Lídia Jorge, que não consta ter dificuldades de maior para lidar com a complexidade, deu a sua opinião acerca do acordo entre ME e sindicatos. O que escreveu é um condensado da secreta vivência da maior parte dos professores; e, especialmente, das professoras. Vejamos parágrafo a parágrafo:
Este acordo é histórico porque ele permite salvar da humilhação alguns milhares de professores e restabelecer um clima de paz num momento em que a escola pública portuguesa precisa de proceder a uma revolução nos métodos de trabalho. Ele permite salvar a escola dum inferno burocrático incompatível com uma boa convivência entre colegas e um ensino livre e feliz. Além disso, regressar a uma carreira única, mas em que se progrida por mérito, era indispensável e esse princípio manteve-se.
A celebérrima escritora informa a população de que os professores estavam a ser humilhados. Humilhados, repita-se para que a ninguém escape a dimensão do ataque. Quem os estava a humilhar? Ela não identifica o verdugo, mas só poderia ser uma entidade tenebrosa, um ente já supra-político, ontologicamente maligno – por exemplo, a Ministra Sinistra. Com esse ser não há diálogo possível, só visceral ódio despejado em cima de todos os mentores e cúmplices da grande humilhação.
Nesta lógica, lógico era que o Governo anterior quisesse enfiar os professores num inferno burocrático. É só nisso que os demónios pensam, tratar de encher os infernos com as almas dos puros. Daí a pergunta: pode alguém ser livre e feliz no inferno? Claro que não, Lídia, importa é manter intacto o princípio da progressão por mérito, esse céu na terra onde se avança na carreira ao ritmo natural e naturante das circunvoluções solares.
Mas é preciso ter em conta – e nem sempre a população está bem informada – que os professores e os médicos são as classes mais directamente escrutinadas da sociedade. Cada dia, em cada hora, o professor passa pelo escrutínio cerrado de dezenas de crianças e adolescentes. Basta imaginar uma sala de aula. Não é pouca coisa.
De facto, a população não está nada bem informada a respeito do que se passa numa sala de aula. Nem a população, nem a sociedade, nem o Estado. Nisso, Lídia, não podias ter sido mais certeira. E fica também patente qual o tipo de mérito necessário para a tal progressão feliz na carreira: apenas a mera acção de aparecer para trabalhar na escola que nos paga o salário – ou seja, esse heroísmo que consiste em estar numa sala de aula enfrentando adolescentes, e crianças, às dezenas, ali sentados a olhar para professores assustados e confusos com tão intenso escrutínio.
É por isso que este acordo histórico ainda não terminou. Ele só ficará selado quando Isabel Alçada verificar a que professores, durante estes dois anos, foram atribuídas as notas de excelente, e tirar daí as suas conclusões. Talvez resolva anular os seus efeitos. É que os professores duma escola constituem uma família. Experimentem criar um escalão de avaliação entre os membros duma mesma família que se autovigia. Sobre os métodos de avaliação desejo a Isabel Alçada e aos sindicatos muitas noites de boa maratona.
Cá está: os professores duma escola constituem uma família. A quem favorece a desestabilização desta família? Quem anda a espalhar a discórdia dentro de uma família que se ama e só quer que a deixem viver feliz? Isabel Alçada, com a ajuda dos sindicatos, que trate de acabar com esses professores ditos excelentes que só servem para causar chatices na família. Numa família não há excelentes porque os membros das famílias não se autovigiam, o que leva a que não seja possível fazer comparações. E é assim o amor familiar, explica a Lídia.
Isto é tão simples de perceber, os murmúrios das donas de escola.