Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Domingueiros

logoPublico.gif

Ao domingo o PÚBLICO é um festim de inteligência. Botam discurso alguns concidadãos que, por díspares esteios convergindo num mesmo desígnio, nos tentam aproximar uns dos outros. Por ordem de paginação:

António Barreto
Analisa com detalhe, diagnostica com rigor. A sociedade aparece-lhe decadente e incorrigível. A salvação nacional está na friável dependência de um jacarandá sito no cruzamento das ruas do Salitre e Rodrigo da Fonseca, Lisboa. Ou de outros florescimentos bem mais improváveis.

Frei Bento Domingues, O. P.
Abre portas, janelas e clarabóias no claustro Católico. A luz fere pupilas habituadas à escuridão, a corrente de ar constipa os desagasalhados. O sermão deste domingo tem leituras de Julia Kristeva. Mas muito piores do que os cegos que não querem ver, dentro da Igreja, são os cegos que não querem pensar, fora dela.

João Bénard da Costa
Uma voz apaixonada. Que se dá em lusco-fusco, sombreando evidências, iluminando mistérios. Escreve como um escultor. E, como um escultor, dá forma à nossa memória colectiva. Cinzelada com golpes de erudição. Entalhada na pedra macia de uma vida que se projecta, bem realizada.

Francisco Teixeira da Mota
Colunista discreto, por estar confinado a uma só temática. Da sua leitura nasce uma perplexidade lateral: a quem interessa que o povo não se interesse pela aplicação do Direito? A Justiça é mais importante do que as Obras Públicas, a Economia, a Saúde, a Educação. Eis mais uma coisa que não nos ensinam na escola.

Vasco Pulido Valente
O “vate português valente”, cantor dos dias do fim de uma Nação moribunda. Os que se limitam, com desdém ou acinte, a apontar o seu pessimismo, como se fosse uma falha de etiqueta no banquete da ilusão ou um estrupido a afligir o sono já sem sonhos, são cúmplices da desgraça.

«Modernos escravos»

Em comentário ao post Uma agenda ibérica?, a nossa comentadora Sombra produziu o texto que aqui se transcreve.

o direito dos povos à sua autonomia é uma conquista muito importante. há alguns k ainda lutam por ele, vejam o caso dos tibetanos. a luta pela liberdade, o direito a não ser subjugado por outro povo, não é uma questão de esquerda ou direita. tanto uns como outros têm interesses aí. o k acontece é que são por vezes parciais: defendem esse direito quanto a uns povos, e recusam-no a outros conforme os interesses geoestratégicos que defendem. eu, como portuguesa k sou e ciente de que mesmo ganhando mais, não estaria melhor dominada por castela, prefiro de longe lutar para k o meu país, com todas as debilidades k tem, permaneça uma pátria livre. sabem como nos classificaram os romanos quando aqui entraram? como um povo de escravos k trabalhava para os castelhanos. escravos de castela… é isso k querem voltar a ser? a troco de quê? mais uns tostões no bolso? a dignidade e a liberdade não se vendem. e isto não é de direita ou de esquerda, é um valor humano. bascos, catalães e galegos ainda hoje lutam por isso…querem deitar fora aquilo porque outros estão dispostos a morrer? portugal é uma conquista de todos nós e um direito que legamos aos nossos filhos. escravos modernos, é isso k querem para eles? na galiza só é aceite o galego escrito e falado à espanhola, a norma linguística imposta por castela. aqui há uns anos uns professores de galego que ensinaram a norma de raiz portuguesa (a verdadeira, a do galaico-português) tiveram processos disciplinares e já nem sei se foram mesmo presos… eu própria – em tempos idos que não há muito – transportei para a galiza (a pedido de amigos galegos) livros sobre a galiza e portugal que eram proibidos lá. porquê ? porque eram sobre a independência da galiza, ou defendiam a norma linguística proibida! temos é de lutar por viver melhor neste país, não vendê-lo mais do que já está. não ficaremos melhor. isso é uma ilusão. olhem o k nos aconteceu com os filipes e olhem o que está a acontecer agora: não nos estão a ajudar em nada, colocam a todo o momento obstáculos à entrada das nossas empresas e entram tanto quanto podem aqui, para quê? deixam aqui o dinheiro? não, levam-no para a sua pátria e vão. nos deixando cada vez mais pobres a nós. já se esqueceram do que nos tentaram fazer com o petroleiro que destruiu a costa galega? mandá-lo para aqui, só não entrou pk tínhamos um governo que o impediu (e tb não interessa se era de direita ou esquerda, interessa k nos protegeu). mas a galiza não escapou e castela não a protegeu. abandonou-os, lembram-se ? é isso k quereriam para nós? e não, não troco o alentejo e o algarve pela galiza. algarvios e alentejanos, são portugueses, os galegos… bem, são galegos…têm algo a ver connosco, mas não são portugueses. ao longo da história assim o foram provando. Viram-se para nós quando lhes interessa para “chatear” castela, mas depressa se voltam contra nós e nos traem a favor de castela quando têm algo a lucrar com isso. queiram ou não queiram, portugueses somos nós, e ou fazemos algo por este país, ou estamos perdidos. ninguém vem cá dar-nos nada. só tirar se puderem. não tenham ilusões. nunca ouviram dizer que não há almoços grátis?

