A confusão começa com um título magnífico: casamento entre pessoas do mesmo sexo só vão ser permitidos em território nacional. O título é tão magnífico como enganador. E a vários níveis. Vem, como se espera, Paulo Côrte-Real, tentar perceber a questão , invocando, desde logo, a Constituição portuguesa.
Que história é esta de terem sido suspensos os CPMS em vários Consulados até parecer do CC da PGR?
A história começa com ideias feitas sobre o que são Consulados, quais as suas competências, quais os seus limites legais e qual a natureza das convenções internacionais que os regem. Ideias terrivelmente mal feias.
Na verdade, não há qualquer problema com os CPMS. Vou repetir de outra forma: do ponto de vista jurídico, a questão não se prende apenas com os CPMS.
E por quê?
Em primeiro lugar, é preciso compreender que as Embaixadas e os Consulados não são território português. É um mito dizer-se que o são. Mão não são. Gozam, sim, de um conjunto de privilégios e de imunidades, mas não são território português. Por isso, quando, nos termos da Convenção sobre Relações Consulares de 1963, é função do Cônsul português “agir na qualidade de notário do conservador do registo civil e exercer funções similares (..), essa função é desempenhada “desde que não contrariem as leis ou os regulamentos do Estado receptor“.
Assim, os países da Europa que consagram internamente o CPMS não o celebram nos seus postos consulares em países que não consagram o CPMS.
Voltando ao título da notícia, não é verdade que só seja possível celebrar um CPMS em Portugal. Nos postos consulares com sede em países que o consagram, naturalmente celebram-se os ditos casamentos.
Por outro lado, a questão é consequência de uma outra bem mais geral: é que trata-se de reconhecer a territorialidade da lei. A lei aplicável é a do Estado receptor. Na Alemanha, por exemplo, um Consulado português não pode celebrar um casamento entre pessoas de sexo diferente se uma das pessoas tiver nacionalidade alemã. Este é um exemplo de como o problema não são os CPMS, mas o que prescreva a lei local para o casamento, seja ele qual for.
Entendo que o Paulo invoque a Constituição portuguesa, mas tal invocação parte do pressuposto de que os Consulados aplicam lei portuguesa numa situação destas. Como ficou explicado, não aplicam, donde não valer a pena dizer que as convenções internacionais são infraconstitucionais, até porque a que citei e a convenção sobre relações diplomáticas de 1968, são já direito internacional geral, pelo que supraconstitucionais.
É este quadro normativo que explica que em Portugal não sejam praticados actos, por parte de determinadas Embaixadas, que contrariam as nossas lei.
De qualquer maneira, diria que foi bom ter surgido a questão, porque os equívocos e as dúvidas são grandes. Já se disse na televisão que as Embaixadas são como os aviões da TAP e já se falou na invocação da ordem pública, esquecendo o pequeno pormenor de essa invocação ser prerrogativa do Estado receptor.
Com isto, não afirmo que não tenho as minhas dúvidas. Pelo contrário, parece-me esencial que seja pedido um parecer ao CC da PGR. Quem sabe há uma via que me está a escapar. Por outro lado, penso que se pode agir, diplomaticamente, de forma diferente conforme a legislação existente em cada país: se é seguro que podem ser celebrados CPMS em países que o consagram, talvez se possa auscultar aqueles que, não o consagrando, têm uma legislação protectora das uniões de pessoas do mesmo sexo, bem como, por que não, os demais.
(Isabel, dá uma (re)vista de olhos porque escaparam-te uns detalhes na ortografia.)
Quanto à questão fulcral da posta abstenho-me por falta de arcaboiço…
:)
Por favor, um civilista, de preferência com competências em direito internacional privado, reponha ai um pouco de clareza. Não é uma questão de “territorialidade” da lei (ou então o artigo 51 paragrafo 2 do Codigo Civil não quereria dizer nada*), quanto muito uma questão (pratica) de reconhecimento dos efeitos do casamento pelo Estado onde residem os cônjuges.
Cabe também referir que, tanto quanto percebo, na grande maioria dos casos, os serviços consulares não celebram propriamente o casamento, mas limitam-se a transcrever o casamento celebrado pelas autoridades do pais para que ele tenha efeitos também em Portugal… Ora, nesses casos, por hipotese, o casamento so pode cumprir os requisitos do pais onde foi celebrado…
* = não confundir a territorialidade com a questão dos efeitos do casamento português num pais estrangeiro, nem com a questão de saber até que ponto é que o direito português consagra o principio “locus regit actum” no caso do casamento… São questões distintas. São Ferrer Correia que me acuda !
joão Viegas
a confusão é totalmente sua. eu falo de territorialidade naquele sentido que vem ganhando campo desde o século XIX para estas questões, para este efeito.
a sua confusão adensa-se: estamos a falar dos casamentos celebrados nos consulados portugueses, percebeu? Sim.Celebrados por agentes diplomáticos e consulares portugueses Esses. Sim. Esses são lá realizados, mas tem de se respeitar a lei do território, está a ver? Leu a palavrita “território”?
mas quem está a confindir o quê com os efeitos do casamento português no estrangeiro??? a que propósito vem esse assunto? levante a pestana, sim?
Hum. Só por curiosidade, um CPMS celebrado, e válido, em Portugal é reconhecido no resto da União Europeia (caso, por exemplo, um dos cônjuges decida ir trabalhar para outro pais da UE, como é seu direito)? Ou a situação é semelhante aos EUA, onde o casamento celebrado num estado não é reconhecido no outro?
desculpe, mas a questão sobre a qual escrevo já é complicada o suficiente. se me desculpar, fico-me pelo tema agora em discussão na imprensa e em alguns blogues, sob pena de ser a confusão total. de qualquer maneira, é bom informar que nós, quando se levanta um problema, usamos a expressão CPMS – eu sou a primeira a fazê-lo, simplifica. mas o nosso código civil consagra apenas um tipo de casamento:
“Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas
que pretendem constituir família mediante uma plena
comunhão de vida, nos termos das disposições deste
Código”. (1577)
OK, Isabel, não tem nada que desculpar. Fica para a próxima.
Muito bem, a Isabel dá forte e feio na rapaziada.
Quanto ao art. 51 o “pode” não é o “deve”.
O “pode” deve ser lido como “pode, se”.
É assim Isabel?
OK, portanto no 2 do artigo 51 do Codigo Civil, deve entender-se “pode desde que a celebração respeite a lei do Estado sobre o territorio do qual é celebrado” é isso ? Tem a certeza que é assim ? Nesse caso quer dizer que o direito português (a jurisprudência ? outras disposições do codigo ?) consagra o principio “locus regit actum” em matéria de casamento…
Quanto ao resto, desculpe mas, salvo melhor informado, a questão é mesmo a de saber qual é a eficacia do casamento perante os dois ordenamentos em causa. Pode perfeitamente suceder que dois portugueses celebrem, fora do territorio nacional, um casamento valido à luz da lei portuguesa (que sera a lei pessoal para os tribunais portugueses), mas que a lei do Estado sobre o territorio do qual foi celebrado (no consulado) não lhe reconheça eficacia, por exemplo por entender que é contra as suas regras de ordem publica.
Addenda :
Admito perfeitamente que possa estar a fazer confusão, porque não fui ver a questão, mas o seu ponto de partida parece-me estar errado : é obvio que os consulados (ou os agentes diplomaticos) que celebram o casamento em virtude do artigo 51 par. 2 o fazem aplicando a lei portuguesa (apesar de estarem fora do territorio). podem, para além disso, estar obrigados a aplicar TAMBEM, a lei do territorio, sendo que esta obrigação pode basear-se na lei portuguesa (mas não vejo nada que diga isto no tal artigo 51), ou em convenção internacional que vincule o Estado português.
Caso contrario, a disposição estaria claramente a interefrir numa matéria da competência do Estado estrangeiro (definição das entidades competentes para celebrar o casamento) e então sim estariamos em plena extraterritorialidade… Parece-me que o fim do paragrafo em causa (51 par. 2) e a referência ao artigo 1.599 demonstram isso mesmo : trata-se do artigo 1.599 do Codigo Português, e não da lei “do territorio”…
Ou estarei hoje especialmente cansado ?
não há confusão. artigo 51 CC, ok. temos casamentos celebrados em portugal por agentes diplomáticos estrangeiros e casamentos celebrados no estrangeiro entre 2 portugueses ou entre um português e um estrangeiro por agentes diplomáticos portugueses. mas agora têm de conjugar isto com a convenção de viena, ok? esta, que é de 1963, dá essa competência aos agentes consulares portugueses mas COM RESPEITO PELA LEI DO ESTADO RECEPTOR. é só isto. não é o CC português que diz quais os limites de actuação dos cônsules portugueses. é o direito internacional. este manda respeitar a lei do estado receptor. assim, um estado que tenha, na sua ordem jurídica, casamentos polígamos, não os pode celebrar, no seu consulado em portugal, porque a lei portuguesa não os permite.
OK. Questão de interpretação da Convenção de Viena, portanto, e julgo que se pode presumir que a convenção não obriga ao pleno respeito de todos os trâmites e condições previstos na lei do Estado sobre o territorio do qual se celebra o casamento (até porque so muito excepcionalmente essa lei tera previsto a possibilidade de o casamento ser celebrado por agentes diplomaticos ou consulares de outro Estado…), mas apenas às regras de ordem publica.
Assim sendo, a questão levantada não é assim tão estupida…
O que me chocou no seu post foi a ideia de que as autoridades consulares aplicam a lei do Estado sobre o territorio do qual se situam (” A lei aplicável é a do Estado receptor”). Que a devam respeitar é uma coisa (pelos vistos é o que diz a convenção), que a apliquem é outra. Os agentes consulares portugueses aplicam a lei portuguesa, que tem vocação a ser a lei pessoal nas situações em causa, pelo menos perante os tribunais portugueses. E fazem-no fora do territorio português, sem que isso implique nenhuma “extra-territorialidade”. No Estado em causa, o que eles fazem so tera relevância na estrita medida em que isso fôr admitido pelas regras internas desse Estado.
Como dizia R. Ago, ninguém pode perceber direito internacional publico se não começar por compreender direito internacional privado…
Mas o que percebo de outros posts (por exemplo no Da Literatura) é que a lei sobre o CPMS prevê ela propria a questão (com uma norma que se deve considerar lei especial em relação ao artigo 51 CC ?). Portanto o problema, tanto quanto percebo, é de existir uma possivel contradição entre esta norma legal e a tal regra da convenção de Viena.
Aguardo mais informações, mas continuo com as mais sérias duvidas. A norma que v. citou da convenção de 1963 não me parece necessariamente dever ser interpretada como um impedimento. Afinal, quando as autoridades consulares celebram um casamento entre portugueses, não estão necessariamente a conferir-lhe eficacia fora do sistema português, pelo que não se me afigura obvio que estejam a violar a lei do Estado do territorio…
a ver se nos entendemos
quando digo “a lei que se aplica” é no sentido da lei que prevalece. portanto: um consulado português vai celebrar um casamento de acordo com o código civil tuga. esse casamento não é permitido pela lei epanhola. prevalece a lei espanhola e não se celebra o casamento. por quê? por causa da convenção de viena. noutros posts tem sido citada uma “lei” que não é uma lei, é um despacho interpretativo do Instituto dos Registos e Notariado que veio dizer assim “É permitida a celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo em Portugal e perante os agentes diplomáticos e consulares portugueses em país estrangeiro, mesmo que ambos os nubentes ou um deles seja nacional de Estado que não admita este tipo e casamentos”. Trata-se de um acto administrativo agora sem efeito. Aguardemos pelo parecer da PGR
Cara Isabel,
No “Da literatura” escreve-se o seguinte “A lei portuguesa é clara: «É permitida a celebração de casamentos entre pessoas do mesmo sexo em Portugal e perante os agentes diplomáticos e consulares portugueses em país estrangeiro, mesmo que ambos os nubentes ou um deles seja nacional de Estado que não admita este tipo e casamentos.»”.
O que v. diz é que afinal este texto não esta na lei, mas num despacho interpretativo ?
Se assim fôr, então a questão deve ser tratada à luz do artigo 51.2, ou da convenção de Viena se se entender que ela contém uma norma contraria de valor superior à lei.
Para mim, continua a não ser claro que a convenção de Viena contenha uma norma contraria ao artigo 51.2 (ou à norma citada pelo Pitta, se constar da lei)… Mas isto so indo ver o texto da convenção, o que não tive pachorra para fazer. Como disse acima, o texto que v. cita não me parece suficiente para considerarmos que existe contrariedade entre a lei portuguesa e a convenção…
Não tenho duvidas que o parecer do PGR vai permitir aclarar a questão.
Desculpe, o meu comentario foi publicado antes de eu reler. Afinal o texto citado no Da literatura é o mesmo que v. cita. Torna-se portanto obvio que ele apresentou como sendo “a lei” o que não tem nada a ver. Ele constuma ser mais rigoroso…