Depois vai ser só ler os outros. Uma excitação. Um alívio.
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Leituras de fim-de-semana (2)
UM MOURO NO NORTE (cont.)
Chegara eu de Lisboa? Sim, e de mais longe ainda. Do recanto mais fundo do fundo Alentejo. Vinha duma terra, Mértola, outrora cidade altiva, rica, porto mercantil que abastecia Lisbuna. Um pacífico povo mouro aí vivia, laborioso, feliz. Até ao dia, infausto entre todos, em que hordas cristãs de nortenhos, falando uma língua inaudita, vieram destruir-nos casas e oficinas, impor-nos uma religião, fazer-nos esquecer a amada língua berbere. Ainda hoje a minha cidade, que acabou vila, é uma das três ou quatro jóias urbanas do País. Pois sim. Mas seria exagerado agradecermos aos cristãos do Norte terem tido a gentileza de não nos riscarem do mapa. Por nós, nunca recuperámos da invasão. Hoje batemos palmas à selecção portuguesa? Acreditem que também teríamos feito uma boa equipa.
Não me tornei padre. Essa batalha, o norte cristão perdeu-a. Ficou o mundo, também, com um problema a menos. Hoje, do púlpito, eu encheria atentas naves com verdades em que eu mesmo não acreditaria. Uma vida exemplar não era, igualmente, de mim esperável. Ainda assim, garanto que tinha perfil para voos eclesiásticos. Neste momento, poderia estar já a cónego, quem sabe se a mais. Seria feliz? Algo me faz supor que não. Mas nunca mo poderei provar. Também a vida nos vai formando, e acaba por fazer de nós seres inverosímeis, a perguntarem-se ‘como é que cheguei aqui’, olhando à volta, procurando um código, talvez escrito no desenho dos ramos ou no voo das aves, que nos informe, finalmente, do que viemos aqui fazer.
Concedo: também não eram, estas, considerações que me visitassem o ânimo, naquela tarde, há cinquenta anos, em que de longe avistei Guimarães por primeira vez. Não eram estas reflexões, nem nenhumas outras. E por isso eu era feliz.
Leituras de fim-de-semana (1)

UM MOURO NO NORTE
Há gente que não assenta. Anda de terra em terra, aproveita o melhor de cada uma, e parte, parte de novo, que o vasto mundo chama. Uma pessoa assim sou eu. Nada de especial, adianto já. Mas sou irremediavelmente ‘especial’ para mim mesmo, e vivo na firme, ainda que improvável, convicção de sê-lo também para os outros. Ora, até nisso, não sou especial. É que todos, todos, assim nos sentimos. Vivemos confinados nessa desesperada, e também sólida, impressão de sermos o centro do mundo. Infelizmente, somo-lo. E, porque mais ninguém se dá conta disso, vivemos nesta desdita, e nesta solidão, que a gente sabe.
Não eram, estes, pensamentos que me atormentassem aquele domingo de Março de 1955 em que avistei Guimarães pela primeira vez. Nem é certo, sequer, ter percebido que era Guimarães aquilo que avistava ao longe. Vou explicar. Nesse longínquo dia, jogava o Benfica em Braga. Isso era uma boa razão para eu me meter à viagem, de Lisboa. A outra razão é que queria ser padre, e Braga era um sítio, digamos, muito adequado. Mas, e agora vem, não era bem Braga aonde me dirigia, e onde iria passar os oito intermináveis anos da minha adolescência. Era um alto cerro a leste da cidade, de onde se avistava o mundo inteiro, e Guimarães para começar.
Desde então, passei a acordar vendo a cidade três ou quatro léguas lá adiante, e garanto que há no mundo poucos espectáculos para um despertar assim. Quantas vezes a Penha não se recortou, nítida, sobranceira a um vale, o das Taipas, acamado num lago de nevoeiro, liso e brilhante. Tantos anos depois, isto ainda põe lírica uma pessoa. Depois, e o lirismo ainda não acabou, quantos pores-do-sol não viram estes olhos, em que Guimarães encerrava o dia num rosa-laranja glorioso, agora já não nítido senão irisado, como diriam os poetas. Já se percebeu: tenho da primeira capital portuguesa uma impressão muito devedora à natureza. Impressão limitada, decerto, mas intimamente enriquecedora. Também a natureza nos forma. De resto, mais tarde soube que jóia urbana Guimarães era, com um dos três ou quatro mais belos centros históricos do País. Na altura, este miúdo calhava caminhar pela cidade, achava bonito, mas não sabia quanto.
Chegara eu de Lisboa? Sim, e de mais longe ainda. Do recanto mais fundo do fundo Alentejo.
[prossegue e termina mais logo]
Este artigo apareceu, por convite de Pedro Chagas Freitas (ver blogue aqui ao lado), no jornal «Global Minho e Porto», editado em Guimarães. A fotografia é autêntica. Foi feita num fotógrafo da Rua dos Poiais de São Bento, em Lisboa, na noite anterior à partida para o Norte. Meios sofisticados permitirão identificar o emblema como de um clube importante da capital.
CARTA AO POETA ANTÓNIO CABRITA A PROPÓSITO DE CERTOS IMPASSES

Do poeta natural de Cabo Verde José Luís Tavares publicou o «Aspirina» alguns originais e traduções de poemas portugueses para caboverdiano. Hoje, um novo original, com destinatário e mensagem. Decerto não por causa, mas seguramente por arrastamento do «post» de Valupi / RenatoC. «Somos um aterro literário!».
CARTA AO POETA ANTÓNIO CABRITA
A PROPÓSITO DE CERTOS IMPASSES
Sim — sempre o soube —
amas o fogo que assoa as ventas
aos baixios da alma com a afeição
do sabre gangrenando a giba.
Com a confiança do que atravessou,
incólume, o gargarejo de zeus,
desentranhas o manancial que sete
gerações de poeira ocultaram sob
a cauda centrípeta do harmatão.
Irmão antónio, que suspiro não é
decreto que cauciona a orfandade do escriba?
A minha filha já me ronda os versos
com a veterania do felino, inda desconheçam
os molares o salitre oculto em cada naco.
Irmão antónio, a ciência do desengano
não é apanágio do que se  extravia
num raso copo de mezcal,
mas daquele que desabalado de si
apalpa o pulso ao furacão.
Pois, tu também te perdeste,
com a loquacidade do naufragado,
à esquerda pantanosa de um tempo
que recicla os mais débeis gorjeios
que nem cócegas fazem às coronárias
— arrancado aos pinhais onde lufam
polígrafos ignorantes da fotossíntese,
nas margens do limpopo despistas agora
o ranço que aleita os ouedes
onde se oculta o manancial.
Sagrasses em pedra-pome o rasto dos delírios,
qual cego que seguisse o engodo duma mansa voz,
mas conturba-se a atonal rebentação
com seu fio preto de insónias — e meia vida
escoa-se pelo cano que rói o sebo aos mistérios;
a outra, confia-la à pestanejada porosidade
dos versos, reles baforada
sem o póstumo luzimento que recobre
a irrestrita inteireza do abismo.
José Luís Tavares
O filme das vossas vidas

Então é isso. Os vossos dias, e as vossas noites, esvaem-se-vos assim. Uma bebida num bar imensamente trendy, um ultra-rapidinha em casa antes do jantar fora, uma rupita levíssima que abala a conta do marido, uma queca nos lavabos do Centro Cultural de Belém.
Para ver-me informado disso, fiquei eu a noite passada roubando o sono ao corpo (sim, eu arrasto-me uma hora à vossa frente, calaceiros), dizendo-me que o filme da vida deles bem podia esperar até virem as primeiras críticas. Tudo bons pensamentos. Era a sábia natureza a surrurrar-me o melhor que lhe vinha à cabeça. Pois nada ajudou, viu-se. Sim, este desgraçado viu.
Claro, os actores portugueses fazem largos progressos. Já não se lhes lê nos olhos a deixa seguinte, a dele, ou a do outro, e conseguem mesmo uma vaga descontracção. Os cenários são convincentes. E a linguagem até não mete logo o lisboetês desta semana.
Mas a história… (não reparei no autor, mas vou reparar), a história não tem nada daquela finura que faz as grandes séries, norte-americanas ou brasileiras, o imprevisto ou o dulcíssimo susto que nos atraem para a ponta da cadeira, e já no primeiro episódio, pois claro.
O filme das vossas vidas? Talvez o espreite. Talvez não. As vossas vidas são-me valiosíssimas. O filme delas, não sei se deva dizê-lo, um tanto menos.
Versos que nos salvam
«Versos que nos salvam» era o título da secção de poemas mantida pelo José Mário Silva no velho «BdE» e, em tempos, no «Aspirina». Adoptamo-lo por nostalgia, claro.
Virgílio Rodrigues Brandão é poeta, advogado e colunista do Liberal de Cabo Verde. Reproduz-se um magnífico poema de Virgílio, encontrável também aqui.
ESTELA CANTO E FELICIDADE
Redoma do meu umbigo,
primeiro útero
e mãe.
Lembras-me Estela Canto
nas penumbras tardes de Buenos Aires
à beira do café
com o tango dançando nos coretos
teus lábios de quinta-essência curva
e sorriso prenhe.
Confesso: lembras-me
porque me dói a alma,
todos os homens teus têm duas mães,
gemem quando amam
e procuram por ti sem saberem
– na verdade dizem-se ditames de dias novos
em corpo-longe.
Sim. Ah, sim. Lembras-me
que sou petros in natura
ansiando de trágico o teu riso em noite escura
apagada dentro de luz
em todas as auroras dos gemidos
que ficam nas sombras dos dias…
Sim, lembras-me Estela Canto,
as dores de parto letrino e de dentes
do poeta
e todos os anseios de amanhã
consumindo anos de mar refinado
para perceber de Deus em ti obra
e beijo que podem ser melhoradas…
Lembras-te de me lembrar,
ainda menino,
que posso ser melhorado?…
Recordo-me – expeliste-me de ti…
Lembras-me Estela Canto,
uma parte de Adão em Buenos Aires,
recortando sentidos,
apagando alma de amores,
criando caminhos do belo nas rasuras,
parindo luz numa íris cansada…
Será que sabia que daí chegava a ti
– ao teu Porto Novo e ao teu Fogo –
milho vermelho para construir seiva
para me gerar?
Lembras-me Estela Canto
pois nasci em ti, que foste apagando
o verde e dás sentido ao belo
mesmo nas noites escuras
e no medo cansado que espreita na voz
residente no teu ventre que também balbucia
como o poeta chorou em Genebra
e Buenos Aires quando eu nasci: «Ya no seré feliz.»
O que não sabe, é que é feliz!
Em ti…
Virgílio Rodrigues Brandão
Os indignadores profissionais
José Saramago quando director-adjunto do DN em 1975
Se há raça de gente que me põe descrente da humanidade, é a dos indignadores profissionais. São os descontentes porque sim, para lá de toda, mesmo a mínima, tranquilidade de espírito.
Isto vem trazido por um comentário, assinado «Rendinhas e Veneno» (vá lá, tem nisto graça), ao post anterior a este, e que diz, entre mais: «Pois é, só é pena que o DN não se lembre o que o José Saramago fez quando foi seu director… já lá vão uns 30 anos é natural que tenha caído no esquecimento…»
É uma insinuação recorrente. Ora, exactamente o «Diário de Notícias» (caramba, o Google até já existe) publicou este artigo que há-de esclarecer o «Rendinhas» bem mais, talvez, do que sonharia. A foto acima é daí tirada.
Do maior interesse são, também, as declarações de Luís de Barros, então director do DN, sobre a sua oposição à entrada de Saramago para a direcção.
Não tem excessivo interesse, mas lembro que pouca gente tem minado (bom, tentado minar) tanto a mitificação de Saramago como aqui o Degas. Simplesmente, nunca permiti que a indignação me guiasse. Por isso me é um prazer constatar que há outros mais dois-dedos-de-testa, como os que depõem neste post da «Estrada do Alicerce», de Ruy Ventura.
Para sublinhar – e apreciar – isso, não preciso sequer de concordar com tudo o aí dito. Assim discordo frontalmente da observação de Paulo Tunhas (aí citado), onde se considera Saramago «palavroso» ou «sem sombra de ironia». Se é verdade que alguns romances, sobretudo os dos últimos dez anos, valem por escassas dezenas das suas páginas (e um ou outro nem isso), creio poder ter-se o estilista Saramago na conta de invulgar economista da linguagem. E de um mestre em ironia. Demasiado subtil, por vezes? Bom, isso já pode ter a ver com quem o lê.
É isso, a indignação-porque-sim só enfraquece as causas. Normalmente, nem causas tem.
José Saramago em 1499 caracteres

José Saramago com Adrienne Clarkson
Ainda hoje a presença de José Saramago nas letras portuguesas é da ordem da fantasmagoria. Nada fazia suspeitar, por 1980, que uma escrita assim fosse surgir, desarrumando quanto de instalado, e quanto de insubmisso, essa literatura então acolhia. Decididamente, Saramago podia ter sido inventado, previsto é que nunca. Nessa irrealidade nos encontramos ainda. Porque a questão é esta: se é verdade que as grandes escritas são inspiradoras e arrancam o melhor de nós, imitar a deste autor, tentar mesmo só aproximar-se-lhe, produzirá apenas o pastiche, a homenagem.
E todavia – já foi dito, mas importa repetir – muito escritor, ou aprendiz dele, ganhará em ler José Saramago atentamente. Há-de aperceber-se de que a naturalidade ou o artifício, a transparência ou o mal-entendido, a desarmante singeleza ou um requinte de perfídia, são outros tantos efeitos lúdicos, atingíveis com recursos inesperadamente simples, maneiros, à nossa espera no vasto areal do idioma. Se a língua portuguesa permitiu um ‘Saramago’, é porque ela anda grávida de outros.
Quanto ao resto, há muito que estamos conversados. Quem criou Ensaio sobre a Cegueira e Memorial do Convento entrou, e ficou, na literatura do planeta. O Nobel há-de ter sabido muito bem? É mais que certo. Mas nunca essa distinção precária e mundana foi deveras indispensável.
fv
Este texto acompanhou a oferta duma medalha de J.S. no DN do passado domingo. Mas está longe de ser – o leitor atento há-de tê-lo visto – um texto comemorativo.
Passeio bloguítico às tascas da má-língua

Eu acho delicioso. E instrutivo. E dá-me sempre novos motivos para ser modesto. Nos meus tempos de maldizente, eu era – sei agora – um menino de coro. Hoje, nos blogues, a cena literária é pretexto para muita, mas muita mais ferocidade do que algum vez cá o Degas produziu em folha de papel. Dois exemplos fresquíssimos.
O juvenil «Não Li Nem Quero Ler» – juvenil no tempo de vida e no ainda difícil acerto dos autores com a gramática portuguesa – prossegue a sua abnegada missão.
Também o nunca esquecido Fernando Esteves Pinto, no seu «Escrita Ibérica», não consegue vislumbrar, na mesma e colorida cena, um luzinha que nos encante a existência.
E anda uma pessoa, como eu no DN deste domingo, a produzir 1499 caracteres de bondade sobre José Saramago. Isso depois de ter enfrentado, anos a fio, o mais monótono dos coros portugueses, onde nunca entrei, nem como menino, o dos «saramaguianos».
«Não é fácil dizer bem», ó George? Foi tu abrires a tampa, e o espírito soltar-se. Feliz. Reinadio. Imparável.
A tempo e horas
Ainda no «Esplanar», Carlos Leone – a propósito duma alusão minha aqui – lembra a distância que vai entre a produção dos «redactores» do «Não Li» e o trabalho de José Pedro George no blogue que Leone hoje gere. A distância é patente. É-o cada vez mais. Se desmereci a intervenção de JPG, retracto-me. Com gosto, de resto.
Para os não espeleólogos
O nosso amigo e colega que assinou aqui «afixe» escreveu um post encastoado num comentário a outro post. Não me perguntem como isso se faz – hoje é domingo, e não vou partir a cabeça. Sobretudo, isso não é o mais importante. Pensando bem, não é importante sequer.
Está tudo num comentário de Luís Oliveira ao meu post «Lixo atrai lixo». Que não tinha culpa. O post. Nem o Luís Oliveira provavelmente.
Caro «afixe» (permita-se esta interpelação encastoada num post…): se a qualidade dos comentadores é assim tão determinante (é este, parece-me, o teor do teu último contributo), andarei eu muito perdido ao ter o «Abrupto», o «Da Literatura», o «Esplanar» e «A Origem das Espécies» entre os meus blogues diários, que não permitem, todos quatro, o comentário, ou pelo menos o comentário não filtrado? Blogues onde não se comenta não são «blogues»? Terei eu lido mal?
A senha antiportista

Não é por nada. Eu até acho o homem um grande escritor, e tenho-o dito amiúde. Mas, havendo aqui assinalado em outra celebridade literária um uso de «lenho» onde devia estar «lanho», eis que dou, em crónica de Miguel Sousa Tavares, n’«A Bola», com um também peregrino uso de «senha». O texto é já velhinho, mas actualíssimo. Ainda hoje o Porto não é amado por Lisboa e seu termo. Pois bem, lia-se na crónica de MST, e eu sublinho:
«…ou ainda um telefonema a Pinto de Sousa em que o presidente do FC Porto terá intercedido a favor de Deco e Mourinho, para que a Comissão Disciplinar da Liga suavizasse momentaneamente a sua tradicional e famosa senha antiportista — tudo isso, todos esses gravíssimos supostos indícios que…». O texto inteiro está aqui.
Caganitas? Nem mais. Só um linguista repara nelas. Mas é a verificação, bem-sucedida, duma hipótese. Um dia, prometi eu, alguém – que foi afinal um cronista célebre (e seus revisores, que «A Bola» terá) – haveria de confundir «sanha» com «senha».
A linguística, será ela afinal uma ciência muito séria?
A tempo e horas
Nova hipótese. Não há-de demorar que alguém, em vez de «ela viu-se ao espelho», grafe «ela viu-se ao espalho» (a ler como «espâlho»). Aposto uma cerveja. Eu pago-ma.
Lixo atrai lixo
No «Expresso» de hoje, um texto do crítico António Guerreiro ajuda a chamar as coisas pelos nomes. Não podemos dar o link, que é a pagar. Os negros são nossos.
«Na semana passada ficámos a saber, através de um comunicado da empresa, que João Paixão tinha sido substituído, no cargo de administrador das Publicações Dom Quixote, por Juan Mera. Por mais que o comunicado tente integrar esta substituição na vida normal da editora – pertencente ao Grupo Planeta, o maior grupo editorial de língua espanhola – há alguns indícios de que as coisas são muito menos serenas, como já tínhamos percebido com a saída, há pouco mais de dois meses, do director editorial João Rodrigues.
«O discurso das empresas, como o de cada indivíduo, tem um conteúdo latente que se manifesta como sintoma. Quando lemos, no mesmo comunicado, que o novo administrador irá prosseguir uma «programação editorial equilibrada, reconciliando as tendências do mercado com a identidade da editora, a qual tem por base autores portugueses e literatura em língua portuguesa», percebemos que uma tal afirmação é, no contexto, deslocada, e que ela só ocorre por insistência de um nó problemático: a conciliação dos interesses comerciais com a edição de livros de «literatura em língua portuguesa». E quando se diz «literatura em língua portuguesa», dever-se-ia dizer, simplesmente, «literatura», pois é toda a literatura que é banida pelos critérios comerciais, como podemos perceber pelo vasto lixo editorial que a Dom Quixote e as grandes e médias editoras produzem hoje. Para percebermos como as coisas mudaram nos últimos anos, devemos recordar que os autores portugueses que a Dom Quixote assume hoje como um fardo são os mesmos que há uns anos garantiam o sucesso comercial da editora. E, em boa verdade, já antes de a Dom Quixote ter sido comprada pelo Grupo Planeta, raros eram os autores portugueses que menos vendem (por maior que seja o seu prestígio) a entrar no catálogo da editora. Só que nessa altura as derivas comerciais ainda estavam no início, não era ainda necessário produzir tanto lixo e entrar na corrida selvagem onde só se salvam os livros que ocupam mais espaço nas livrarias, têm capas mais coloridas e cumprem a tarefa nauseabunda da mercadoria inútil, repetitiva, degradada.
«A lógica editorial, percebemos hoje perfeitamente, não é diferente da que governa a televisão e os jornais: o lixo atrai lixo e a partir de certa altura todo o circuito (edição, distribuição, comercialização) não consegue alimentar-se de outra coisa, não tem tempo nem espaço para funcionar de outra maneira. Lido nas suas manifestações sintomáticas, o comunicado da Dom Quixote diz-nos que o estado da edição em Portugal é uma calamidade, mas que a editora irá continuar, como muitas outras, a contribuir para ela. Quixotesco seria fazer o contrário; colectivamente suicida é persistir na mesma via.»
P.S. Creio que A.G. só não vê bem quando afirma «já antes de a Dom Quixote ter sido comprada pelo Grupo Planeta, raros eram os autores portugueses que menos vendem (por maior que seja o seu prestígio) a entrar no catálogo da editora». Houve, antes e depois da transacção espanhola, vários principiantes editados. O que terá faltado é o acompanhamento. O incentivo. E a convicção. Pelas razões que ele aduz, claro.
fv
Você também googla?

Hoje, no DN, uma interessante coluna de Diogo Pires Aurélio sobre presente e futuro do Google e as vantagens que traz ao investigador. Que tenha sido o publicista Pires Aurélio a expor-no-lo, aí está o que faz grande bem a um simples mortal.
E você? Ainda se envergonha de reconhecer que googla?
Há uns anos, uns bons anos, uma fotografia de Vasco Pulido Valente (julgo, já não sei, que acompanhando um texto meu a seu respeito) mostrava-lhe, em cima da mesa de trabalho, o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora. Nada de especial? Nada, pois claro. O melhor estilista entre os portugueses vivos serve-se de instrumentos à mão de todos.
Não é pelos instrumentos, e sim pela inventividade, e pelo tino, que se distingue o artista.
Passeio bloguítico
Não sei se este «Perguntar não ofende» é o mesmo blogue que procurei durante tempos, e que suponho era (será ainda?) brasileiro. Mas este é português e é de partir o coco. Veja-se isto.
Mais selecto, mas igualmente fino, é um blogue que (julgo) acaba de surgir, «Não li nem quero ler», e que lembra o JPG (Recordam-se? O Leone dá boa conta da loja, mas que é feito, George?), conseguindo ser ainda mais feroz. Por exemplo, este apontamento, que não aumenta a glória de José Luís Peixoto – o autor, de resto, de algumas (outras, não li essa) rutilantes crónicas no JL.
Coisa já mais antiga, de Abril, mas com que só hoje dei, esta deliciosa história no blogue «Destaques a Amarelo». E não é, o blogue ele mesmo, uma festa para os olhos? Perguntar não ofende.
A tempo e horas:
Descubro que o autor de «Destaques a Amarelo» é o Sérgio (Aires) a quem Francisco José Viegas deve (e agradece) a «ordem» conseguida no seu blogue de textos. Ainda por cima, um tipo ordenado.
Vâjam lá!
Existem pronúncias feias? Os linguistas, gente pragmática, precatada, afirmam que não. Que – isto pelo menos – ‘feio’ não é uma categoria linguística. Mas o cidadão em mim vive num desconforto. Veja-se, por exemplo… Isso, não vamos mais longe. «Veja-se» serve bem. E para simplificar, «veja».
No Alentejo, pronunciamos «vêja». Coisa normal, já que reduzimos o ditongo para «ê». Ditongo? Qual ditongo? Pois, o de «vejo», que o padrão português pronuncia «veijo», e que se opõe a «beijo» só pela consoante inicial. Coerentemente, no Minho, ou mais alargadamente em Entre-Douro-e-Minho, o som da forma verbal «vejo» e o do substantivo «beijo» são indistinguíveis.
Mas a classe média-alta de Lisboa e Coimbra passou (possivelmente já no século XIX) a pronunciar «vâijo», tal como «cadâira». E as modificações não pararam aí, estando a citada classe na fase do «vâja». E, se bem ouço, também da «cadâra» (portanto, da «câdârâ»). Trata-se, importa lembrá-lo, de uma pronúncia originada, um dia, em bairros populares lisboetas, e que – o fenómeno é conhecido – as classes superiores recuperaram.
É feia, essa pronúncia? Tenho de confessar que não a consigo achar maviosa. Eu sei, daqui a cem anos (olá, futuro!), estamos todos a falar assim, e feias serão já outras coisas. Mas, de momento, isso cria alguns novos homófonos. E é bizarro lermos António Lobo Antunes (e os seus revisores…) a mostrar, no dedo de um fulano, um «lenho», quando, vendo bem, aí não se consegue mais que um «lanho».
Sendo assim, não é improvável que, numa repartição pública, alguém acabe por escrever (se é que não sucedeu já) «LEVANTE AQUI A SANHA». Mas, se o vir, não se assanhe você, por tão pouco.
Actualizado graças ao comentário de «sdm», que se agradece.
Floribella estraga-se

Quando me apercebi de que «Floribella» era uma série de sucesso, o linguista em mim entrou em êxtase. Portugal inteiro poderia transformar-se num grande laboratório linguístico. Muito concretamente, podia dar-se o caso de a pronúncia nortenha de Flor levar a desacelerar processos activos na nossa fala. Quem sabe se, mesmo, inverter um ou outro.
Luciana Abreu dizia «primêiro», não «primâiro». Dizia «dôu», não «dô». Isso era um novidade em ficção televisiva nacional, decerto em personagem de relevo. Os dois ditongos «êi» e «ôu» vêm da Alta Idade Média, tendo-se formado no Noroeste peninsular acima do Douro (do «Dôuro», claro). Para sermos mais exactos: são invenções galegas puro-sangue. Foram, mais tarde, levados assim para o Brasil, onde se mantêm.
Em Portugal, os dois ditongos sofreram, em séculos recentes, transformações no Sul. Assim, «ôu» deixou de ser ditongo para passar a simples vogal, «ô». (Uma interessante hipercorrecção a Sul – as hipercorrecções são sempre reveladoras – é grafar-se «poude» para reproduzir a pronúncia «pôde»). O ditongo é ainda hoje audível acima do Mondego, mas isso cada vez menos, e aceleradamente.
O caso de «êi» foi diferente. Poderia ter-se vocalizado em «ê» (e, na realidade, nós, os alentejanos, fizemo-lo), mas o eixo Coimbra-Lisboa resolveu a coisa diferentemente, modificando o ditongo para «âi». E o processo continua, aproximando-se da pronúncia «ái». Por vezes, numa série portuguesa, não percebemos se a personagem diz «Sei», ou «Sai!». E em alguns locutores é difícil saber se os trabalhadores apresentaram «queixas», ou «caixas».
Ora, que aconteceu a Floribella, a linda mocinha de Gaia? O «êi» mantém-se-lhe. Veremos por quanto tempo ainda. (Tempo, decerto, haverá, já que os autores do script vêem jeito de, a cada episódio, evitarem cinco vezes, in extremis, o final da série. Isso diverte imenso a pequenada, que adora quiproquós, e que lhe contem, cem vezes que seja, as mesmas histórias). Mas o «ôu» de Luciana, ao fim de uns meses de ambiente meridional, já se perdeu na maioria dos casos.
É isso. Do empolgante laboratório nacional, resta o deprimente condicionamento de Luciana Abreu. A norma de Lisboa soma vitórias, e uma delas está em ecrã todas as noites.
Restam-nos os miminhos. Esses, vá lá, parecem garantidos.
Facturas por pagar
Os direitistas andam preocupados, não encontram a direita. Não entendem o que lhe aconteceu.
A direita, que nos dirigiu durante séculos, fez um país inviável. E um dia desapareceu do mapa. Morreu da morte dos mitos que a serviram, dos espantalhos com que nos adormeceu. Morreu de caducidade e de vergonha.
A direita que ficou é um produto de refugo. Vai fazendo pela vida, em casos junta fortuna. O país da vassalagem que aprendeu a governar já não existe. E um país modernizado, capaz de matar a fome aos filhos, não se improvisa numa geração nem lhe cabe na cabeça. Ela só recebeu como herança o horror da populaça.
A esquerda não sabe o que fazer, tantas são as facturas por pagar.
Jorge Carvalheira
lapso de linguagem
Não há jogador de futebol que não dê o seu melhor. Invariavelmente. É já uma bandeira da classe.
Mas há casos em suspeita de lapso de linguagem, sob um tão elevado pensamento.
Ao que se ouve dizer, o seu melhor é o salário que recebem. E o que dão é pontapés na bola, nem sempre muito certeiros.
Jorge Carvalheira
Caso
Monsieur Sambá
Há fendas no quotidiano que são vertigens puras. É raro acontecerem, por benesse dos deuses. Descobrem-se adiante, e nós caímos nelas desamparadamente. Como num precipício.
Monsieur Sambá desce o dorso da duna. Caminha pela areia apoiado nas muletas, aos poucos entra na água até chegar ao joelho. A perna vazia das calças fica-lhe a boiar ao rés da espuma, agitada na brisa. E já ele retrocede, a oferecer a quem está as suas quinquilharias. Colares de búzios, pulseiras de sementes, anilhas de missangas. A carapinha branca adorna-lhe a figura, mas envelheceu-o. Pouco passará dos cinquenta. Fala um francês corrente.
– Et la jambe?! Les béquilles?!
Monsieur Sambá abre a porta ao abismo. Foi um acidente há muitos anos, em Cumbamori, ia ele a passar na picada. Veio a tropa portuguesa, um estilhaço entrou-lhe no joelho, o médico era cubano e foi morto no assalto. A perna acabou por gangrenar, foi preciso amputá-la.
– Soixante treize?!
– Soixante treize.
O cerco de Guidaje, colado à fronteira do Casamansa. Há semanas que a tropa não respirava, com tanto fogo em cima. Mandaram forças de Bissau invadir o Senegal, a ver se calavam a base de Cumbamori, ali a um par de quilómetros. E tudo se resolveu. Os assaltantes trouxeram 10 mortos e 22 feridos, mais três que desapareceram e ficaram por lá. Aos assaltados contaram-se, por estima, 67 mortos.
Monsieur Sambá não vem nas estatísticas, ia só a passar na picada. Livrou-se da gangrena e dá-se por satisfeito.
Jorge Carvalheira