Sombra

Uma terra sem blogues (de novo)

Ainda algumas anotações, para os amantes da estatística, sobre a blogosfera holandesa.

1. O título do post original, «Uma terra sem blogues», era uma alusão cultural (porventura demasiado subtil), não um dado estatístico.

2. A cada nova estatística, estes dias aqui aduzida, sobre os blogues em neerlandês, mais nítido se me tornou que, na Holanda, a blogosfera NÃO VIVE. Há imensos blogues? Seiscentos mil? Será a realidade subestimada, e são um milhão? Seja. E todavia, comparando com o nosso estremecido Portugal, É COMO SE NÃO EXISTISSEM. Quase não têm significado social, cultural. Mesmo gente culturalmente empenhada tem dificuldade em perceber o que possa ser isso de um «blog» ou um «weblog». O termo, de momento, não se lhes agarra a nada na mente.

3. É, talvez, significativo que o termo «blogosfeer», que nada impede de funcionar em correntio neerlandês, quase só aparece em contextos de… marketing.

4. No arquivo do diário NRC (digamos, o «Público» holandês) aparecem as seguintes referências à blogosfera:

Blogosfeer, 20-04-2006
Elke seconde komt er een weblog bij, 06-08-2005
De nieuwe Orwell, 27-05-2005
Het slagveld van de waarheid, 24-12-2004
‘Rathergate’ en de oude media, 07-10-2004
Veel te verliezen, 07-10-2004

Isto é, em dois anos e meio, o termo (não só o tema, mas o termo, a palavrinha) apareceu apenas seis vezes: três em 2004, duas em 2005 e uma neste corrente 2006. E esta última vem na secção de… Economia.

Moral: não se criou ainda, na Holanda, qualquer noção da blogosfera como comunidade cultural. Um «Aspirina B» (ou um Barnabé, ou um Abrupto, ou um Blasfémias, ou um Da literatura, até mesmo um Esplanar) seria, de momento, coisa impensável. Mas, sobretudo, não sei como se tornaria ela realidade. Necessitaria de uma dinâmica. Que não vejo desenhar-se nem sei que caminhos seguiria.

Sobre isto, e sobre a viva blogosfera portuguesa, reflecti um pouco no post original. E a minha perplexidade foi, aí, compartilhada por vários comentadores (inclusive blogueiros), que também conhecem o meio holandês. A perplexidade continua.

Eu sou o outro

magritte_reproduction-interdite.jpg

Há décadas que a minha vida é assombrada por um duplo. Tudo começou quando um fulano bem apessoado me cumprimentou em plena rua de Cascais, bramindo o seu espanto com o quanto eu engordara, perguntando-me se “continuava ir ao rugby” e despedindo-se com sentidos votos de felicidades para uma “esposa” que eu nem tinha à altura. Escusado será dizer que nunca antes vira tal criatura.
Depois, foi o abraço de urso que me desferiram à má-fila num centro comercial. O simpático agressor estava deliciado por me voltar a ver, eu que tinha sido um dos poucos amigos a ir visitá-lo ao hospital e estas coisas um gajo não esquece porque antes quando estava à porta da discoteca era só palmadinhas nas costas e tu-cá-tu-lá mas depois da cena do tiroteio e da granada já ninguém o conhecia de parte alguma. A não ser eu, claro está. Que até lhe tinha emprestado dinheiro. Recusei um súbito assomo de ganância e disse-lhe para me pagar noutra altura mais propícia, depois de endireitar a vida e despistar os tais “gajos” que teimavam em apoquentá-lo.
Os encontros mais ou menos pícaros foram-se sucedendo. E nunca me passou pela cabeça desfazer o equívoco e tentar convencer aquela malta que não era eu o tipo porreiro que já não viam há uma carrada de anos. Agradava-me a ideia de manter algures uma vida secreta; tão secreta que nem eu desconfiava o que andaria a fazer (sempre era uma explicação mais agradável para o costumeiro cansaço matinal do que uma apneia do sono ou coisa que o valha).
Afinal, ter um sósia tem o seu frisson metafísico; nem é preciso ser fanático do Borges para apreciar o calafrio da identidade dúplice, a vertigem do labirinto de espelhos. Tudo isto dá uma certa gravitas à minha ronceira vida de suburbano hipertenso.
Ainda há uns meses, numa função solene em pleno Alentejo, dei com mais um destes “amigos” contrafeitos. Um tipo bastante bêbado que começou por se pendurar no meu braço a recordar episódios de batidas ao javali e uma regata que devíamos ter ganho. Depois, insinuou que a minha relação com a sua mulher tinha ar de não ser inteiramente sã e que a próxima caçada poderia incluir um acidente muito desagradável. Sendo já tarde demais para denunciar o engano, limitei-me a tartamudear um “eh pá, deixa-te lá disso” e fugi para junto da mesa dos canapés, onde meti conversa com um padre que parecia mesmo o Ricardo Araújo Pereira a fazer de padre. Sei agora que o meu alter-ego afinal é um valdevinos apostado em causar-me algum percalço. Talvez seja boa ideia cortar a barba.
Mas se calhar há por aqui eventos mais complexos do que uma simples parecença física. Uma qualquer instância arbitral destes mistérios ontológicos pode bem ter procedido a uma experiência de âmbito inescrutável, criando não um mas dois eus, dando-lhes depois circunstâncias e acasos diversos. Palpita-me que o meu doppelganger é que ficou com a vida aventurosa e divertida. A mim tocou-me o jardim sempre em estado semi-selvagem, as contas do saneamento básico, as idas ao Continente e as varizes.
Se algum dia o encontrar, sou homem para trocar de lugar com ele. Nem que seja à força.

Lá volta a cantilena do “Fidel milionário”

É coisa cíclica: volta meia volta ouvimos falar duma por certo rigorosa lista da revista Forbes que atribui a Fidel Castro uma fortuna esbugalhante. Desta vez, é-nos apresentado como sétimo líder mais rico do mundo, na formidável companhia de reis, sultões e príncipes casadoiros.
E como é apurado o valor do criminoso pecúlio do ditador cubano? Varia de ano para ano. Mas é sempre método mui científico e fiável. Antes, calculavam, para poupar trabalho, uma percentagem do PIB de Cuba e atribuíam-no a Fidel. Passados uns anos, começaram, generosamente, a dar-lhe uma fatia das receitas das empresas estatais que representam, nas palavras da insuspeita revista, «state-owned assets Castro is assumed to control».
Este ano, é tudo mais rigoroso: «we assume he has economic control over a web of state-owned companies (…) To come up with a net worth figure, we use a discounted cash flow method to value these companies and then assume a portion of that profit stream goes to Castro. To be conservative, we don’t try to estimate any past profits he may have pocketed, though we have heard rumors of large stashes in Swiss bank accounts.» Partem do princípio, assumem e até dão de barato os esbulhos passados, apesar dos credíveis rumores que andam por aí.
Que a Forbes, notória pelo seu militante anti-castrismo, persista na fábula mascarada de jornalismo, ainda vá. Bizarro é que tanta gente — da RTP a blogues respeitáveis — nem se dê ao trabalho de investigar o site da revista antes de dar eco a historietas sem qualquer fundamento visível.

Eucaliptex

«O acesso electrónico do Diário da República vai poupar ao Estado quatro milhões de euros por ano, anunciou o Ministro da Presidência, Pedro Santos Silva, que salientou que, com esta medida, “vai haver uma redução de 1400 toneladas de papel por ano, o equivalente a 28 mil eucaliptos”.»

[in Diário de Notícias, edição de hoje]

Gineceu (2)

angola.jpg

Aqui há uns dias, chegou de Angola uma notícia alarmante: a miss angolana, a belíssima Stiviandra Oliveira — que encima estas linhas — seria impedida de participar num concurso internacional de beleza por «ser muito clara para os gostos da maioria negra».
Tal campainha bastou para levar saliva a algumas bocas. Curiosamente, a direita civilizada e a “outra” coincidiram quase ipsis verbis numa análise: «Imagine-se a reacção dos media e dos arautos do politicamente correcto (a nível nacional e internacional) se se tratasse de um caso inverso, intitulado por exemplo “Miss Portugal é muito escura”…» teve como contraponto «Agora imagine-se que em Portugal, ou em qualquer outro país europeu, sucedia o mesmo (eleição duma negra como miss) e havia alguém a usar o argumento racial… caía o Carmo e a Trindade e a súcia anti-racista militante vinha para a rua protestar…»
A grande diferença acabou por ser que o Insurgente tratou de afixar um desmentido a atribuir as dificuldades de inscrição da jovem ao regulamento sobre as idades das concorrentes. Os “outros” ainda por lá andam a discutir a notícia inexistente.
Indesmentível é que parece crescer em Angola um clima de hostilidade para com os mestiços. Basta colocar um olho nos comentários que a eleição de Stiviandra suscitou para confirmar que, em nome do regresso a uma supostamente autêntica “negritude”, muitos julgam mesmo que esta miss não deveria representar o seu país. No meio da discussão, lê-se de tudo: do bruto «Para já os latons e as latonas africanos (as) deveriam é maritar com os senegalés, puros negros. A mulher mais linda é a mulher de natureza negra e sem nenhuma melanjerias» ao elaborado «Nos, os negros Angolanos, temos que passar a valorizar a nossa cultura. Nisto, teremos mesmo que por os mulatos e brancos de lado; eles teem a sua própria agenda, que é subjugar-nos permanentemente. Vejam só a volubilidade com quem os latoes e pulas, nesse comentários, estão a celebrar a vitoria desta latona como Miss Angola! O pais é nosso, agora muitos de nos passamos a ter muito dinheiro; deixemos esses apatridas de lado».
O preconceito, por muito pensado que seja, é sempre espectáculo feio. Mas os “separatistas raciais” portugueses esmeram-se na arte: «é a primeira vez que vejo um macaco maquilhado»; «Pretos racistas contra pretos? Estarão a evoluir?»; «Os pretos são mesmo feios, como é possivel haver lá “misses”?!!»; «Pelos vistos fazes parte daquela camada que foi “socializada” – (leia-se sujeita a lavagem cerebral) e que agora acha muito giro ver uma rapariga branca acompanhada por um preto, dar à luz uma baratita…». A não esquecer: é disto que falamos quando falamos da nossa extrema-direita.

Mas vamos ao que interessa: não sei se a Stiviandra vai mesmo ser candidata ao tal título “universal”. Certo é que parece ser mulher para dar “dez a zero” à desengraçada miss lusa

Gineceu

helena_roseta1

Helena Roseta é uma das minhas personalidades políticas favoritas. Foi íntima de muitas figuras que fizeram a nossa História na segunda metade do século XX. Foi uma das fundadoras do Botequim, tinha 24 anos. É arquitecta. É mulher. E sempre que fala parece dizer o que pensa.

Uma das provas de Portugal estar amaldiçoado desde Alcácer-Quibir reside no facto de esta pessoa nunca ter sido Primeira-ministra ou vir a ser Presidenta da República.

Uma terra sem blogues

Hoje, numa aula, aproveitei um momento de descontracção para falar de blogues. Andamos entretidos com o estatuto jurídico das línguas minoritárias, não-estatais, na Europa, e eu contara aos alunos o que sabia sobre a bela posição do galego, há tempos 14º em espaço na Internet, muito devido ao grande número de blogues. E falei-lhes, sob esse pretexto, no mundo trepidante da blogosfera. Eu sabia que estava a falar de Marte, mas a minha missão, e o meu prazer, é desenvolver culturalmente aquelas dezenas de jovens adultos. Mesmo com assuntos exóticos.

Na Holanda, a blogosfera não existe, nem como conceito nem como realidade. Alguns políticos têm uns blogues, mas nada que se assemelhe ao Abrupto ou à Causa Nossa. São simples caixas de propaganda, modernaças e pirosas. Os paisanos têm uns diários com grande renovação fotográfica e emocional, e alguns jornalistas disponibilizam simpaticamente textos já aparecidos. Não é estranho?

Não, não é. Os holandeses conhecem, já de há dezenas de anos, vivíssimos circuitos de opinião. Todas as quartas-feiras aparecem os semanários, uns bons doze à escala nacional, e neles a reflexão, a tomada de posição e o confronto predominam, com muita crónica, muito ensaio opinativo, muita divulgação, muita reacção de leitores. E os diários, mesmo decrescendo em vendas, conservam um considerável número de assinantes, que muitas vezes os acumulam com os semanários.

Será a blogosfera, então, um índice de subdesenvolvimento? Acho-me longe de supô-lo. Estaremos, antes, perante um simples funcionamento do ‘avanço retardador’. Nos transportes em Portugal paga-se electronicamente, na Holanda ainda se usam módulos, que um dia foram inovadores. Nós ultrapassámo-los com a blogosfera. Mas vínhamos de muito pouco, quando eles já nadavam em fartura de opinião. Não, os meus alunos vivem, aí, em pleno século XX. Eu só estava a falar-lhes do futuro.

Um módico contributo para o tento na língua

No afã de dar mais “modernidade” e “flexibilidade” ao Português, não cessam as novidades teratológicas. Depois do infame e esverdeado “glauco”, que continua a sua profícua carreira por esse mundo fora, salta-me agora a atenção para o vocábulo “módico”.
Mas quem se terá primeiro lembrado de martelar o pobre adjectivo até dar em substantivo? Hoje, de João Pereira Coutinho a este mesmo blogue, passando por locais mais ou menos recomendáveis e por fontes mais ou menos abruptas, poucos escapam à epidemia.
Não sei se a coisa terá raizes eruditas, no latim “modicus”; parece-me mais provável a parola importação directa do Inglês. Ao pé disto, julgo que a história do “estória” é inovação perfeitamente benigna e até louvável.

Uma agenda ibérica?

Puxo para aqui o curiosíssimo texto com que Orlando Braga comentou o meu post «Líricos, pobres e ibéricos», um texto que lança sobre o assunto uma luz desconhecida e incómoda. Existirá, então, uma ‘agenda ibérica’ comum a Zapatero e a Sócrates? Ou ela é só de Zapatero, mas Sócrates acha perfeito? Serão as declarações de «profundo iberismo» do ministro dos Transportes, afinal, menos anódinas do que pareceriam? Mantenhamo-nos atentos. E lúcidos. E críticos. Tanto mais que a nossa folclórica extrema-direita já anda cheirando a caça.

Li todos os comentários até agora e muita gente tem muita razão. Conheço muito bem Espanha, por imperativos profissionais; e quando digo que conheço, falo do conhecimento do país de lés a lés, das pessoas, de muita conversa com muita gente, desde o povo menos letrado até a intelectuais de renome.

É verdade que o “iberismo” em Espanha não existe (até há bem pouco tempo), porque o espanhol em termos gerais, ou é contra a Espanha das nacionalidades (integrismo espanhol, extensivo a Portugal), ou é a favor da independência da sua nação (separatismo); não existe, normalmente, meio-termo nesta escolha por parte dos espanhóis. Ora, o Iberismo pressupõe um compromisso entre estas duas hipóteses: resulta daí a ideia do Leviatão Ibérico.

O Integrismo espanhol é tanto de esquerda como de direita; de direita quando expressa no passado pelo “Império” celebrado pelos nacionalistas tradicionalistas (“nacionalismo tradicionalista” segundo o conceito de Fernando Pessoa) e de esquerda por via dos republicanos que sempre defenderam a anexação de Portugal. O separatismo existiu desde sempre. Não foi por acaso que durante séculos o centralismo de Madrid incentivou a “colonização” das nacionalidades peninsulares; hoje encontramos mais andaluzes, galegos, castelhanos etc. em Bilbau do que bascos. A língua galega é proibida nos organismos públicos galegos; o etnocídio galego continua.

Portanto, se a ideia da “união ibérica” das nacionalidades não existiu, é de facto “a novidade política” introduzida por Zapatero, naquilo a que os intelectuais espanhóis (integristas ou separatistas de direita e de esquerda) chamam de “deriva nacional-zapaterista”. O conceito de “união ibérica” segundo Zapatero, consiste no Leviatão Ibérico, independente — na sua dinâmica e ideário — do projecto europeu, embora se aproveite das suas sinergias políticas. É este o novo “iberismo”: a construção paulatina presentista de um supra-estado ibérico, um Leviatão que apague a memória histórica, e que a partir da Ibéria das Nacionalidades, contribua para a unificação ibérica sob uma bandeira e uma língua comum utilitária e civilizacional: o castelhano.

Depois disto, podemos compreender as “concessões” de Zapatero em relação às nacionalidades, podemos compreender os protestos da direita tradicionalista espanhola, e podemos entender que o que Mário Lino disse não foi consequência de uns copos a mais de bom Alvarinho. Teria dúvidas é se Sócrates está metido nesta mistela, mas em política, o que parece, é.

Orlando Braga tem um blogue.

Velha Lísbia

Imagem do Expresso
SaFernandes2.jpg

Foi para isto que votei no homem: José Sá Fernandes apresentou uma ideia que é, no seu também simples pragmatismo, um manifesto de amor a Lisboa; e, por extensão, ao meu Portugal sonhado, às cidades por inventar, à História das estórias, à cultura da lógica da batata e da ética dos tomates, ao comércio da praça, ao turismo que envaidece, aos namorados da eterna esperança, às crianças de 90 anos, aos solitários que gostariam de estar sós, aos bem casados para incredulidade dos amigos, aos escrivães de versos banais, aos oradores de improvisos previsíveis, aos que lêem jornais por uma questão de sobrevivência, aos maluquinhos das fotografias, aos que se encantam com passeios de domingo às quartas-feiras, aos que não podem perder as manhãs de Sol, aos que escutam o Tejo a passar na alma, aos que ainda esperam partir nas caravelas, aos profetas da Velha Lísbia, aos que alucinaram e pedem informações, àqueles a quem apetece muito e já e no agora deitarem-se ao comprido num banco sem terem coragem para tal nem para muito menos, aos que passam de carro e juram voltar sabendo que estão a mentir por saberem que estão a jurar, aos que marcam o primeiro encontro num jardim por causa dos pontos de fuga, aos cães sempre aparvalhados, aos pássaros sempre de cabeça no ar, aos gatos sempre a pensarem lá nas coisas deles, a todos os puros de coração que nunca são falados sendo mais do que os outros que nunca estão calados e às minhas pernas.

Trata-se de demolir um acto de ódio a Lisboa, feito nos anos 70 na avenida 24 de Julho, criando no seu lugar um lugar. Para a catarse ser completa e exemplar, o prédio na posse da Direcção-Geral da Administração Pública deveria ser destruído e varrido do mapa pelos lisboetas. Eu iria.

Os guardadores de rebanhos

No DN de sábado, lia-se esta passagem duma crónica de Fernanda Câncio. Se essa passagem salvar uma vida, já valeu a pena. Se a sua cópia aqui puder salvar outra, halleluyah. Copiai, pois, e multiplicai-vos com mais tranquilidade. De resto, Alberto Caeiro, no poema VIII do «Guardador de Rebanhos», diz uma coisa que serviria aqui de epígrafe. Mas sejamos, por uma última vez, caridosos.

Preservativo, the católico way

Ao fim de 23 anos, de 23 milhões de mortos e 40 milhões de vivos infectados, a Igreja Católica pôs-se a pensar e achou que, caramba, se calhar o preservativo é um “mal menor” . Mas não vá a malta concluir que isto agora é à tripa-forra e ainda por cima com bênção celestial, esclarece a Conferência Episcopal portuguesa que a admissão do uso do terrível e até agora proscrito artefacto é apenas e só para o “contexto do matrimónio” e se “algum ou os dois estão infectados”. Traduzindo: os católicos não casados não devem usar preservativo seja em que circunstância for; os católicos casados que tenham relações extraconjugais devem esperar até ficar infectados e saberem-no sem sombra de dúvida para usar preservativo com a pessoa com quem estão unidos pelo indissolúvel laço (que por essa altura, pela lei das probabilidades, já há-de estar também infectada, pelo que a permissão está duplamente assegurada). Mas qual a surpresa? O objectivo da Igreja é salvar almas; o corpo é sempre um mal, maior ou menor.

A crónica na sua totalidade está aqui.

Matéria negra

Há uns dias, conheci uma mulher a quem morreu um filho. Antes de a ver, já sabia do drama banal: o miúdo que desfalece sem aviso, o diagnóstico de tumor incurável, a tentação do suicídio, o longo e raivoso luto. Já sabia que não tivera mais filhos nem regressara por inteiro à vida; sabia que mantinha intocado o quarto da criança morta, que o seu desgosto se dava a mais uns quantos caprichos um pouco sinistros. Imaginei que todos os convivas daquele jantar tivessem também ouvido as mesmas histórias, recitadas entredentes como um segredo quase vergonhoso ou como uma fábula terrível que deixa sempre o mesmo arrepio: “e se tivesse sido eu?”
Claro que aquela mãe presa num nojo perpétuo e malsão tinha tudo para ser a atracção principal do jantar. Ainda em pé e de copo na mão, dei por mim a espreitá-la através de uma distância meio respeitosa meio medrosa. Estar face a alguém que sobrevivera a uma perda assim parecia-me coisa admirável; quase como conhecer o primeiro capitão a ultrapassar o Bojador ou trocar banalidades sobre o tempo com um astronauta reformado. Temo ter embasbacado por longos segundos, feito mirone da dor alheia. Mas não era o único. Bastou-me um pouco de atenção para reparar na lenta coreografia que animava os convivas: estes aproximavam-se da mulher, como que por casualidade, endereçando-lhe algumas palavras nos casos mais afoitos, e fugiam de seguida para a outra ponta da sala. Presos a órbitas parabólicas em redor de um astro que mal tocam: atraídos até certo ponto para logo se verem repelidos, talvez receosos de arriscar um qualquer contágio pela proximidade excessiva.

Continuar a lerMatéria negra

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório