Formalmente, o PR vetou politicamente o diploma que cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil, alterando o Código de Registo Civil.
Formalmente, foi o PR que ofendeu o grupo de pessoas mais discriminadas da sociedade portuguesa, assim, na linha do seu horroroso historial de vetos e de mensagens tresloucadas à que é, para Cavaco, a sua pátria.
Formalmente, apenas formalmente, foi o PR que, olhando para uma das alterações legislativas mais urgentes que conheço, usou do seu esquema habitual perante certos diplomas, que se traduz em vetar sem fazer qualquer reparo à substância do decreto.
Já demonstrei noutro texto que Cavaco tem tido uma presidência miserável, também no que toca ao uso dos vetos e das mensagens ao país.
O veto de ontem, no entanto, não foi obra do PR, mas do candidato Cavaco Silva, como que em desvio de poder: o homem quer ganhar as eleições, sabe que há uma franja do eleitorado que não lhe perdoa a promulgação do CPMS, nem mesmo com a mensagem histérica associada à promulgação, sabe que esse eleitorado é composto por gente que vê o que seja de diferente e desata a correr.
Cavaco tem em conta a ignorância dos que ouvem a expressão mudança de sexo e que se atiram para o chão a rezar, porque entendem que deve ser uma coisa do tipo vou ao cinema, está esgotado, vou mudar de sexo, recordando Ricardo Araújo Pereira. Esta franja do eleitorado que pensa estar perante uma causa fracturante é gente que pode votar em Cavaco, pelo que lá vimos ontem o candidato a explicar que vetou porque um monte de especialistas lhe disse que o diploma tinha falhas técnicas e tal.
Seria caso para dizer que acabou a crise, a crise, essa malandra que obrigou cavaco a promulgar o CPMS.
Acontece que o candidato presidencial sabe que há décadas que pessoas passam pelo violentíssimo processo de mudança de sexo, perfeitamente regulado, consensual, decorrente do elementar direito à identidade pessoal, tendo, depois, de recorrer a tribunais para que aquilo que são, aquilo que as define, tenha adequada tradução na documentação pessoal. Comecei a ler sentenças que exigem as alterações no registo civil necessárias com 19 anos.
É absolutamente insuportável ler cada uma das histórias pessoais por detrás das decisões judiciais. Mas nada disto interessa ao candidato, homem sem pinga de humanidade ou sentido de justiça, que cospe para um microfone um diz que disse acerca de deficiências técnicas do diploma que chega com décadas de atraso.
Cavaco sabe que se há diploma com deficiências jurídicas é o actual Código de Registo Civil, esse sim, diploma deficiente e que não concretiza o direito fundamental à identidade pessoal. É à conta dessa não concretização que as pessoas mais discriminadas da sociedade recorrem a tribunais, com custos financeiros e psicológicos, para pedir (pedir!) que os seus documentos correspondam à sua verdade.
Paciência, azar, maçador, que importa a Cavaco se, à custa do adiamento, de mais um adiamento, da resolução de problemas vitais de um conjunto de pessoas, pode ganhar uns papelinhos nas urnas?
Que importa ao candidato tudo isto, que importa ao candidato que uma matéria que é consensual apareça como melindrosa?
Nada. É mesmo isso que ele quer.
Temos “homem”!