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Isto de ver a oposição a fazer oposição à oposição com censuras

A estupidez instalou-se. Tudo começou com a possibilidade de uma moção de censura ao Governo apresentada pelo PCP, prerrogativa constitucional inquestionável, claro, mas politicamente sem saída; um Partido sem qualquer hipótese de se apresentar sozinho ou acompanhado como alternativa de Governo. Nessa altura, o BE afastou o cenário de idêntica iniciativa, parecia que caminhava por terras de razoabilidade, mas eis que encontra uma frase de ataque ao PS para justificar a insuportável circunstância de ficar atrás do PCP: em tom ameaçador, Louçã avisou que ou temos confiança, prerrogativa do Governo, ou teremos a sua moção de censura. Ei-lo.

O cidadão vê a contradição, pode até ter muitas considerações a fazer sobre o estado do país, mas não vê certamente no BE, um apanha-casos que vive, precisamente, da confortável irresponsabilidade de não ser nem vir a ser poder, uma alternativa.

Como, com quem e com que programa, santo deus?

Chamava-se Augusta Duarte Martinho, aquela solidão

Há uma mulher morta no chão de uma cozinha. Com ela, morto o seu cão, o único que a testemunhou, se bem ouvi a história. Há esta mulher morta no chão da sua casa. Está ali, morta há nove anos, naquele lugar que, em Direito, desde os Romanos, também é “domicílio”, o local, precisamente, onde presumivelmente a pessoa se encontra.  Nessa vertente, o domicílico que anda para aí citado na feira da queima das responsabilidades, tem a ver com a nossa projecção num lugar em termos de vontade: quero fazer disto a minha casa.

É então natural que esta história nos recorde, antes do Direito, às vezes tão infernal, a metáfora aguda da solidão que ela encerra.

Artigo 34º da Constituição, artigo 177º do CPP, pois, posso passar por lá, mas uma mulher posta no chão do espaço que foi a sua casa, por nove anos, morta, velada por um cão, se bem entendi, sem que a quebra das suas rotinas gerasse um pontapé na porta?

Que vizinhanças as nossas, que comunidades estas, que olhares matinais e que olhares à chegada aos domicílios permitem desaparecimentos por nove anos? E que vida era aquela, a da mulher, assim como agora se diz, da mulher, essa pessoa de nome Augusta, que não viu, felizmente, que o silêncio que põe fim à vida prolongou-se por um ano sob uma luz a ser cortada por falta de pagamento e por mais oito, porque há artigos e normas e conceitos mal interpretados.

O primo, Armando, foi 13 vezes ao Tribunal. A Vizinha, Aida Martins, foi a primeira a participar o desaparecimento.

Nove anos nada. É ler isto. As normas, os conceitos e as interpretações criminosas. Entre agentes da autoridade e vizinhos que se lembrassem da estranheza de alguém eclipsar, pena que não tenha ocorrido a um qualquer cidadão arrombar a porta: chama-se acção directa.

Agora, apurar responsabilidades. Apurar.

A solidão é tanta que não me ocorre uma banda sonora decente que me acalme. A solidão é tanta também porque uma multidão andou a interpretar o Direito no sentido daquela solidão.

IVG: os bois pelos nomes.

Diz a notícia que pelo menos 5.000 assinaturas foram recolhidas numa petição que será entregue quarta-feira ao presidente da Assembleia da República com o objectivo de alterar a regulamentação da lei do aborto, em vigor há quatro anos.

O que quer quem promove isto? Simples: “medidas legislativas” no sentido de “rever, para já, a regulamentação da prática do aborto, por forma a saber se o consentimento foi realmente informado e a garantir planos de apoio alternativos ao aborto”.

Estas pessoas que falam de aborto têm uma agenda muito alargada, são a Federação Portuguesa pela Vida,  são estes e querem mais. Querem o seu Credo nas nossas leis.

Quando se chega daqui e ouve-se o “ganhou e pronto” a irritação é insuportável

Uma semana. Uma semana aqui. Não quero falar dessa semana, porque, de resto, não foi uma semana. Sabe bem disso quem viaja para onde os lugares não são em nada os nossos lugares, nem nas horas, nem nos cântigos que obrigam ao silenciamento com beleza da música daquele bar, um bar com um nome qualquer, não interessa nada, cachimbo de água, muitas horas, o ponto é não sermos nós ali até ali tomar conta de nós e por isso a tal da semana, ou das 7 noites um dia programas em português e em euros, ser a eternidade, e nós, ou quem lá esteja, ou quem lá estivesse, tu que não foste, quem lá se encontra e cabe debaixo do nosso casaco nas empatias das eternidades das viagens, ser eterno; a eternidade então é isso, estar ali, dizer agora esta pedra, agora este pão, agora esta brisa, agora estes gestos tradutores, agora estes beijos para sempre uma semana.

Não vou escrever uma linha sobre aquela semana longínqua, eterna, acabada, um lugar sem telemóvel, perdi-o na véspera de embarcar para ali, não entendia as palavras na televisão, entendi Egipto, entendi essas notícias, mas fiz-me à eternidade, às vezes puxada por uma mola, num mail da única pessoa que sabia que eu podia receber essa coisa sem saber que era a única pessoa que sabia que eu podia receber essa coisa.

Voltar dali onde não há Europa – eles sabem o que eu quero dizer – e chegar aqui e dar com o comunicado do PR é  regressar correndo à Portela, donde os meus agradecimentos ao Valupi.

Depois a conversa do Presidente que ganhou, a esquerda que engula, ganhou, como diz JPP, tomem lá, mas isto é algum broche?

Se os analistas tivessem um pingo de seriedade, esses que andam sempre a falar da espuma das coisas, que não podemos falar da superfície do que acontece e tal, poderiam parar e dizer assim: toda a gente sabe que  Cavaco ganhou, valeu? Ele teve, dentro do número de votantes a considerar, o número de votos válidos suficientes, valeu? Mas isso não invalida o facto altamente preocupante e desligitimador, do ponto de vista político e social, de Cavaco ter tido os votos necessários dentro de um universo de votantes reduzidíssimo.

Cavaco teve a maioria da metade dos eleitores, falando claro. Dá para perceber a maçada e a falta de tranquilidade? Dá para perceber que qualquer decisão do PR é ajuizada por todos, inclusivamente pela metade que se absteve? Percebe o PR que o seu mandato não é um passeio?

É assim tão difícil perceber por que razão Cavaco entende que somos gente fraca de cabeça?

Cavaco, por ti, podendo, rumava à Portela.

A propósito do dia internacional do Holocausto

Estava a ver as terríveis imagens do post da Palmira, bem documentadas por quem perguntou em título de livro “Se isto é um homem?”, quando me lembrei do que sempre me lembra o mais terrífico acontecimento que consigo encontrar na minha memória histórica. Li muita coisa sobre o Nazismo, li relatos históricos e li o que fica nos homens que ficaram; uma literatura que nos diz da possibilidade humana, da impossibilidade dela, da dor por dentro, do sabor da comida que não chega, do sentir exacto da carne dos pés a saltarem na neve dos campos de concentração, da lógica da sobrevivência que mata muitas conivências impossíveis.

Homens por acaso vivos, para sempre mortos, mas com força para dizerem de si num poema, numa prosa, numa música.

Lemos, vemos, soletramos, ouvimos, mas não somos o outro, é impossível, há sempre uma distância que nos rouba o tu enquanto faz de nós analistas. Mas fazemos o que é possível e lemos e vemos e soletramos e ouvimos.

E também choramos.

Há um momento em que nos perguntamos duas coisas: como foi possível? Seria possível outra vez?

É a esta segunda pergunta que a generalidade dos Autores, como Primo Levi, citado pela Palmira, responde que sim. Daí a preocupação de não esquecer ou, para usar o conceito utilíssimo de José Gil, de inscrição.

Não devemos esquecer. Nunca. E devemos saber da história toda e depois das histórias que nos chegarem, como a de uma menina muito pequena levada para um campo e, ainda criança, 4 anos depois, na libertação, ao amparar a queda de seu pai emocionado sobre o seu corpo magrinho, ouviu um soldado alemão perguntar-lhe: – é teu pai? Disse que sim, a chorar de alegria, e uma bala atravessou a cabeça do pai.

Não esquecer, contar, uma e outra vez. Repudiar as comparações absurdas com regimes detestáveis, comparações assentes no quem mais matou.

Aqui há um elemento pouco discutido: nunca existiu até hoje um sistema político todo ele cientificamente apoiado num sistema jurídico de perfeição matemática com o fito de aniquilar uma etnia inteira. Isto nunca aconteceu.

Como é que foi possível? Diria isto: lei a lei. O sistema poderia ser lei, adaptação, lei, adaptação. Hitler chega ao poder e aprova centenas e centenas de leis e de regulamentos. É como as malhas de uma camisola, um sistema em construção, sabiamente, tijolo a tijolo, sempre com eles na exclusão a cada lei ditada. As pessoas que vivem como destinatárias desta chuva miudinha de leis e de regulamentos, aderem aos mesmos, ao que os mesmos querem dizer, isto é: eles não são pessoas.

Eis o horror de um sistema jurídico construído para a desumanização total de um grupo, com eficácia, o grupo que certo dia começa a sair das cidades em filas, com bandas nos braços, sabe-se lá para onde.

Um dia soube-se, desde logo pelos milhares de cartas dos soldados alemães enviados para as famílias, mas já seria de espantar que fossem para parte incerta. Acontece que já não eram pessoas, nem para os seus vizinhos, nem para os guardas que os tiraram dos seus lugares nem para quem materialmente os dizimou.

Penso que este horror não se repetirá por causa das especificidades que apontei.

Mas há sempre monstruosidades que podem acontecer.

E mesmo que assim não fosse, ainda que houvesse a garantia de nem mais uma perseguição na história, porque aconteceu, não esquecer, contar, uma e outra vez, ler, ver, soletrar, ouvir, fazendo o possível para chegar ao outro, lendo, vendo, soletrando.

E também chorando

Da importância de se estar entre aqueles que deram um sinal à sociedade e ao mundo com a aprovação do CPMS

No Uganda, a prática de actos homossexuais é crime e punida até 14 anos de prisão. Toda a gente se lembra das discussões em torno de uma eventual introdução da pena de morte.

Hoje lemos esta monstruosa notícia: um activista dos direitos homossexuais no Uganda, que fora identificado como gay por um jornal local, foi assassinado em casa, perto de Kampala, num crime que se suspeita ter motivos homofóbicos.

E o prémio para o aproveitamento ideológico e religioso mais sagaz e mais cabrão da morte de Carlos Castro vai para: João César das Neves

Por favor, leiam o tiroteio desde o início:

Quando surgem as tragédias, inevitáveis em estilos de vida desviantes, aparecem logo alcateias de comentadores para assegurar que o sucedido nada tem a ver com a perversão ou a opção de género, porque coisas dessas acontecem em todo o lado. Como os cortesãos de Andersen, nem se dão conta do seu ridículo”.

Casamentos entre pessoas do mesmo sexo e os postos consulares: falsas questões

A confusão começa com um título magnífico: casamento entre pessoas do mesmo sexo só vão ser permitidos em território nacional. O título é tão magnífico como enganador. E a vários níveis. Vem, como se espera, Paulo Côrte-Real, tentar perceber a questão , invocando, desde logo, a Constituição portuguesa.

Que história é esta de terem sido suspensos os CPMS em vários Consulados até parecer do CC da PGR?

A história começa com ideias feitas sobre o que são Consulados, quais as suas competências, quais os seus limites legais e qual a natureza das convenções internacionais que os regem. Ideias terrivelmente mal feias.

Na verdade, não há qualquer problema com os CPMS. Vou repetir de outra forma: do ponto de vista jurídico, a questão não se prende apenas com os CPMS.

E por quê?

Em primeiro lugar, é preciso compreender que as Embaixadas e os Consulados não são território português. É um mito dizer-se que o são. Mão não são. Gozam, sim, de um conjunto de privilégios e de imunidades, mas não são território português. Por isso, quando, nos termos da Convenção sobre Relações Consulares de 1963, é função do Cônsul português “agir na qualidade de notário do conservador do registo civil e exercer funções similares (..), essa função é desempenhada “desde que não contrariem as leis ou os regulamentos do Estado receptor“.

Assim, os países da Europa que consagram internamente o CPMS não o celebram nos seus postos consulares em países que não consagram o CPMS.

Voltando ao título da notícia, não é verdade que só seja possível celebrar um CPMS em Portugal. Nos postos consulares com sede em países que o consagram, naturalmente celebram-se os ditos casamentos.

Por outro lado, a questão é consequência de uma outra bem mais geral: é que trata-se de reconhecer a territorialidade da lei. A lei aplicável é a do Estado receptor. Na Alemanha, por exemplo, um Consulado português não pode celebrar um casamento entre pessoas de sexo diferente se uma das pessoas tiver nacionalidade alemã. Este é um exemplo de como o problema não são os CPMS, mas o que prescreva a lei local para o casamento, seja ele qual for.

Entendo que o Paulo invoque a Constituição portuguesa, mas tal invocação parte do pressuposto de que os Consulados aplicam lei portuguesa numa situação destas. Como ficou explicado, não aplicam, donde não valer a pena dizer que as convenções internacionais são infraconstitucionais, até porque a que citei e a convenção sobre relações diplomáticas de 1968, são já direito internacional geral, pelo que supraconstitucionais.

É este quadro normativo que explica que em Portugal não sejam praticados actos, por parte de determinadas Embaixadas, que contrariam as nossas lei.

De qualquer maneira, diria que foi bom ter surgido a questão, porque os equívocos e as dúvidas são grandes. Já se disse na televisão que as Embaixadas são como os aviões da TAP e já se falou na invocação da ordem pública, esquecendo o pequeno pormenor de essa invocação ser prerrogativa do Estado receptor.

Com isto, não afirmo que não tenho as minhas dúvidas. Pelo contrário, parece-me esencial que seja pedido um parecer ao CC da PGR. Quem sabe há uma via que me está a escapar. Por outro lado, penso que se pode agir, diplomaticamente, de forma diferente conforme a legislação existente em cada país: se é seguro que podem ser celebrados CPMS em países que o consagram, talvez se possa auscultar aqueles que, não o consagrando, têm uma legislação protectora das uniões de pessoas do mesmo sexo, bem como, por que não, os demais.

Rapaziada alegre: essa direita de espuma.

Leio por aí uma direita excitada, rapazes e raparigas com os lábios a tremer, talvez já entregues a uns serões com a política deles, a dos restaurantes dos costumes, excitados, excitados, tesão no ar, porque parece que Cavaco vai ganhar e se calhar logo à primeira volta. A rapaziada não está na cama da suas piadas superficiais – esse seu modo de ser – por causa da vitória de Cavaco em si mesmo considerada ou por entender com substância (ui, palavra difícil) que o homem é importante naquele cargo. Nada disso. Leio por aí a geração jovem de direita, que tem coisas para nos dizer, numa frase, em registo de humor, não uma vez, duas, ou umas quantas intervaladas com alguma coisa de jeito, mas um humor sequencial, o qual se transformou num espelho, o espelho dessa rapaziada pateta que sabe que Cavaco foi criminoso como PR e o pior Chefe de Estado que tivemos a exercer as suas competências. Essa rapaziada canta, ulula, cria mais piadas, bebe, não por uma qualquer visão (ui, palavra difícil) do cargo de PR, mas porque enfiou seja onde for a estratégia segundo a qual se Cavaco ganhar poderão afirmar que  Sócrates – esse alvo de toda a calúnia com o seu patrocínio, muitas vezes lucrativo –  terá de descer de um sítio alto onde eles o imaginam.

Estas crianças que têm assim uns valores de família que basicamente servem para a selecção natural do outro estão super-hiper-espectacularmente contentes com a metralhadora de textos que está em produção acerca da perda de legitimidade do PM e mais um par de botas. E com o país?

É a política puramente assente na estratégia, a política superficial, sem causas, as causas que justificam a tal da política, sem a qual nada se tenta, nada se faz. É gente que não entende que uma pessoa que vote normalmente no PS não vote Alegre, por melhor que fosse, estrategicamente, fazê-lo, mas há gente que sabe que o voto foi uma conquista demorada, suada, para cada um, pessoal e intransmissível.

Quem acredita na necessidade de ir ao fundo das coisas, sabe que uma eventual vitória de Cavaco não diz nada sobre Sócrates.  De memória, diria que tivemos aí uns 10 PR de cor política diferente do PM. E então? Sei isto, sei que Alegre é um mau candidato, sei que a esquerda está pulverizada por maus candidatos, sei que Cavaco é um tuga eis como com a forma te engano, sei que pouquíssimas pessoas votam nestas eleições a pensar nas legislativas. Trata-se de evitar Cavaco ou de evitar Alegre. Sei que Sócrates ganhou a Manuela Ferreira Leite contra tanto, mas tanto do que foi acusado, dito, apontado, demonstrado. Sobretudo contra uma tal de verdade. Sei, enfim, porque não se deve fazer jogos nisto, que se Pedro Passos Coelho ganhar as próximas eleições legislativas, em nada ficará a dever o feito a Cavaco. Nessa hipótese, os factores são e serão outros.

Continua, no entanto, meio mundo no mesmo tom da mesquinhez, o mesmo que leva Eanes, com imparcialidade histórica,  a dizer que seria interessante que Mário Soares tivesse participado na campanha. Interessante? Ver o homem deixar de ser pessoa?

Seria bom menos estratégia à flor da pele de cada um, falo das pessoas, dos maluquinhos coleccionadores de frases e de coisas muita giras.

Seria bom que a rapaziada alegre um dia entrasse em casa, está sempre à porta, mas nunca o fará e hoje sai uma rodada de imperiais.

Alguém pergunta isto a Cavaco?

Já estou farta de esperar que Cavaco se pronuncie sobre a farsa das escutas. Cavaco não dirá uma palavra sobre o mais torpe ataque ao Governo dirigido por quem deve ser um árbitro, uma referência suprapartidária, um moderador que ajude na busca de soluções para crises.Uma vez que Cavaco tem demonstrado ser o mestre da cooperação estratégica com o PSD, contra o Governo, não espero, não espero mais que o homem confirme o crime cometido. Cavaco foi o agente de uma “publicidade e calúnia”, se quiserem, com a agravante de ter usado meios de comunicação social para o efeito. É caso para se pensar em condenar o homem com pena de prisão até dois anos. Mas enfim, Cavaco não vai confirmar o crime, vai continuar a ser Cavaco.

Tenho visto aqui e ali os candidatos em campanha e, tendo uma opinião sobre cada um, tenho uma certeza sobre Cavaco: estou perante um vazio de pessoa, alguém sem consistência ideológica, sendo enganador o que possa dizer nesse sentido, porque é tudo espuma; estou perante uma pessoa que quando fala espontaneamente, sem um papelito de apoio, revela o pior de si, melhor, revela-se; cai o pano e lá está o deserto, o homem que não entende nada de nada, apenas palavras, falem-lhe de pobreza, com olhar de pobre, e Cavaco faz-se ao pobre dizendo da pensão da “mulher” (vamos esquecer os anos de serviço da senhora), uma quantia tão pequena que “ela depende de mim”, diz, “sou eu que a sustento”, afirma, “mas como ela anda ao meu lado e não atrás de mim, merece que eu a ajude”.

Este horror repete-se quando Cavaco fala no desemprego, no crescimento da economia, na estabilidade política. São palavras, sempre palavras, palavras para um homem que é um ovo.

De que fala Cavaco? De que fala esta sombra que acena de longe às pessoas? Por mais convencida que esteja de que Cavaco se dedicou a minar o Governo PS, por mais que me lembre que Cavaco, ao contrário de Sampaio, que ajudava a resolver crises, tinha o gostinho de intervir publicamente alinhado com as críticas da oposição, tenho perguntas para fazer. Cavaco fazia canalhices como audiências públicas com contestários das leis exactamente quando elas estavam em discussão e aprovação na AR.

Era esse o momento em que Sampaio sabia parar, numa postura imparcial e de magistratura de influência útil.  

A difícil aprovação da lei das finanças locais, por exemplo, convivia com a audiência, nesse momento, da Associação Nacional de Municípios. Venham, venham, dizia cavaco.

Já falei de muita coisa e tendo isso em conta e o vazio que vou vendo e ouvindo em Cavaco, o que o qualifica como perigoso, gostava que alguém, se já desistente das escutas, perguntasse o seguinte a um homem que pode vir a exercer novo mandato:

– o que entende por cooperação estratégica (recordar os vetos absurdos, as mensagens de pavor ao país, etc)?;

– em que situações dissolveria o parlamento? (recordar que esse acto do PR é sancionado por nós, que estamos cá, eventualmente para lhe explicar, pelo voto, que fez mal);

– qual a lição que retira das diferentes dissoluções ocorridas no passado, em que o PR aparece como exercendo o seu poder com adequação e sendo o seu acto validado pelo voto das legislativas seguintes?

– quais entende serem os requisitos constitucionais de demissão do Governo? Sabe que esse poder só foi exercido uma vez, em 1978, antes da revisão constitucional de 1982 (Foi o Eanes que demitiu o Governo de Mário Soares PS/CDS) ? Por que será?

– concretizando melhor a pergunta anterior: para demitir o Governo o requisito é o irregular funcionamento das instituições democráticas?

– o que faria se Sócrates pedisse a demissão para ir ocupar o cargo de Presidente da Comissão Europeia e o PS apresentasse, com maioria parlamentar, uma alternativa de Governo?

– como deve garantir o regular funcionamento das instituições?

–  o que entende por magistratura de influência?

– como acha que exerceu e deve exercer os poderes de veto, de fiscalização de leis, e de auscultação da sociedade?

– não podemos mesmo falar sobre as escutas? E se não gravarmos a resposta?

Que confusão: queres ver que Alegre também ameaça dissolver o Parlamento?

Mas só se a direita chegar ao poder. Diz o candidato Alegre que, nesse caso, não vai haver revisão constitucional nenhuma, aquela proposta pelo PSD. Ela não passará!

What?

É sabido – e deve sê-lo por um candidato a Belém – que o PR não poder recusar a promulgação de uma lei de revisão constitucional (artigo 283/3 da CRP). Daqui decorre a impossibilidade de veto, político ou por inconstitucionalidade.

A revisão constitucional está concebida para ser dada total centralidade no procedimento à AR.

 Manuel Alegre pode mesmo não saber isto ou sabe muito mais do que alguns imaginam?

Talvez Manuel Alegre esteja tão carregado de espírito de cruzada contra a proposta de revisão do PSD (de facto, péssima), que grita não passarás sabendo que o artigo 283/3 da CRP não impede a o uso da faculdade de dissolução da AR.

Pode dissolver a AR com o propósito específico de querer saber o que nós pensamos das alterações propostas.

Pois é.

Berliscado em parte numa sociedade civil forte

Esta lei foi obra e graça obra do inigualável Berlusconi e tem sido a responsável por o democrata respirar sossegadamente perante acusações graves, muito graves, pendentes sobre a sua sempre renovada cabecinha.

Hoje, o Tribunal Constitucional italiano, numa decisão de 12-3, deu uma chapada e não duas no diploma. 

Para ser sucinta, passou-se de uma situação em que o senhor estava automaticamente impedido de ser levado a julgamento para uma outra em que a existência de impedimento será avaliada caso a caso por cada Tribunal.

A Itália está entre os meus três países. Impressiona-me a certeza que tenho de que, agora mesmo, lendo os jornais, milhões de italianos pensarão durante três segundos que a decisão é melhor do que nada, ou coisa que o valha, regressando às suas vidas encolhendo os ombros e absolutamente nas tintas para o poder político.

E as vidas correm.

Independência dos magistrados ou dependência dos magistrados?

A independência dos magistrados, em todos os sentidos, é uma das condições de existência de uma democracia material.

Munidos deste conceito elementar, fomos confrontados com a notícia de que todos os funcionários públicos terão cortes nos seus salários, o que muita gente lamenta, mas entende, em face das circunstâncias. É uma medida necessária, dir-se-á, mas, evidentemente, dura para muita gente.

Há, no entanto, uma classe que preocupa alguns de forma acrescida . Por isso lemos que o PSD vai chumbar cortes nos salários dos magistrados.

Por que é que se anuncia a protecção excepcional daqueles que menos sofrerão com estas medidas? Porque cortar o salário de um funcionário dos correios não ameaça o poder, ou a fome dele, ou a expectativa do seu exercício, mas cortar os salários dos magistrados “pode comprometer a independência destes profissionais”, justificação que deve ser entendida ao contrário.

Dos estudos que tenho na memória, recordo-me que os magistrados portugueses, quando analisamos o seu vencimento (no fim de carreira) em comparação como o salário médio nacional, ficam à frente de países do terceiro mundo, como a Bélgica, a Finlândia,  a Noruega, a França, a Suécia,  a Holanda, ou a Alemanha.

É uma classe bem paga, o que tem a ver com a função que exerce.

Sabemos, também, que os magistrados não estão num feudo acima da lei, antes estando sujeitos, precisamente, à lei e a nada mais do que a lei.

Se a situação do país exige cortes salariais que atingem toda a função pública, a que propósito é que os magistrados devem ser poupados?

Ninguém compra a conversa da santa independência dos juízes, porque, absolutizando o princípio, nunca, jamais, em tempo algum, poderia discutir-se a sua remuneração ou questões singelas como a tributação do subsídio de residência ou a pertinência do mesmo em casos que não exigem uma deslocação.

Quem luta para que os cortes salariais atinjam todos mas não os magistrados não está preocupado com  independências, está preocupado com utilidades.

Tem-se medo, precisamente, da independência dos magistrados. E o medo é de quem não a tem, certo?

As pessoas e as suas causas: erros, preconceitos e divergências cúmplices

Ontem, ouvi esta entrevista feita, entre outros, por Pedro Mexia ao Miguel Vale de Almeida. Saliento, entre os vários entrevistadores, Pedro Mexia, já que foram afirmações do próprio e o diálogo delas decorrentes que me levaram a escrever um texto que tenho há tempos na cabeça.

A entrevista e as respostas dadas dão pano para mangas para apontar três factores recorrentes nestes temas: um erro histórico, um preconceito e uma atitude.

Em primeiro lugar, há em algumas pessoas a falsa ideia de que as certas causas, como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo (CPMS), não têm necessariamente paternidade na esquerda, antes devendo ser olhadas como “causas transversais”, causas que podem ser perspectivadas como mais um passo na conquista vagarosa dos chamados direitos liberais.

Pareceu-me que esta ideia não causou qualquer interrogação.

Com o devido respeito, as conquistas de direitos têm paternidade ideológica e lutas como a que se travou pelo CPMS são, na sua essência, lutas e causas de esquerda. Não se pode falar numa “causa transversal”, simplesmente porque ela não o é, nem mesmo porque aparecem uns quantos da direita a excepcionarem o seu mundo ideológico, a visão do mundo que os rodeia.

Podemos falar, sim, de comportamentos transversais, no sentido em que, evidentemente, a homossexualidade atravessa todos os quadrantes políticos. Mas ter por evidente que os comportamentos são transversais deve levar-nos a explicar de seguida que a reivindicação de um estatuto jurídico de igualdade, de visibilidade, brota de quem pertence a um específico universo político, ideológico e cultural. Este é, portanto, o erro que se traduz numa tentativa de validar nas convicções de todos uma conquista de esquerda, para que ela passe a pertencer, geneticamente, a todo o espectro jurídico.

É natural, por exemplo, que com o tempo pessoas e instituições que combateram o CPMS mudem de ideias. Mas se isso acontecer, o CPMS não deixa de ser património da esquerda.

Não se trata, nesta exposição, de distribuir pontos, mas de não procurar consensos e discursos amáveis à custa de uma leitura da realidade que não a honra.

Explicar que o CPMS pode ser visto como mais um passo nas conquistas do liberalismo é deixar no silêncio a circunstância de nunca ter existido liberalismo em Portugal e de o liberalismo normativo que tivemos, através de todas as constituições oitocentistas, caracterizar-se, em matéria de direitos, pela negação da universalidade. Conforme o texto, de 1822 a 1911, a titularidade de direitos dependia de factores como a classe e o género. O mesmo se passou noutros países.

Em suma, o CPMS é tanto uma conquista da esquerda e da sua visão do mundo quanto o é, por exemplo, a IVG.

Outro erro em que se cai na entrevista, com o devido respeito, é falar-se em anticatolicismo. Não consigo perceber o que é que se pretende significar com este conceito tão pobre, associado à luta pelo CPMS. Pedro Mexia fala nisto, por exemplo, quando se refere à minha atitude, e à da Fernanda Câncio, nomeadamente num debate anterior à aprovação do CPMS.

Falando por mim, posso apenas chegar à conclusão de que ainda vivemos num país no qual se uma pessoa é sentada à frente de um padre e contraria as posições do padre, padece de anticatolicismo. É automático.

Na verdade, é-me absolutamente indiferente o que a Igreja defenda em matéria de costumes: é o que é, conheço o que defende, e é um problema dos fiéis. Isso não me impede de criticar a interferência da Igreja no poder, por exemplo, quando assim entenda que é o caso, ou de, colocada num debate em que o opositor é um padre, contrariar, como não pode deixar de ser, as suas ideias. Mas já percebi, e esta entrevista veio fortalecer a minha convicção, que basta contrariar a Igreja ou alguém da Igreja para se ser anticatólico. Resta saber se o padre perante quem eu debato é um feroz anti-ateu.

Finalmente, nestes temas que desencadeiam uma luta de e por convicções, vem ao de cima como nunca, sob forma de mera análise do debatido, uma atitude sem cura à vista, o machismo. Trata-se de um sexismo difícil de suportar com postura amena, que ressalta em mais um programa de televisão e que é amigo do país dos bons costumes: mulheres que tenham uma intervenção forte na forma como se expressam são sempre, mas sempre, vistas por certa gente como não cordiais, ou antipáticas ou pouco conciliadoras, para não dizer histéricas.

Não vale a pena tentar explicar a calma de uns em contraposição à agitação de outras com a experiência na Academia (como o Miguel tentou), digo eu que tenho 15 anos dela.

A questão é que se uma mulher é insultada aos gritos e com uivos, numa estratégia para a calar, estando sentada em frente a uma plateia que levanta cartazes com definições criminosas de “homossexualismo” e ouvindo de tudo, desde os homossexuais serem anormais a os mesmos serem comparáveis com o que for, se essa mulher levanta a voz, se aponta ao dedo à plateia cobarde que uiva cada vez que ela fala, essa mulher é histérica, anticatólica, claro, pouco harmoniosa e coisa má para os “indecisos”, usando as palavras de Pedro Mexia.

Se um homem comparar homossexuais a animais, disser erros de direito propositadamente para confundir as pessoas, gritar quando isso lhe é apontado, acusar a mulher de ter mentido quanto à sua formação ou se, sendo padre, disser com voz de veludo que até tem amigos homossexuais, mas eles ou um pai ter relações com um filho é a mesma coisa, esse homem é incisivo, activo, participativo, tudo, porque a forma está correcta e é homem.

Evidentemente, se for explicado ao padre que considerar que alguém cometeu um erro é diferente de considerar que alguém é um erro, temos histérica e anticatólica.

 Este eterno duplo padrão de exame da intervenção feminina e masculina não se esgota no que foi dito numa entrevista; a entrevista serviu apenas de mote para estas palavras. Por outro lado, claro que falo por mim, quando recordo que participei em muitos outros debates televisivos antes e após o Prós e Contras, tendo ouvido por graça perguntarem-me se nesses ia drogada, já que não levantei a voz nem apontei o dedo a ninguém. Na substância, não disse nada de diferente, mas não senti necessidade de reacção, com inevitável dose de emocionalidade, em debates sem um ambiente de hostilidade, de agressão e de insulto anormal, como o que encontrara no famoso Prós e Contras.

Nada disto exclui que perante uma mesma agressão uma mulher possa reagir com calma olímpica e um homem com violência. Do que se trata é de apontar a qualificação de ríspida, histérica ou anticatólica que uma mulher merece sempre que tem um comportamento que, se fosse de um homem, seria qualificado de frontal, incisivo ou de corajoso.

Para além dos exemplos, esta entrevista fez-me pensar mais uma vez na existência de uma cultura de divergências cúmplices.

As pessoas pertencem a mundos diferentes, por um lado, defendem causas opostas, mas falam umas com as outras numa espécie de código de classe. É por isso que os restaurantes estão cheios de mesas com pessoas que negam as outras que bebem do mesmo vinho. Assim garante-se a tal classe, e com isso tudo o que der jeito e que daí venha, desde logo não se ser um excluído de circuitos de sedes de poder. O código de acesso a tudo isto é um código tacitamente acordado de não-agressão.

O que move uma pessoa livre quando abraça uma causa, antes do interesse pessoal na mesma, é a convicção de que reside ali um princípio de justiça.

Gosto de pessoas movidas pela convicção, que vão à luta contra quem quer que seja, que lançam mão do direito à indignação quando são vítimas de agressão e de insulto, que preferem a substância de cada um de nós a uma forma, seja ela qual for, com o conteúdo que for, mas obediente à lógica das divergências cúmplices; gosto de pessoas que usam razão e emoção, pessoas sem medo dos rótulos, que não pensam duas vezes antes de contrariar um adversário à conta do anti que lhes vai ser pregado às costas, gosto de pessoas que debatem ideias, que pagam o preço que for por isso.

Se essas pessoas forem mulheres, sei que estão condenadas à já referida dupla valoração.

Em suma, ser livre tem um preço.

E ser mulher também.