A notícia é esta: Segurança Social descobre mais de 67 mil baixas fraudulentas. Uma pessoa pergunta-se imediatamente o que é uma baixa fraudulenta. Quem é o infractor? O doente mentiroso? O médico cúmplice e portanto ambos?
Quando a Segurança Social faz um esforço fiscalizador, e chega a um resultado destes, está em causa, claro, durante um determinado período de tempo, apurar quem se candidatou, recebeu ou estava a receber indevidamente o subsídio de doença.
Num universo gigantesco de pessoas, haverá de tudo: quem está ou esteve efectivamente doente mas, por efeito da própria situação de doença, pura e simplesmente não preencheu todos os requisitos legais para poder receber o subsídio (sim, isto acontece); quem se fez passar por doente e levou o médico a acreditar em si; e casos haverá em que doente e médico “combinam” uma situação de baixa, esteja o candidato bem de saúde, esteja ele mal, mas não ao ponto de se justificar uma baixa médica (nunca tive conhecimento de uma situação destas).
Pedro Nunes vem dizer que os médicos de família não são polícias dos doentes.
Na verdade, é este o ponto que me interessa, porque pouco discutido, os médicos de família, concretamente os médicos dos centros de saúde empurrados para o papel de polícias. Mas não estou a pensar em policiamento dos doentes, estou a pensar em policiamento de médicos: temos polícias forçados dos médicos que exerçam, legitimamente, a sua actividade fora do sistema público de saúde (é usual ouvir-se que são os que trabalham “no Privado”).
Acontece que os médicos que diagnosticarem, nas suas clínicas ou hospitais privados, uma situação de doença que justifique uma baixa, não estão habilitados para isso emitir um certificado.
Esta situação coloca um problema com duas perspectivas evidentes: por um lado, o médico “do Privado” está qualificado pelo Estado para exercer medicina, logo para diagnosticar maleitas; por outro lado, o doente, o cidadão, deve ter a liberdade de escolha no que toca ao médico que o observa.
Estas liberdades estão comprometidas. Exemplificando, imagine-se que eu, tal como milhares de pessoas, sou seguida, há anos, regularmente, por um médico da especialidade y. Numa consulta é-me diagnosticada uma doença e o meu médico entende que eu tenho de parar de trabalhar, para fazer uma série de tratamentos. Se ele me passar uma baixa, com aquela vinheta, ela de nada serve. Não posso entregar o atestado à minha entidade patronal e rumar aos tratamentos, porque o Estado não tem por fiáveis as declarações sobre o meu estado de saúde produzidas por um médico “do privado”.
É neste condicionamento do exercício da profissão de médico e na escolha de quem eu quero que me trate que acontece a tal fiscalização policial dos médicos privados pelos públicos. Por isso, parece-me que já que se fala em polícias, devia falar-se do que se passa na vida concreta das pessoas, ou de tantas pessoas, as tais que estão numa situação de doença diagnosticada pelo médico que escolheram, em quem confiam, mas que têm de rumar a um centro de saúde, pedindo ao médico que aí esteja que acredite no médico que lá não está, e que assim emita o tão almejado Certificado de Incapacidade Temporária por Estado de Doença, para que não nos falhe 66% da remuneração, se a doença for coisa para 90 dias, por exemplo.
Não sei qual é o melhor sistema; sei que vale a pena pensar nisto.
o Estado não tem por fiáveis as declarações sobre o meu estado de saúde produzidas por um médico
“do privado”que depende de mim para o seu salário/que é amigo pessoal, ou da família/cuja recusa do meu pedido de baixa pode causar constrangimentos e prejuízo pessoal e/ou profissional.Acho que passa também por aqui.
Assim até parece que as baixas fraudulentas têm todas origem no privado…
O Pedro Nunes está muito bem, quando explica que o médico de família tem de confiar nas queixas do doente, e a partir daí tentar obter…(não não é a baixa) o diagnóstico. Como se fosse isso que está em causa. É com conversas destas que se vê logo se a classe está comprometida.
“Não é possível pensar, e eu digo-o há muitos anos, que o médico de família, que tem obrigação de tratar o doente, é ao mesmo tempo polícia do doente e tem que desconfiar daquilo que o doente lhe diz. Portanto, se o doente diz que lhe dói, que está cansado, que não consegue trabalhar, o médico tem que acreditar nisso e pedir os exames necessários para fazer um diagnóstico de situação”,
Pedro Nunes
O argumento é pertinente, especialmente na parte do médico que policia médico. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado a arquitecto (duma câmara) que “verifica” projecto do colega (“do privado”) e por aí fora. No entanto, sempre que ouço alguém invocar “liberdade de escolha” seja de hospital, seja de escola fico “de pé atrás” (chauvinismo ideológico?). Mas então, e continuando o seu caso, o Estado Social não serve para providenciar o acto médico mas já serve para subsidiar o seu resultado? Bem sei que, especialmente “nas especialidades” (excepto oncologia) é difícil encontrar resposta ATEMPADA “no público”, mas ainda assim faço-me entender?
A minha dúvida:
A emissão do Certificado de Incapacidade Temporária por Estado de Doença é um acto médico ou um acto administrativo?
“Passar” uma baixa é o mesmo que receitar um antibiótico?
Não sei se percebi bem, mas parece-me que estamos a falar de baixas fraudulentas por falta de comprovativo legal. Porque razão são aceites e processados como legais, nas entidades públicas e privadas, atestados médicos emitidos por médicos do sector privado se não são válidos para efeito de baixas por motivo de doença? Desconhecimento da lei? Incompetência?
É meu entendimento que primeiro temos que cumprir a lei. E que todas as leis podem e devem ser melhoradas pelos órgãos competentes.
gordo e esperto, não?!
⅀,
o que me espanta é que a coisa seja legal (?!?). Estúpida a lei que favorece espertos destes.
rrc,
os comprovativos só são legais porque foram passados pelos médicos do SNS, mas não correspondem a casos que justifiquem baixa médica. Trata-se de férias alargadas pagas com os milhões dos contribuintes, com a aprovação “legal” dos clínicos.
edie
obrigado. interiorizei, erradamente, que muitas das baixas “fraudulentas” resultavam de atestados passados por médicos não pertencentes ao SNS, daí a ilegalidade. desconhecia
ainda que só os médicos do SNS podem passar comprovativos, como bem explica o post.
bom , e quanta gente está doente ou altamente debilitada e como não pode receber só 66% do ordenado , faz , sei lá , 50% do trabalho e recebe o salário inteiro ? eu conheço alguns.
e os médicos do trabalho passam visto bom a qualquer um…
o balanço final deve ser ela por ela : os que prejudicam o estado e os que prejudicam o patrão.
Vega9000,
Quem paga o salário ao médico do SNS? Não é tb você? No SNS o médico deixa de ser amigo do amigo ou da família do amigo? E quantos são os médicos que em Portugal acumulam actividade pública e privada? Já reparou que um mesmo médico pode passar o certificado de incapacidade temporária às 10h da manhã, p ex, e não o pode fazer às 14h?
QualquerUm,
Sim, a emissão do certificado de incapacidade temporária por estado de doença é um acto médico, desde logo porque implica um diagnóstico. Não é o mesmo que receitar um antibiótico na exacta medida em que receitar um antibiótico também não é mesmo que fazer uma pequena cirurgia, p ex, e ambos são actos médicos.
O que escreve é muito assertivo, mas passa ao lado do essencial. É que o sistema está todo errado e nenhum governo consegue meter na ordem este assunto devido à força corporativa da classe médica.
Este sistema de público e privado não faz nenhum sentido, sendo que os médicos do público que não trabalhem em exclusividade fazem do público um biscate.
Vou dar-lhe um exemplo que me passou pelas mãos numa inspecção que fiz no âmbito das funções que desempenhei como quadro dirigente da administração pública, na altura em função de inspecção.
Ao fim de duas semanas no serviço que estava a inspeccionar fazia-me confusão um senhor que só aparecia à hora do almoço.
Vim a saber que era médico dos quadros daquele organismo, mas, no entanto, apenas aparecia à quinta-feira para integrar as juntas de saúde e… todos os dias para almoçar (à sua, à minha, e à conta de todos nós).
Também vim a saber que nem sequer dava consultas, que apenas integrava as juntas médicas. No entanto, dentro do próprio horário de serviço, dava consultas como médico avençado per capita para os serviços de saúde do mesmo organismo que lhe pagava o ordenado…!
Mais, fazendo-me passar como um mero doente (e também por parvo, já agora, porque à conta desta e de outras bem mais graves, bati com a porta), dizia, telefonei para os locais onde dava consulta durante o horário de trabalho, e num caso estava mesmo a operar numa clínica privada, mas, repito, dentro do horário de trabalho do organismo onde apenas ida todos os dias para almoçar, além da quinta-feira.
Mais (e para terminar, que esta conversa mete nojo e faz-me mal) tinha uma viatura disponível bem como respectivo motorista, viatura essa que foi desviada do serviço para a qual devia estar afectada e onde até lhe foi instalado ar condicionado para o senhor doutor não ter calor.
Não vou ser estúpido e cair na generalização, mas não ando muito longe da verdade com este merdoso exemplo para demonstrar como funciona o sistema de saúde.
Também não vou cair na tentação de ser bufo-blogosférico e entrar em pormenores (tanta história que tinha para contar, e que ‘contei’ nos relatórios, que é o local próprio…).
Mas o certo que o tal médico lá continua a papar almoços, todos os dias, e também à quinta-feira. E eu fui parar à ‘residência’ da Ana Matos Pires…
Certo, ou é preciso fazer um boneco…?
deixe-me só acrescentar, que eu já me vou embora, prometo :)
é que «eu fui parar à ‘residência’ da Ana Matos Pires…»…
mas à minha custa, praticamente todos os meses, com uma renda de 70,00€ por consulta.
isto apesar de descontar bem acima dum salário mínimo por mês de descontos obrigatórios como trabalhador por conta de outrém (agora, entretanto, precoce e ‘compulsivamente’ aposentado) para pagar os almoços do tal doutor, o carro e motorista e que não lhe são devidos…
e sabe por que é à minha custa?
porque, antes, estava a ser acompanhado por um médico biscateiro do público e que me despachava a comprimidos (e tinha razão porque lhe gabo a paciência pelo tempo que me aturou).