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Cineterapia


The Dark Knight_Christopher Nolan

Dizer que este filme foi o melhor de 2008 é curto. Foi também o melhor de 2007 e de 2009. Ah, dane-se, é o melhor filme que o século XXI já viu. Porque é uma análise matemática, um ensaio político e uma reflexão ética, tudo incluído no preço do bilhete. E porque é a obra de um virtuoso, um criador de clássicos, de perfeições. Trata do problema que enchia anfiteatros nas cidades gregas, 2500 anos atrás: que é o Homem? Eles não sabiam, sortudos. E quem não sabe, pergunta. Nasceu a filosofia, nasceram esses chatos do caralho que zumbem aos ouvidos dos sonâmbulos. Tão perigosos que a polis os persegue, quer castigar, envenenar. Mas são eles que vigiam e protegem a pergunta, sempre ameaçada pelos que não querem abandonar a ilusão que lhes calhou à toa ou pelos que receiam perder-se caso se encontre a resposta.

Grandes verdades são reveladas neste filme, mausoléu do génio de Heath Ledger. Seguem a sapiencial tradição de esconder o tesouro mais valioso no local mais próximo e visível. Por exemplo, que quando se joga ao dilema do prisioneiro são os loucos aqueles que têm razão; isto é, aqueles que escolhem confiar no outro. Por exemplo, que há heróis que temos de perseguir e afugentar, pois ainda não estamos preparados para eles. Por exemplo, que sometimes the truth isn’t good enough, sometimes people deserve more, sometimes people deserve to have their faith rewarded. Por exemplo.

O que é o Homem? É aquele ser que faz filmes.

Manel, larga o vinho

Manuel Monteiro é uma personagem trágico-cómica, como qualquer português very typical. O seu maior desejo era voltar ao CDS, regressar ao vaidoso corrupio dos jornalistas, ter poiso garantido na Assembleia, receber convites para brunches e almoços em hotéis de luxo, atravessar feiras com passo seguro e olhar confiante, desfrutar de momentos em que até ele acreditaria no que estivesse a dizer. O sonho é lindo, e nessa visão adormece embalado há anos, mas não teve Portas por onde entrar. Assim, arrastou-se pelo PND até ao dia em que a filial da Madeira introduziu a suástica na gesta do parlamentarismo insular. Esse foi precisamente o dia, horas depois, em que fugiu do hospício.

Ontem discursou no 4ª Congresso do PND. Aproveitou a ocasião para mostrar o que Portugal está a perder ao ignorar as suas ideias. Eis o raciocínio: os partidos com representação em São Bento são corruptos e/ou incompetentes, o Primeiro-Ministro é suspeito de crimes vários, o Presidente da República está a ser irresponsável, os militares só não fazem um golpe de Estado por carência de recursos não especificados (munições? gasóil?) e, algures em 2009, os patrícios irão para a rua fazer mal uns aos outros. Que fazer? Demitir o Governo, diz ele. E para quê, se tudo à volta é uma desgraça e ninguém irá escapar? Isso já não explicou, talvez por falta de tempo.

O Manel faz parte da legião dos zangados, a qual vive com a certeza de que alguma coisa no seu quotidiano está completamente errada. Mas que será? O sentimento de confusão e insegurança aumenta com o declínio cognitivo, a ansiedade torna-se angústia, desespero. Algo está errado, e alguém tem culpa, mas nunca os zangados. Claro. A zanga só é possível num estado de narcisismo e projecção, não em abertura e renovo. A intensidade deste rancor justiceiro é a exacta medida da sua impotência política. O verbo solta-se cristalizado, lancinante, e substitui a acção. Aparecem as matrizes do social, os emblemas do poder, as forças coercivas a prometer a salvação. Quando o seu mundo parece ruir, os zangados acabam invariavelmente a chamar pela tropa. A tropa-fandanga.

Randa Nabulsi choca de frente

A representante da Autoridade Palestiniana em Portugal desfez as dúvidas: a culpa do terrorismo que se abate sobre Israel é do próprio Israel. Isto equivale a legitimar o terrorismo, visto como resposta adequada. Creio que a enorme maioria dos que tomaram partido por este lado da barricada comunga do raciocínio. É por isso que PCP e BE, mas também muitos outros no PS e alhures, não se alvoroçam com os actos de terror. Uma parte da explicação estará na cobardia de se manifestarem contra indivíduos que sabem não respeitar qualquer lei ou ser humano, mas esta consciência fica recalcada. O seu silêncio embrulha-se na desculpa da assimetria, indo dar a estes raciocínios:

Houve apenas 3 israelitas mortos, em 8 anos, e 12 foram feridos. […] Um acidente viário pode resultar em mais mortes do que estas.

Eis o algoritmo do horror: vale tudo desde que a aritmética possa ser invocada. Quantos morreram no 11 de Setembro? 2.974 pessoas, uma gota no número de mortos causados pelos EUA, Israel e aliados ao longo dos anos, séculos. Esta abstracção, que une fundamentalistas religiosos com fanáticos marxistas, tanto pode ir buscar às Cruzadas motivos para assassinar inocentes como os escolher para alvo pelo aleatório facto de estarem no local errado à hora errada. Os bombistas de Londres e Madrid não se importavam de ir matar também muçulmanos, hindus, budistas, agnósticos e ateus, já para não falar nas nacionalidades, sexos, profissões e idades dos massacrados. Aliás, o sentimento de impunidade, e sua pulsão martirizante, obriga a que se anule a noção de inocência. Não há inocentes, só injustiçados a quem a divindade cauciona a destruição, de um lado. Do outro, só algozes e seus cúmplices, mesmo que alguns destes cúmplices estejam a favor da causa dos bombistas, contra as políticas dos seus Governos ou, tão-somente, tenham uma mochila às costas com os livros da escola primária.

Cada morte injusta compromete por igual toda a Humanidade. Não há mortes de inocentes que valham mais do que outras. Os imbecis que comparam números são coniventes com a matança. Daqui, a primeira posição ética perante um conflito que regista injustiças de parte a parte ser a de recusar a violência maior, o terror. Quem se faz rebentar no meio de civis ou manda bombas pelo ar para zonas de habitação, e quem o apoia, é nosso inimigo. Um tipo de inimigo que não merece qualquer piedade.

Pior de 2008

Pacheco Pereira representa aquilo que de pior aconteceu na sociedade portuguesa em 2008. Funciona como uma lente gravitacional, amplificando com a sua galáxia de opiniões os vícios, fraquezas e disfunções da classe política, da direita, do PSD, da oposição e da intervenção cívica profissional.

2007 tinha acabado muito bem para o Pacheco. Era a cara da resistência interna à gaia demência, a esperança de regeneração do PSD, e em Dezembro teve a coragem de publicar esta meia-denúncia sobre uma situação escabrosa. O silêncio geral que se seguiu confirma a dimensão do que deixou entrelinhas, poço sem fundo de cumplicidades que fazem parte do regime paralelo onde a corrupção e o crime ditam as leis. Infelizmente, 2008 veio desbaratar pecúlio tão promissor, num crescendo de fulanização, distorção e depressão.

O modo como este gabiru da análise política falhou o entendimento do papel histórico de Sócrates é, sob qualquer ponto de vista, espectacular. Em 2005, estava claro que Santana encerrava em desgraça o ciclo começado com a fuga de Cavaco, em 1995; primeira traição a Portugal por desresponsabilização após a entrada dos fundos europeus, e a qual levou a uma sucessão infame de governantes e líderes partidários. Não se poderia piorar, não havia nada mais radical do que a destituição de um Governo com apoio parlamentar, pelo que algo diferente começaria necessariamente após a inaudita decisão de Sampaio. E, de facto, o Governo PS saiu melhor do que a encomenda, obviamente com o contributo decisivo da maioria. Mas a grande, enorme, diferença estava na cultura altamente profissional daquele grupo governativo, apesar das naturais diferenças individuais entre ministros. A ambição reformista de Sócrates atacou um inimigo com décadas, ou séculos, de atavismo cultural e marasmo cívico, brilhantemente diagnosticado pelo José Gil pouco tempo antes. Ninguém sabia até onde se conseguiria chegar nem quais as consequências sociais das reformas. Apenas se tinha consciência, cheios de raiva e nojo, que não se podia esperar mais.

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94%

Chegámos a 12 de Março de 2005 em profunda decadência cívica. Quem se der ao trabalho de ler o que escrevem os publicistas desde meados dos anos 80, mas em espiral desvairada desde 2001, vai encontrar a repetição desta mensagem: os políticos são maus porque o povo não se envolve na política. Se interrogado, o povo usa a versão simétrica do mesmo argumento: não se envolve na política porque os políticos são maus. O consumismo provinciano que foge da cultura, a ignorância financeira que perpetua a pobreza, os baixíssimos índices de escolaridade que impedem o pensamento político, o generalizado anti-intelectualismo que impede o pensamento complexo, a enorme iliteracia que impede até o pensamento simples, mais o diabo a sete, fornecem ângulos sortidos para os diagnósticos. Mas esta visão fica inevitavelmente solta e quebradiça, por ser abstracta. Falta o cimento do concreto.

Na loucura do dia-a-dia, cada um de nós toma decisões lógicas, mesmo que a sua base e consequências possam revelar-se ilógicas. Até 2005, ser adulto implicava ter uma iniciação à fraude fiscal, entre outras disciplinas congéneres. Quando um cidadão se confrontava com um mecânico, pintor, electricista, pedreiro ou canalizador a oferecer-lhe um muito razoável desconto a troco da evaporação da factura, isso, com a repetição, passava a ser parte da normalidade. Afinal, é o que todos fazem, o que é suposto fazer-se. Porquê? Porque, lá está, todos o fazem, olha a estupidez da pergunta. A seguir, o cidadão convivia alegremente com empregados de restaurante que lhe davam molhos de facturas para entregar ao patrão que as usava para esconder remunerações. Este fenómeno, posto que sem vergonha e festivo, confortava-o, dizia-lhe que ele pertencia a uma comunidade tão popular que até incluía casas de pasto. Finalmente, calhando ao cidadão entrar num consultório médico, iria encontrar as mesmas vantagens: se fosse sem factura, a caríssima consulta privada ficava muito mais em conta. Este era o ponto em que o cidadão se tornava partidário do sistema, dado que até os aristocráticos e impolutos doutores o utilizavam às descaradas. Naturalmente, quando apareciam notícias de haver empresários organizados em cartel para roubarem o Estado em dezenas ou centenas de milhões de euros, havia uma certa indiferença misturada com simpatia. Eles teriam sido apanhados, coitados, por um qualquer azar, mas não merecendo castigo especial. Afinal, roubar o Estado era a norma, um sinal de inteligência e integração social. O cidadão optava por ganhar uns trocos, assim recheando a sua vida com um televisor maior, mais 100 quilos de roupa, um carrão, uma segunda casita, aquelas férias em grande. Em contrapartida, 31 mil milhões de euros por ano, o valor da economia paralela em 2005, deixavam de entrar no seu dia-a-dia. No seu e no da sua família, amigos, vizinhos e colegas.

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O PSD também precisa de um bailout

O estranho abandono de Cavaco Silva, em 1995, ainda não deixou de provocar estragos no PSD. Fernando Nogueira foi logo apontado como uma péssima escolha para sucessor, mesmo antes da sua eleição. Marcelo Rebelo de Sousa mostrou ter jogo de pés, mas não ter força de braços. Durão Barroso fazia da ocupação do cargo de primeiro-ministro a realização messiânica da sua vida. Ele sabia que um dia chegaria lá. Assim que chegou, traiu o compromisso eleitoral a meio da legislatura e deixou o País entregue a Santana Lopes. Santana foi um desastre como governante e estadista, desperdiçando infantilmente o poder máximo que lhe foi cair nas mãos. Marques Mendes prometia um cavaquismo renovador e puro, tendo começado muito bem ao tentar limpar a casa. Nem chegou a ser Sol de pouca dura, foi apenas uma lâmpada que se fundiu assim que foi ligada à corrente. Com Luís Filipe Menezes, e pela primeira vez na História do PSD, alguns temeram que o partido não sobrevivesse à super-humana ciência de Gaia. Finalmente, Manuela Ferreira Leite, por mérito próprio e alheio, confirmou o diagnóstico: o PSD está moribundo.

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Encavanço

Dias Loureiro resolveu fazer bluff e apostou tudo contra o Banco de Portugal e a Presidência da República – numa espectacular fuga para a frente. Isto faz dele um imbecil de grau 10 na escala Loureiro (a qual só tinha 5 graus até à passada sexta-feira).

Pensar que poderia pôr em causa Vítor Constâncio, acabando com ele de vez, vai revelar-se um tiro saído pela culatra aquando da ida do Governador, hoje, à RTP. Para as crianças no auditório, o terceiro homem na reunião de apenas dois em 19 de Abril de 2001 às quatro da tarde* é o Vítor, o tal que já disse não ter recebido de António Marta nenhuma informação relativa a problemas no BPN. Falta só a Constâncio manter a constância e assinar a certidão de óbito: confirmar que Dias Loureiro foi ao Banco de Portugal, em 2001, protestar contra os apertões do supervisor. Para tal, basta assumir que Marta lhe contou o teor do encontro, como é altamente previsível que o tenha feito.

Todavia, é no ataque à Presidência que Dias Loureiro se revela uma figura a merecer grande romance, filme grande e série de televisão grandalhona. Na entrevista, o nome do Presidente da República foi apresentado como caução da sua inocência. 23 anos de amizade com Cavaco eram o trunfo com que pretendia cortar a vasa da suspeita. Como poderia ele ter prevaricado se o próprio Presidente conhecia os seus padrões morais e éticos? Esta soberba afirmação não oferece sombra de dúvida: Cavaco entrou de cabeça no caso BPN. É uma daquelas situações em que se sabe como se entra, mas não se faz a menor ideia como se vai sair.

Um dos cenários possíveis será o de uma inédita derrota na eleição ao 2º mandato. Eanes, Soares e Sampaio fizeram o pleno dos 10 anos na presidência, e todos auguram o mesmo para o presente inquilino do Palácio de Belém. Todos? Não, há um ex-ministro de Cavaco, eminência parda do PSD e actual Conselheiro de Estado, apostado em criar uma originalidade na História da democracia, pois não é possível ao Presidente manter o apoio a Dias Loureiro sem com isso perder a confiança do País. Contudo, como este figurão já saltou para as costas de Aníbal e anunciou que não vai largar, fazê-lo cair vai partir muita loiça. O seu bluff é de tal ordem – atente-se: consegue chantagear Cavaco na TV, que não fará aos outros? – que a própria continuidade de um partido chamado PSD está agora mais em causa do que nunca. Este não é tempo para loucos como Filipe Menezes, incapazes como Ferreira Leite, deprimidos como Pacheco Pereira, decadentes como Pulido Valente ou malabaristas como Rebelo de Sousa. Este é o tempo para sociais-democratas com eles no sítio, capazes de aproveitar a queda de um império para levantar uma civilização.

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* Dias Loureiro, na entrevista e declarações pós-desmentido de António Marta, repetia a oração 19 de Abril de 2001 às quatro da tarde como um mantra. É um dos vários sinais de ser muito provável estar a mentir, procurando realçar uma parte indiscutível, mas irrelevante, da ocorrência como prova de certeza em relação ao todo. O mesmo para o raciocínio primário com que reagiu ao desmentido: [...] peço às pessoas que pensem um bocadinho e ponderem se agora, no momento em que o BPN e a SLN estão a ser alvo das maiores suspeitas, alguém de bom senso acha que eu iria invocar uma conversa com o Dr. António Marta se ela tivesse sido aquela que ele disse que foi? Bom, estamos perante um clássico da argumentação falaciosa, pois são precisamente as maiores suspeitas que justificariam esse acto desesperado. A cultura de impunidade e cumplicidades com os poderes político e económico toldaram-lhe o discernimento e levaram-no para um modus faciendi a que eventualmente estará acostumado, só que agora servindo a ameaça de arrastar tudo e todos na queda. Tal é a profundidade do encavanço.

X-Files_Herman José

Que o Herman perdeu por completo a graça, é notícia mais antiga do que o início das obras para a Expo 98. Mas ninguém (que eu saiba ou lembre) se preocupou em explicar o fenómeno ou em antever se tal perda é irreversível. Dada a importância do Herman na cultura nacional pós-25 de Abril, importa reflectir no que aconteceu e acontece a este marmanjão do entretenimento à portuguesa. Mas deixo o aviso: se durante a leitura te aperceberes de qualquer coisa assim a modos que estranha ali para os lados do Kosovo, pára imediatamente, mantém a calma e respira fundo (ou vice-versa), pega num pijama e duas latas de atum, dirige-te em passo de corrida para a sede do PSD mais próxima e aguarda instruções. Nada temas, a ajuda não demorará a chegar. Já foi tudo tratado com o Sr. Presidente da República.

Se 1975 anunciava a chegada de um cómico de talento superior, com o Sr. Feliz e Sr. Contente, 1980 consagra-o como uma novidade artística – após os sucessos musicais Saca o Saca-Rolhas e A Canção do Beijinho – n’O Passeio dos Alegres com o Tony Silva. Foi a primeira personagem humorística criada para o meio televisivo nacional e despertou universal paixão, pois reunia toda a sociedade numa só figura de síntese: o Portugal antigo a dar passagem ao Portugal moderno. Nunca tínhamos rido tanto e tão fundo, nesse processo que misturava, e conciliava, identificação e estranheza. Veio O Tal Canal, e com ele atingiu-se o apogeu dessa crítica social e antropológica começada no Tony Silva. Assistíamos à fulgurante definição de um novo paradigma humorístico, e televisivo, onde Portugal se unia à volta de um discurso vanguardista e de uma figura iconoclasta. Herman transformara-se na 1ª super-mega-hiper-estrela desta aldeola virada ao Atlântico, nem os futebolistas de então tinham sequer um centésimo da sua fama. Não conheci a popularidade do Raul Solnado nos anos 60, mas aposto que não é comparável ao que aconteceu com o Herman.

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