Sei que é demais pedir a Luís Delgado alguma ponderação nas suas opiniões ou sequer que se dê ao trabalho de ler umas páginas antes de escrever coisas como “pela primeira vez na História, um grupo de radicais afronta, diariamente, o mais poderoso e organizado exército do Médio Oriente”, esquecendo a invasão de 1982.
Mas, ao menos, bem que podia deixar de usar os termos “míssil” e “rocket” como se fossem sinónimos. Não são.
Arquivo da Categoria: Luis Rainha
No more mr. Nice Guy

Depois de semanas de lindas garantias de que o alvo não era o Líbano nem as suas gentes, o exército israelita já fez saber que as infra-estruturas civis daquele país vão agora ser atacadas sem dó nem piedade.
Para quê? Boa pergunta; sobretudo para o israelita Uzi Benziman que encontra paralelos entre a situação presente e o final da Guerra do Yom Kippur, quando o Tsahal ignorou o cessar-fogo aceite por Israel e prolongou uma ofensiva contra o 3.º Exército egípcio. Também então se jogou tudo por tudo numa intensificação final da ofensiva, para que a situação congelada pelo cessar-fogo fosse o mais favorável possível. Para nada, afinal.
Hoje, andam no ar algumas perguntas difíceis: e se Israel não alcança nada de palpável, mesmo depois de causar danos tremendos a toda a nação libanesa? E se o Hezbollah consegue chegar ao fim deste conflito sem sofrer uma derrota clara, mantendo a capacidade de alvejar Israel de dentro do Líbano? Numa zona do mundo onde enfrentar Israel é a melhor prova de coragem cívica que alguém pode ter no currículo, imaginam a popularidade que estes fanáticos xiitas irão conquistar? Sobretudo depois de um ataque em larga escala, patentemente injustificado, contra o Líbano?
Violência

Estranho. Ver como, mesmo na vida mais organizada e ronceira, a violência pode irromper a qualquer momento. Falo da violência física, aquele assunto de punhos esfolados e testas sangrentas, de gestos brutos, inopinados, vindos sabe-se lá de onde. É estranho ver como uma coisa tão feia pode ter um efeito tão revigorante, tão luminoso e redentor. Sabermos que, quando é mesmo preciso, conseguimos atirar-nos para o centro da fogueira, mergulhando de cabeça no caos que mais tememos, nas chamas que sempre evitámos. Estranhos caminhos que seguimos para nos reconciliarmos com o mundo. E connosco.
(Re)Criatividade alada

Todos já ouvimos falar na polémica em torno do anúncio do Ministério da Administração Interna e da Galp, onde é traçado um paralelismo entre as crianças mortas nas nossas estradas e a queda de um simbólico avião carregado de petizes. A TAP reclama, António Costa mantém-se firme, etc.
Falta o melhor.
Graças a um comentário neste blogue, cheguei ao site da World Swim For Malaria, onde jaz um irmão gémeo da mais recente obra-prima da publicidade lusa. Ele há coincidências assombrosas.
Os escudos invisíveis
Surpreendentemente, as Forças Armadas israelitas concluíram pela sua inocência no bombardeamento de Qana. A culpa terá sido do Hezbollah, que usou os residentes do prédio demolido como escudos humanos. E claro que os militares ignoravam a presença de civis ali; caso contrário nunca teriam lançado aquele ataque.
Só não percebo bem qual será o propósito de usar “escudos humanos” sem que o inimigo saiba que eles lá estão. Parece-me coisa pouco eficiente.
Isto além de se saber que as vítimas já estavam naquele prédio havia mais de duas semanas, algo que não deve ter passado despercebido aos omniscientes voos de reconhecimento israelitas. Mas enfim; por este andar, ainda vamos ter o Hezbollah a querer convencer-nos de que nem desconfiava que Haifa estava habitada.
Lavores femininos
Meninas desta nação católica: desejais ter uma éfigie da veneranda Irmã Lúcia a emanar santidade sobre o vosso boudoir? E vós, impenitentes incréus, quereis ter o penetrante olhar da Vidente a velar pelos vossos desvarios, quiçá inscrito num belo tapete de WC?
Rejubilai, pois tendes sorte. O último número da revista “Linhas & Pontos” inclui um prático esquema para criar uma toalha/quadrinho/tapete com um belo retrato da alucinada de Fátima em ponto de cruz. Reparai como até a tecnologia envolvida foi bem seleccionada; se se tratasse de Maomé (longe vá o agouro, que o Jacques Rodrigues não quer manifs à porta), teria de ser ponto de crescente. Ou coisa que o valha.
Vert, la couleur de la saison
Quando às tropelias metafísicas, avarias quotidianas e noticías felinas do costume acrescem reparos à corrente noção de proporcionalidade bélica, uma excursão de Oakeshott ao bar dos “Morangos com Açúcar” e actualidades escaquísticas, o impensável acontece: um dos melhores blogues portugueses fica ainda melhor.
Terroristas pela Democracia
Alguns exilados cubanos de Miami, através da sua mais activa organização, a Fundación Nacional Cubana Americana, já andam a ver se se poupam ao incómodo de uma nova Baía dos Porcos, exortando as Forças Armadas de Cuba a aproveitar a maleita do ditador da ilha.
«Os militares têm a oportunidade de prestar um grande serviço à pátria estabelecendo um governo transitório cívico-militar que ponha fim à ditadura dos irmãos Castro»; «Os homens e mulheres cubanos podem aproveitar esta oportunidade para fazer alguma coisa por Cuba e podem contar com o apoio da Fundação Nacional Cuboamericana». Assim falou Jorge Mas Santos, presidente da FNCA.
Para os mais distraídos, impõe-se uma pequena explicação. Esta agrupamento é o mesmo a que pertencia Luis Posada Carriles, ex-agente da CIA e um dos autores do atentado bombista ao voo 455 da Cubana de Aviación, em 1976. Neste acto de terrorismo, morreram 73 pessoas. Isto sem esquecer as bombas que, em 1997, rebentaram em vários hotéis de Havana; outra obra de associados da FNCA. Apesar de comprovadamente saberem disto, as autoridades americanas continuaram por muitos anos a subsidiar a FNCA, através do National Endowment for Democracy.
Pelo que se vê, nem todo o terrorismo é coisa oriunda dos eixos do mal que por aí pululam. E alguns terroristas, como Orlando Bosch, até podem ser boas pessoas, merecedoras de acolhimento caloroso…
O blogger e o seu duplo: por fim o debate
Mais duas vítimas da guerra: a memória e o juízo
Eduardo Pitta dá um novo passo na escalada rumo ao desvario total: “o ataque de anteontem matou 54. Mais de metade eram crianças. Quando bombistas suicidas se fazem explodir em autocarros nas cidades de Israel não vejo ninguém preocupado com a curva etária dos passageiros estraçalhados. Por que será?”
A memória e o DN garantem-nos que isto, pura e simplesmente é mentira. Por cá e por essa celerada Europa afora. Mas a realidade nunca interessou muito aos fanáticos, pois não?
PS: de acordo com as estatísticas do B’Tselem, talvez exista uma razão para as vítimas israelitas menores de idade terem menos destaque na imprensa do que as palestinianas: as primeiras foram, de 29/9/2000 a 15/7/2006, 119; as segundas 725. Mas, nos dias que correm, falar de “proporcionalidade” também é sinal de anti-semitismo, eu sei.
¿Cuba vencerá?

Ao visitar Cuba, fiquei com o palpite que todo o regime ruiria à concretização de um de dois eventos: o fim do bloqueio americano ou a morte de Castro. A cada aproximação deste último evento, o pessoal de Miami começa a salivar, antecipando talvez uma segunda Baía dos Porcos: desta vez, um regresso em nome do mercado, dos direitos dos espoliados pela revolução castrista, do horrendo rum Bacardi.
