhões de euros, havia uma certa indiferença misturada com simpatia. Eles teriam sido apanhados, coitados, por um qualquer azar, mas não merecendo castigo especial. Afinal, roubar o Estado era a norma, um sinal de inteligência e integração social. O cidadão optava por ganhar uns trocos, assim recheando a sua vida com um televisor maior, mais 100 quilos de roupa, um carrão, uma segunda casita, aquelas férias em grande. Em contrapartida, 31 mil milhões de euros por ano, o valor da economia paralela em 2005, deixavam de entrar no seu dia-a-dia. No seu e no da sua família, amigos, vizinhos e colegas.

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António Alçada Baptista

Eric Fischl Bad Boy

É no Outono que a gente é capaz de reparar que a vida não é banal não obstante o nosso quotidiano ter sido de uma banalidade atroz. Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso. São coisas destas que me levam à convicção de que a vida para que fomos feitos não é, de modo nenhum, aquela que andámos a viver. Em rigor, o nosso destino poderia parecer trágico: por um lado, caminhamos inexoravelmente para a solidão, por outro, temos como futuro o esquecimento. Tenho muito a convicção de que somos seres em formação, pois o projecto humano não aponta para aqui. Penso é que ele nos vai sendo revelado por pequenas nostalgias de coisas ainda não vividas, que se exprimem por intuições avulsas e, apesar de tudo, pelo halo poético do mundo, que seria mais visível se acertássemos a maneira como olhamos para ele. Depois também há, felizmente, aqueles que já nasceram mais à frente no caminho do futuro.

in O Tecido do Outono

Teatro do absurdo no Palácio de São Bento – Sessões contínuas

O CDS-PP pretendia suspender o processo de avaliação dos professores. Porquê e para quê? Ninguém sabe ao certo, mas o projecto foi votado no dia 5 de Dezembro. Paulo Rangel, líder parlamentar do PSD, afirmou que a bancada tinha sido toda mobilizada e chamada. Foi assim que ficámos a saber que pouco mais de metade dos deputados do PSD comparecem a votações que podem causar problemas ao Governo mesmo quando são mobilizados e chamados, imagine-se o que será sem esses cuidados. No final, Paulo Rangel declarou que a ausência de 30 deputados do PSD não teve relevância para a votação. A votação, contudo, teria levado à aprovação da proposta do CDS caso os deputados mobilizados e chamados tivessem lá estado durante uns minutos para votar. A Manela ficou furiosa com a indisciplina dos miúdos e chamou o delegado de turma ao gabinete da directora. Quer duas coisas: os nomes dos trastes que se baldaram à prova e uma jura de que nunca mais se vai repetir tal vergonha. Marco António Costa diz que os deputados estão desmotivados e que Paulo Rangel se devia demitir. Este espectáculo vai continuar e é de entrada livre. Quem disse que há crise no teatro em Portugal?

Cineterapia


Il Deserto Rosso_Michelangelo Antonioni

Quando ouvia a expressão É tão bom que até irrita, ou variantes, não entendia. Achava parvo. Ter um prejuízo emocional causado pela elevada qualidade de alguma coisa era parvo. Foi assim comigo durante mais de mil anos, tendo acabado apenas quando vi este filme. De todas as vezes que o vejo, repito um encadeado de exclamações à média de uma por plano. E são elas cabrão, filho da puta, cabrão de merda, filha da puta, cabrão do caralho, foda-se… (e volto ao princípio da sequência).

A erupção do vernáculo atesta a intensidade da experiência. Cada plano é um quadro rigorosamente composto nas suas formas, cores, linhas de fuga e coreografias. Tão rigoroso que progressivamente nos damos conta de ser obsessivo e, finalmente, maníaco. O belo, neste filme, é uma imposição, uma violência. Talvez já nem seja belo este belo, mas uma imitação a desafiar o original. É sabido que Antonioni chegou a pintar árvores e relvados, e a queimar vegetação, para obter certos efeitos cromáticos. Até o som é cor, convoca o olhar. Mas também a colocação da câmara nos humilha, porque não falha o ângulo definitivo mesmo em movimento. Montagem? Magnética, colando polaridades, mantendo a passada forte e equilibrada. Texto? Mentiroso e vendido. Actores? Pândegos e reprimidos ou reprimidos e pândegos.

Este é o filme mais exibicionista e vaidoso que já vi. Foi o primeiro filme a cores de Antonioni, depois da celebrada trilogia de rajada. Ele vivia a crise dos 50 (e dois) nos 60 (e quatro). Estava cheio de medo, precisando de gritar Eu sou um realizador genial, agora a cores. Para esconder a trafulhice narcísica, Tonino Guerra enche o filme de muitas mensagens, muitos cantos e recantos, almofadas e miradouros. Da crítica à sociedade alienada e à exploração capitalista, passando pela denúncia ecológica e dos males da industrialização, até à reflexão sobre a condição feminina e o velório do amor, é servirem-se. Mas o próprio autor não perdia tempo com as interpretações, fica o aviso, ele apenas se preocupava em dar corpo aos filmes que a sua intuição criava sem ele saber como, porquê ou para quê.

Il Deserto Rosso é uma maravilha feita de uma única substância: donaire. Monumento a um ego que nos deslumbra pela sua exuberância e força. Um ego em estado puro, tangível pelo milagre do cinema. Só visto, porque não tem nada para contar.