Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

A gravíssima crise do Aspirina B vista por um franciú

Toda a gente diz que o “meio intelectual”, onde se excomungam à força os virtuosos da reclassificação e desclassificação, apreciação e depreciação, é o mais encantatório de todos. Os profissionais do exagero vão buscar ao poder supremo do Verbo a capacidade sempre renovada de transfigurar o amigo e desfigurar o adversário. Os alucinados que se embriagam com generalizações ligam ainda menos que os outros aos factos, números, objectos, procedimentos, na sua neutra e muito pouco concludente materialidade. Nós, os encantadores do ramerrame quotidiano, na nossa função de mitómanos públicos, somos os delegados das pessoas morais e ficções úteis – Deus, a Pátria, a Revolução, o Rei, o Ocidente, os Direitos do Homem, a Esquerda, a Direita, etc. As lutas pelo domínio, nesta câmara fechada e sonorizada, manifestam-se através de guerras semânticas, com lista de anátemas e devoluções ao remetente, sem outra validação possível além dos decibéis e da superficialidade. Por isso se pode fazer um grande título de jornal a propósito de uma discussão acerca de nada. E com razão: os debaters, em condições de irresponsabilidade óptimas (ruído contra ruído na falta de experiência crucial) podem contar com o nosso prazer feiticeiro de tomar as palavras pelas coisas. É o que mais se ouve em todos os fóruns: a positividade adormece e a polémica desperta. E, no entanto, é impossível atribuir qualquer monopólio aos “agitadores de serviço”, o génio do vazio é o bem da espécie.

Régis Debray, O Fogo Sagrado, (trad. port.) AMBAR, 2005, p. 325

Da saborosa arte de ser português

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Nunca falha. Ontem, de novo me sucedeu. Mas nunca aprendo. E, pior, nunca me conformo. Que se passou? Produzi aqui um elogio, coisa de nada, a certa figura pública. E imediatamente se destaparam os poços do azedume. Tudo indica que só a afirmação da mais irremediável inanidade do visado teria mantido o ambiente sereno, conversável.

Como sempre, nunca chegamos – eu nunca chego – a saber a razão. Ou ela pertence a uma ciência infusa que me foi negada, ou é parte já democratizada da opinião pública. Não dispondo de uma nem de outra, não tenho meios de relativizar, de compreender sequer, mais essa nacional catástrofe. Se não é o fim do mundo, estamos perto. Concretizemos.

Disse eu que Miguel Sousa Tavares escreveu umas coisas com piada. Tive o cuidado de passar por cima dos romances, indo directo ao cronista e ao contista. Baldado esforço. É que, segundo a quase totalidade dos comentadores, nada se aproveita no senhor. Eu perceberia se isto fosse o Pipi. Mas não é. É um blogue lido por gente da classe média alta (que também lia o Pipi, mas não dominava na paisagem) e até fez uns estudos.

Não sei que fama tem o autor por aí. Nunca falei sobre ele com ninguém, nunca lhe falei a ele, e apenas o vi de passagem, se meia hora de TV se chama ver. E, contudo, eu sei que ele é (quando quer, mas ele quer muitas vezes) um dos fulanos que melhor dominam este amado idioma. E que escreve umas coisas com tino, e com piada, que às vezes me irritam, mas respeitam o meu discernimento. Isto me basta. Disto já estou grato. Mas sou um caso raro, estranhíssimo, se calhar suspeito.

Vou deixar de elogiar os meus contemporâneos. Não chateio e andaremos sempre todos em paz, estupidamente em paz. E felizes, sim pá. Estúpidos de felizes.

Um último Rodriguinho (1)

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Já nenhum êxito de Hollywood dispensa os lucros do merchandising. Agora, é o oscarizado Brokeback Mountain que dá origem a uma linha de educativos brinquedos. Começando pelo dócil cavalo Bottom, imprescindível companheiro de folguedos dos cóbois modernos.

(1) Uma pequena graça à la maniére de RMD.