Certo é que o sucessor de Fidel deverá, sob pena de arruinar o que de bom entretanto se ganhou por ali, introduzir firmes reformas democráticas e tratar de libertar todos os presos políticos ainda trancafiados. A alternativa poderá ser uma repetição brutal do acontecido na URSS: com a liberdade, veio a entrega da estrutura produtiva ao crime organizado, o crescimento das desigualdades, a insegurança, a fome. Em Cuba, pressente-se uma Guatemala em potência: democrática mas miserável, infestada de esquadrões da morte e outras pragas, incapaz de dar aos mais pobres uma existência minimamente digna. Basta comparar os seus índices de saúde pública com os de Cuba para ter uma noção do que os cubanos se arriscarão a perder, com uma transição selvagem. Pior ainda seria um retorno aos dias de Fulgêncio Batista, quando a ilha não passava de um entreposto e de uma colónia de férias da máfia americana; será este o Eldorado perdido dos exilados de Miami?
PS: Vem-me agora à memória uma conversa que tive em Cienfuegos com um escritor contestatário: ele garantia-me que vivia da “Fé”. Só depois de algumas gargalhadas é que me explicou que se tratava da “Familia en el Exterior”. Na realidade, só quem já se afastou das rotas turísticas cubanas e, por exemplo, comeu bons bifes pelo equivalente a 50 cêntimos é que tem uma boa ideia da tentação sem fim que representam os dólares do vizinho americano…
Entre Cila e Caríbdis, sofrem os do costume

Pacheco Pereira, logo ecoado pela coorte habitual, vem explicar-nos que o uso da palavra “massacre”, a propósito do ataque a Qana, é propagandístico. Por estes dias, também ficámos a saber que mostrar cadáveres de crianças é crime, quiçá até pior do que causá-los.
A reboque, marcha um pelotão variado: dos irrelevantes crónicos aos mais articulados. Estes últimos explicam-nos que “ao contrário do Hezbollah, Israel não faz qualquer ataque deliberado a civis libaneses”. Deliberado. De propósito, portanto. Já tínhamos lido coisas do mesmo jaez a propósito da morte dos observadores da Unifil, apesar dos 10 contactos que estes tiveram com as forças armadas israelitas a queixar-se da proximidade do bombardeamento — para nada. É que Israel não procura a morte de civis; apenas faz pouco para as evitar. (Imagino que a sua grande e única preocupação seja mesmo nunca bombardear nada com cidadãos americanos nas redondezas. Se um dos capacetes azuis “massacrados” fosse yankee, presume-se que a presente ofensiva já teria sido interrompida.)
E este é o ponto-chave desta guerra. Não estamos a testemunhar um conflito civilização-barbárie. É certo que de um lado temos o Islão mais extremista, fonte de obscurantismo, promotor de infindas violações dos direitos humanos, princípio motor de alguns dos movimentos e governos mais pavorosos deste mundo. Mas do outro lado não encontramos a linda e angelical democracia que muitos lobrigam em Israel. Trata-se de um país muito mais próximo de Esparta do que de Atenas; um estado que já se rege por algumas leis abertamente racistas; uma nação convicta da sua superioridade e até da sua comunhão directa com o Altíssimo; eleitores que procuram escolher os governantes mais radicais e belicosos. Só um país paralisado pelo medo e aguilhoado pela arrogância é que poderia desculpar as últimas acções das suas Forças Armadas. Claro que chegará o dia em que o arrependimento será chorado pelas ruas de Tel Aviv; mas sempre tarde demais.
Hoje, para quem defende Israel a outrance, todos os argumentos são válidos. Só haverá “massacre” quando se provar que houve intenção de massacrar, não apenas negligência criminosa; a “proporcionalidade” é uma invenção de cúmplices da Al Qaeda (como se durante anos Israel não tivesse lidado com os lançadores de foguetes a contento, com operações de tropas de elite e bombardeamentos de precisão); o ataque a edifícios cheios de civis é desculpado pelo lançamento prévio de folhetos a exortar os seus habitantes a ir viver para a estrada, a caminho de um campo de refugiados que os possa receber.
Hoje, há quem escolha criteriosamente a versão da história recente em que quer acreditar, elegendo como certa a única timeline que faz preceder o rapto de soldados do Tsahal pelo Hezbollah de um bombardeamento com foguetes a cidades israelitas; tudo para que a resposta posterior pareça mais equilibrada, suponho (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7… é fácil encontrar pistas de que não foi assim, até em dados do min. dos Negócios Estrangeiros de Israel. Não que faça grande diferença). Mas nada há de surpreendente nisto: também andam por aí a querer convencer-nos de que esta maré de violência tem como origem a independência de Israel, em 1948, fazendo de conta que não existia já então uma tremenda bagagem de ódio, terrorismo e massacres (sem aspas) a envenenar tudo e todos por ali.
Se alguém quiser continuar a crer que se trata de um conflito entre inocentes árabes e cruéis israelitas, tudo bem. Se preferirem achar que as bombas com a estrela de David são redentoras e os foguetes são armas de terroristas sem humanidade, idem. Mas creio que já está na hora de abrirmos os olhos para os monstros que se digladiam hoje no Médio Oriente. E vermos que a único partido que urge tomar é o dos inocentes apanhados de permeio.
Uma morte, duas vidas
Ontem, ao ler de relance a capa do “24 Horas”, descobri que morrera, vitimada por um “cancro galopante”, uma “estrela dos Malucos do Riso”. Horas depois, no “Público”, descubro que falecera uma grande actriz e fundadora da Cornucópia, Raquel Maria. “Azar dos diabos”, reflecti, “perdemos duas actrizes num só dia”.
Só ao cair da noite é que percebi que se tratava, afinal, da mesmíssima pessoa.
Quantas biografias caberão no espaço de uma vida? Muitas, de prestarmos atenção aos dias de Lorenzo da Ponte; eu, para mim, já me contentava com uma. Mas está difícil.
Mistério
Porque será que, entre os homens de bom senso e os fanáticos histéricos, são sempre os últimos que obtêm poder?
Como seria se Vasco Graça Moura tivesse um gémeo de esquerda?
«Os direitistas são todos umas bestas que salivam ante a perspectiva de verem mais uma família palestiniana em pedaços. Apoiam Israel só porque o seu mestre, Bush II, assim comanda. Para eles, se um palestiniano reclama pelas horas que passa todos os dias em check-points israelitas, é por certo um terrorista em potência, candidato a evisceração imediata e sem piedade.
O pessoal de direita finge ignorar que o estado israelita foi fundado em massacres como o de Deir Yassin e numa limpeza étnica que ainda hoje mantém centenas de milhares longe das suas terras. Essa malta nojenta vira a cara para não ter de encarar as criminosas acções dos sionistas e dos seus lacaios ao longo dos tempos. Para eles, tudo o que vem de Israel é bom, pelo simples facto de se tratar de uma democracia, mesmo que a sua organização faça lembrar bastante mais Esparta do que Atenas. Ou talvez seja apenas porque é assim que os círculos do pedantismo bem pensante vêem o mundo, entre fumaças de Cohibas e mais uma citação de Oakeshott sacada à pressa da Internet.
A cada edifício civil destruído em Beirute, abrem mais uma garrafa de caro champagne; a cada ambulância pulverizada, gritam novos “vivas” ao poderio angélico e sempre esclarecido do Tsahal.
Se alguém ousa levantar a grimpa, é por certo um pós-soviético, um anti-semita do piorio e um anti-americano com posters de Bin Laden e do WTC destruído a encimar um pequeno santuário dedicado a Estaline.
Claro que não tenho de provar nenhum destes vómitos disfarçados de prosa. Sou poeta e os poetas vivem acima de pormenores como a inteligência, a verosimilhança e o equilíbrio.»
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Das três, duas

A- Israel bombardeou por acidente o posto da ONU em Khiyam, provando asssim que a ideia é mesmo demolir às cegas, numa lógica de destruição e massacre generalizados, tendo já desistido de identificar os tais “bastiões” do Hezbollah.
B- Israel bombardeou propositadamente o posto da ONU em Khiyam, enviando mais uma poderosa mensagem ao mundo: “eis a consideração que nos merecem as vossas tentativas de interferência e os vossos observadores”.
C- Existe uma grande falta de falantes de Inglês nas forças armadas israelitas, pois o bombardeamento ao bunker da Unifil durou horas, tendo os observadores telefonado ao oficial de ligação israelita após a queda de cada uma das 10 primeiras bombas. A seguinte foi fatal.
Yet another guilt trip
Mais um “anti-semita larvar”, desta vez em Israel
Tenho pena de não dispor de tempo para traduzir este artigo de Ze’ev Maoz, professor na Universidade de Tel Aviv. Mas fico feliz por ver que muita gente em Israel ainda não sucumbiu à idiotice do dogma da superioridade moral israelita. Um dia, teremos por cá malta assim.
Recomendo-vos a visita ao “Haaretz” e deixo-vos com duas passagens: «On July 28, 1989, we kidnapped Sheikh Obeid, and on May 12, 1994, we kidnapped Mustafa Dirani, who had captured Ron Arad. Israel held these two people and another 20-odd Lebanese detainees without trial, as “negotiating chips.” That which is permissible to us is, of course, forbidden to Hezbollah.»; «What exactly is the difference between launching Katyushas into civilian population centers in Israel and the Israel Air Force bombing population centers in south Beirut, Tyre, Sidon and Tripoli? The IDF has fired thousands of shells into south Lebanon villages, alleging that Hezbollah men are concealed among the civilian population. Approximately 25 Israeli civilians have been killed as a result of Katyusha missiles to date. The number of dead in Lebanon, the vast majority comprised of civilians who have nothing to do with Hezbollah, is more than 300.» Bravo.
War fever
No “Da Literatura”, Eduardo Pitta prossegue a sua laboriosa campanha contra o anti-semitismo que, de olho clínico em riste, vislumbra a medrar por todo o lado. Esse insidioso vírus cresce pela calada em malta que finge ignorar as atrocidades que Putin vai ordenando na Tchetchénia; prospera em gente, como Eduardo Lourenço, que nada terá dito a propósito do genocídio do Ruanda ou dos primeiros ataques da UPA em Angola (!); floresce, por fim, na néscia manada que ignora olimpicamente a crueldade do blitz alemão sobre Londres e da invasão de Berlim pelos russos (a sério: o homem escreveu mesmo isto).
Tudo para atingir um corolário quase admirável: «argumentar com a soi disant “desproporcionalidade” não deixa de ser uma infantilidade. Insistir nessa tecla é uma forma naïf de dizer o indizível. Podiam assumir de uma vez por todas o anti-semitismo larvar.» Porquê? Não se explica. Mas entende-se: como desde há anos, o número de acusações de anti-semitismo em circulação num dado momento continua a ser um excelente barómetro do comportamento do Estado de Israel.
Noutras paragens, há quem imagine, de espírito dilacerado, uma horda de bandidos sanguinolentos acoitados em Espanha e dedicados a martirizar os pobres portugueses. Nesse caso, «teria ou não o Exército Português direito a internar-se em território espanhol, dar caça aos bandidos e eliminar redutos, arsenais, paióis e instalações utilizadas pelos terroristas?» E logo vem a conclusão triunfante: «Ora, é o que o exército de Israel está a fazer no Líbano. É o direito à resposta, o direito à retaliação; em suma, uma guerra justa.» Quer dizer que as pontes demolidas, os bairros residenciais arrasados, as populações sem água, as ameaças de represálias bárbaras, as carrinhas cheias de civis alvejadas do ar, etc… nada passa de uma sinistra montagem anti-semita: trata-se sim de uma mera questão de paióis e outros “redutos”, tudo tão bem camuflado. (Já agora, respondendo a este senhor, existe um tratado entre Portugal e Espanha a permitir perseguições transfronteiriças, desde que com conta, peso e medida, como é de esperar de nações civilizadas e democráticas. )
Que um colunista prestigiado como Akiva Eldar tenha perguntado «será possível que um estadista sábio mude a sua doutrina por causa de um bando de lançadores de foguetes? (…) Ainda não aprendemos que, na relação entre nós e os nossos vizinhos, a força é o problema, não a solução?» é pormenor de somenos para os cultores do simplismo; que mesmo organizações de direitos humanos israelitas acusem o seu exército de usar civis como escudos (coisa que só os malandros do Hezbollah fazem, como todos sabemos) é-lhes indiferente. Israel tem sempre razão, Israel é sempre moralmente superior, Israel tem o direito divino de esmagar tudo e todos e quem disto duvidar é parvo, anti-semita ou as duas coisas em simultâneo.
O pior é que a tontice revela-se mal contagioso. O infantil arremedo de raciocínio acima descrito foi destacado no Insurgente como “Uma pergunta para os amigos dos terroristas”; estes serão, suponho, malta como Eduardo Lourenço ou qualquer outro mânfio que não se tenha manifestado em tempo certo contra os ataques da UPA. A inteligência, como sempre, é a primeira vítima da guerra.
Same old story

Não é de todo difícil confirmar a minha antipatia de estimação com a Clara Ferreira Alves. Mas até um relógio parado dá as horas precisas duas vezes ao dia. E a hora da “Pluma Caprichosa” quase chegou no passado dia 8 de Julho. Quase; ou, como Graham Greene bem poderia ter dito, “close, but no cigar”.
A nervosa cronista foi desta vez irritada por um documentário sobre Portugal que a CNN resolveu emitir, a propósito da deslumbrante carreira lusa no mundial do chuto na bola. E com razão, se a coisa foi como ela a descreve: “uma charrete, um homem de colete e bota alentejana a tocar um cavalo, uns homens e mulheres rodopiando o vira, ou o corridinho, ou o que quer que seja e seja folclórico, mais o chouriço assado e a taberna, o lenço vermelho e a taroca, o boné e a festa popular.” Os espectadores da CNN terão assim ficado “com uma ideia de Portugal que nos coloca, exactamente, no tempo de Salazar mas… a cores.”
Até aqui, tudo mal. Mas a Pluma descarrila quando chega a altura de encontrar causas para a miopia do documentário. Saca de um preconceito para explicar outro: é americano, só pode ser ignorante. Assim: “O problema da CNN e da sua abordagem em ângulo fechado é o problema típico do império americano no século XXI, ignorância e falta de curiosidade à mistura com ingenuidade e arrogância.”
Será que já ninguém se recorda de uma pérola cinéfila de nome “Lisbon Story”, realizada por Wim Wenders, produzida com ajuda do omnipresente Paulo Branco e paga com dinheiro da Lisboa 94? O que ali se via de Lisboa poderia ter sido filmado bem antes de Salazar: eléctricos decrépitos, terraços sobre bairros de má nota, tralha derrelicta a cair pelos cantos. Com menos de 50 anos, só alguns prédios que teimaram em intrometer-se nos enquadramentos artísticos da obra. Como banda sonora, o neo-faduncho suburbano-depressivo dos Madredeus. Não foi preciso, naquela instância, encomendar a vinda de americanos para nos encontrarmos de tal forma retratados: um país melancólico, pobre, velho e infeliz.
Talvez não seja só má vontade de quem quer pintar frescos às três pancadas com a pobre pátria tuga como modelo. Talvez sejamos mesmo assim. Se pensamos em Espanha, imaginamos flamenco, largadas de touros, tomatinas, arquitectura arrojada, progresso, gente colorida em busca da praça e das tapas mais próximas. De Portugal, entrevemos lampejos de tascas escuras onde se geme o fado, destinos tuberculosos, saudade a escorrer a sua peçonha por calçadas às ondas.
Imagino que a CNN e Wim Wenders se tenham esforçado bastante para encontrar pontos de vista simpáticos sobre esta doença crónica disfarçada de país. Não é obra fácil.
