Saberão as pessoas inteligentes que são inteligentes? É uma questão que me tortura. A razão é simples. A dar-se o caso de as pessoas inteligentes não saberem que o são, todo aquele entendimento acaba por ser um desperdício. E o mundo, esse, prova-se mais mal feito do que já supúnhamos.
Há um outro assunto, parecido, que também não me larga. Saberão as pessoas bonitas que são bonitas? É isso. Pergunto-me sempre se elas, mal rompe o dia, olham o espelho, e suspiram: oh que beleza! Questiono-me sobre se, quando na rua os outros, enlevados, as fixam, elas sabem ao certo do que se trata.
E há uma terceira ocorrência: a de perguntar-me se as pessoas altas sabem que são altas. Pode parecer, este último, um exagero de perplexidade. Mas é para mim uma obsessão quotidiana.
De acordo. Quanto a alturas, podemos presumir nos interessados uma certa noção. As portas, as camas, mesmo os tectos, andam concebidos para servir uma média humana, e não custa supor que alguns mortais reparem nisso, e nem sempre com tranquilidade. Em tais momentos, saberão que são altos. Ou aquilo a que chamamos assim, nós, os médios de corpo. Mas que se passa com os bonitos, quando sozinhos? E com os inteligentes, uma vida inteira?
Diz-se, e a gente lê-o, que a percepção da própria beleza pode, exactamente em indivíduos mais favorecidos, sofrer um desarranjo. Em gente assim, conta-se-nos, surgem problemas de auto-estima, reportando-se mesmo casos graves. E imaginamos, decerto com razão, que, em algumas pessoas muito bonitas, tais problemas sejam gravíssimos. Meu Deus, dirão, porque me fizeste tão bonita? Virgem Santa, suplicarão, faz-me acordar amanhã um poucochinho mais feio, sim? São, todavia, orações com pouca fé no resultado. Nós próprios, pouca esperança poríamos num pedido para, um destes dias, aparecermos por aí mais perfeitos de cara.
E há a questão, tremenda, dos inteligentes. A gente diria que, para eles, seria uma bênção se nada de especial em si descortinassem. Se, em plena inocência, andassem só belamente orientados neste confuso mundo. Sim, esse ignorar da própria inteligência poderia ser-lhes, afinal, uma suprema forma de auto-preservação. Porque, nisto não tenhamos ilusões, se houver problemas próprios deste género de pessoas, esses problemas terão de ser atrozes. E inomináveis. Literalmente inomináveis, já que nós, os mais limitados, nunca para eles arranjaríamos palavras. Mas inomináveis, também, porque, no momento em que o sobredotado pudesse ir dar-lhes um nome, nesse exacto instante perderia a razão. E não nos disseram sempre que a loucura é uma protecção, uma misericórdia, da mente contra si mesma?
Eu não queria – juro que não queria – tirar moral nenhuma desta história. Mas, aí está, pôr travão num raciocínio é coisa que a mediania do meu discernimento não permite. E aqui fico eu, com a moral da história diante de mim, iniludível. Esta: a de termos de ser gratos aos Céus por nos terem feito um bocadinho menos inteligentes do que acharíamos óbvio, um bocadinho menos altos do que julgaríamos prático, um bocadinho menos bonitos do que pensaríamos justo.
É isso. Foi uma indizível sorte termos nascido tal e qual sucedeu: um tudo-nada feiotes, um nadinha para o atarracado e, suma felicidade, um niquinhas lentos de percepção.
O facto é que, com isso, nunca saberemos ao certo o que se passa na mente dos belos, dos altos, dos perspicazes. Nunca saberemos, sequer, se alguma coisa lá se passa. Mas, se problemas lá houver, só hão-de encontrar a nossa mais sincera, mais natural, incompreensão. E assim se terá feito – não é? – alguma justiça.