Adeus

Vou abandonar o Aspirina. Este projecto vivia muito da capacidade do Luís nos juntar e motivar, fazendo com que a nossa diversidade criasse uma riqueza que, bem agitada, produzia um blog com muitos sentidos. Os textos do Luís davam as linhas melódicas, eu cá fazia de desajeitado contraponto, outros, como o João Pedro, enriqueciam-no com uma inteligência sempre diferente. O desamor do Luís pelo Aspirina retirou grande parte do prazer de escrever aqui. No entanto, ficou o vício. Acho difícil dizer adeus aos blogs, só consigo dizer: até já, aqui ou em qualquer outro ponto do ciber-espaço.

Enxotar as aves necrófagas

Só um esclarecimento, não vá alguém pensar que os vampiritos do costume desta vez até acertaram uma. Não. Se não “me reconheço” (raio de chavão que fui desenterrar…) no Aspirina actual, isso nada tem de censura ao meu amigo Valupi — aqui, a dissidência é visita bem-vinda. Tem sim a ver com o predomínio esmagador de posts como este, este, este e até este.
O meu projecto inicial para este blogue passava por combinar alguma reflexão politizada com intervenções mais intimistas, centradas em objectos artísticos, ou mesmo em torno de pequenos exercícios de humor ou ficções. Quiseram as correntes da vida empurrar o Aspirina B para outro lado. Hoje, ocasiões há em que ele surge quase como porta-panfletos, como veículo para proclamações várias, sem grande hipótese de servir de catalisador para discussões que me interessem. Por sentir essa tendência, já o João Pedro da Costa nos abandonou; e tenho eu também alguma dificuldade em continuar a considerar esta a “minha” casa. O que não vai impedir a sua continuação, em busca de outros caminhos e de outros estilos.
Já agora, pela centésima e provavelmente derradeira vez: não sou “bloquista”. Vai daí, e por muito que isto custe à pequenina imaginação do AAA, a minha saída não representa nenhuma “crise” no tal “bloquismo”. Folgo, no entanto, em constatar que o Aspirina, apesar do “gritante vazio de ideias” e do seu “estado de degradação”, continua a ser mais lido do que “O Insurgente”. Isso, para quem idolatra de tal forma a presciência do “mercado”, deveria encerrar importantes lições de humildade. Mas é muito mais fácil dar lições aos outros, não é, AAA?

Bombas publicitárias

Segundo o Público de hoje (ver Cultura), Margarida Rebelo Pinto e o seu editor, a Oficina do Livro, tentarão judicialmente impedir a publicação de Couves & Alforrecas, o livro (editado pela Objecto Cardíaco) em que João Pedro George estuda a escrita da autora.

Não bastando já o bem que João Pedro George vem fazendo aos nossos estudos literários (a Estilística foi sendo abandonada por uma faculdade de letras crescentemente anémica e medrosa da literatura), ainda por cima se tenta, com recurso a tribunais, impedir que o seu trabalho atinja um maior público.

Nada (a não ser isto) contra a Oficina do Livro. Ela vem pondo cá fora excelentes coisas, como o Miguel Sousa Tavares (sobretudo o contista e cronista). Mas que uma bela bomba publicitária se arrisca a privar-nos de um belo estudo literário, não sobre dúvida.

[Com um obrigado à Margarida P.]

Sinistro quem?

Só para o caso de algum leitor tomar a mudez geral dos sócios do Aspirina como uma espécie de aquiescência passiva, tenho de proclamar o seguinte: não vejo grandes vislumbre de razão ou de sentido neste post ou neste, ambos lavrados pelo meu acetilsalicílico parceiro Valupi. Nada de dramático; apenas formas divergentes de espreitar a realidade, o que nem sequer obriga à invenção de novas alternativas ao quinto postulado de Euclides.
Vejamos: primeiro, Valupi descobre-se no meio de uma sociedade embrutecida e bovina, fascinada por “ricalhaços” e “futebol”, que, de todo, “não speaka marxês”. De caminho, ainda estranha que os partidos de esquerda não estejam sempre no poder, como seria natural se as suas propostas fosse assim tão bondosas para os “trabalhadores”. O facto de o PS até ser governo é sacudido com um fácil e mui conveniente envio deste partido para o “centro”, como o provaria à saciedade o facto de ter alcançado a maioria absoluta. Ora isto representa uma confusão homérica entre centro sociológico e centro político, levando-nos de escantilhão para um lindo corolário: o PSD e o PS são, uma vez que já ambos foram maioritários, rigorosamente iguais. Passa-se que não são. Podem ser parecidos, pode o PS não ser “de esquerda” para o PCP, mas é inegável que está à esquerda do PSD, se aceitarmos que estas definições ainda retêm algum resquício de significado.
Ora o facto de a nossa sociedade não “speakar marxês” não tem de ser visto como um problema de “passar a mensagem” nem sequer como mais uma demonstração da falta que faz uma vanguarda esclarecida. Basta relembrar Marcuse para vermos como o marxismo não congelou no Jurássico e até já demonstrou, há décadas, compreender bem esta “sociedade unidimensional”(1) que agora Valupi descobriu. Pois — e atenção que esta pode ser revelação espantosa para muitos — a Esquerda não se limita a berrar os seus vómitos “anti-América” e “anti-autoridade” (semelhante uso deste chavão chega a ser cómico, em dias em que alguma direita pugna pela quase anulação do papel regulador do Estado…); também consegue pensar o mundo em que vive. Ignorá-lo é de um simplismo a toda a prova.

No post seguinte, o alvo é outro mas a caçadeira continua munida de chumbo grosso e orientada por desfocadíssima pontaria. Partir do princípio que um acervo de episódios e tendências negativas chega para definir por atacado toda uma “civilização” ou uma religião seria risível se não fosse algo sinistro.
Ora deixem-me dar uma ligeira volta ao valupiano texto, mantendo no entanto intactos todos os delicados maquinismos da sua lógica:
“O caso do presidente convertido ao fundamentalismo mais alucinado, e já antes notório por não comutar penas de morte, é uma nítida radiografia da sociologia do Ocidente. Estes evangelistas enlouquecidos são aliciadores de fanáticos, numa lógica puramente religiosa. Nos países cristãos onde não há outras fontes de informação e de formação, ou onde elas são totalmente subservientes, o sentido constrói-se coercivamente a partir das patologias instituídas como cultura religiosa. O resultado é o contínuo fluxo de carne para canhão.”

Ou, em alternativa, também podia pegar no recente episódio do influente rabi que recomendou aos pais judeus que amputassem partes das bonecas das suas filhas para que estas não caíssem na categoria de “ídolos”. A partir daqui, seria fácil inferir que o Judaísmo é coisa de psicopatas delirantes.

Seria grotesco e simplório, não é? Pois. I rest my case(2).

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Para uma nova licenciatura

É um assunto que não pode rivalizar com a importância do jogo desta noite entre o Benfica e o Barcelona, sequer com o interesse do jogo Alcaçovense contra o Fazendas do Cortiço (1ª Divisão Distrital, o Fazendas perdeu por um golo tendo marcado dois), mas que preocupa um grupo restrito de pessoas: educar os pais a serem pais.

Uma das últimas vacas sagradas, talvez um tabu, que não se ensina nas escolas, por maioria de razão não se ensina nas famílias, não ocupa os líderes de opinião, não suscita parangonas, não se ouve nas conversas de café, não consta dos programas partidários, não entusiasma, não aquece, só arrefece – para se ser responsável por um ser humano durante os seus anos de formação basta ser-se doador do material genético?

A sociedade não reclama do Estado uma regulamentação da qualidade da paternidade, nem se consegue conceber essa eventual logística. A complexidade e melindre da questão esmagam os raciocínios e ninguém se atreve a dizer que os pais vão nus para a paternidade e que são obscenos na crença de bastar amar os filhos para que os filhos sejam amados. O quadro penal apenas contempla os casos de óbvia – e excessiva… – violência física, sendo o resto varrido para debaixo do tapete da privacidade. Entre homem e mulher não metas a colher e entre pais e filhos não ligues aos sarilhos (acabei de inventar, muito obrigado).

Consequentemente, o mercado para psicólogos, advogados, astrólogos, trafulhas da religião e um sem-número de vendedores de banha da cobra cresce saudavelmente. Ou seja, nem tudo é mau na situação. Sempre se vão criando uns empregos.

Sinistro

O caso do afegão convertido ao cristianismo, e preso com risco de ser condenado à morte, é uma nítida radiografia da sociologia do Islão, do seu fundamentalismo e do terrorismo que reclama a sua bandeira. Estes clérigos islâmicos são aliciadores de fanáticos, numa lógica puramente religiosa. Nos países muçulmanos onde não há outras fontes de informação e formação, ou onde elas são incipientes, o sentido constrói-se coercivamente a partir das patologias instituídas como cultura religiosa. O resultado é o contínuo fluxo de carne para explosão.

Obviamente, há um conflito de civilizações. O Ocidente foi o local da sua primeira batalha. Vencemos ao longo de séculos. Mas a guerra pela secularização ainda vai reclamar mais vidas, por tempo indefinido.

Sinistra

A Esquerda partidária reclama defender os direitos, interesses e ambições dos trabalhadores. Os trabalhadores por conta de outrem (estes, potencialmente ainda mais disponíveis para acolher o discurso que os nomeia) são mais de 75% do total que trabalha, em Portugal. Se a realidade fosse euclidiana, a distância mais curta entre os partidos de Esquerda e os interesses dos trabalhadores seria o voto. Só que a realidade é a 4 dimensões (pelo menos), tem curvas e a velocidade não é a mesma para todos os corpos. Os partidos de Esquerda permanecem minoritários, alguns sem qualquer representação parlamentar. A par deste desconchavo, ninguém pode contestar o primado do Direito, as liberdades de associação e expressão políticas, as novas tecnologias de comunicação; que, na parte e em conjunto, tornam absurda a reclamação de “a mensagem não estar a chegar”. A mensagem chega, mas não convence. Porquê?

A Esquerda partidária – não a Esquerda intelectual, universo maior e camaleónico – vive no século XIX. E tem uma atitude romântica, anticientífica. Por isso, não consegue explicar ao trabalhador o que quer dizer “luta de classes”, enquanto continua a fazer de Marx o seu Mafoma. Mas é no discurso anti-autoridade, anti-capitalismo e anti-América que a Esquerda revela a sua acabada distopia. A sociedade para quem a televisão generalista e vácua chega e sobra, que não lê livros nem jornais, mas baba-se perante revistas cheias de retratos dos ufanos ricalhaços, reúne-se e festeja já só por causa do futebol, realiza-se no ter uma casa e um carro mais caros, para depois continuar a multiplicar os hipnóticos sinais exteriores de fartança, que prefere fechar-se em casa a participar na cidadania e que aceita com conivência a corrupção do vizinho, não speaka marxês.

Se querem falar com esta gente, traduzam.

Sempre inconveniente, Mr Camilo

Escrevia, há dias, João Camilo no seu Blue Everest (clique algures aí à sua direita):

Blogues e jornais

– Qual é a diferença entre um blogue e um jornal como o Público, por exemplo?
– Os jornais são blogues impressos em papel e que se compram nos quiosques.

– Mas há blogues que querem entrar em competição directa com os jornais. A mesma atitude, a mesma ambição, a mesma sapiência.
– São os blogues de pessoas com mentalidade de jornalista.

– Gente com ambição política ou ambição de guiar e elucidar as massas ignorantes?
– Qualquer coisa assim. Esses eu não os leio, não tenho paciência nem tempo.

– Imaginam-se marginais, mas lutam pelo tipo de poder e de influência que têm os jornais.
– Qualquer coisa assim. Prolongam e repetem o sistema. Não tem interesse. Podem ser úteis, mas eu prefiro coisas mais verdadeiras.

Comentário nacionalista para um ponto de ordem sobre a discussão da nacionalidade de Viriato

Tenho seguido com atenção o agradável debate sobre a origem do herói Viriato. Luso? Espanhol? Baetíca, erética, Estrebão, não interessa. Acreditem em mim que eu percebo destas coisas. Alguém virtuoso, honrado e íntegro como Viriato só pode ser português. Os pérfidos amigos traidores que o rodeavam, e que lhe venderam barata a pele, admito serem todos espanhóis. RMD

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório