Eu sou o outro

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Há décadas que a minha vida é assombrada por um duplo. Tudo começou quando um fulano bem apessoado me cumprimentou em plena rua de Cascais, bramindo o seu espanto com o quanto eu engordara, perguntando-me se “continuava ir ao rugby” e despedindo-se com sentidos votos de felicidades para uma “esposa” que eu nem tinha à altura. Escusado será dizer que nunca antes vira tal criatura.
Depois, foi o abraço de urso que me desferiram à má-fila num centro comercial. O simpático agressor estava deliciado por me voltar a ver, eu que tinha sido um dos poucos amigos a ir visitá-lo ao hospital e estas coisas um gajo não esquece porque antes quando estava à porta da discoteca era só palmadinhas nas costas e tu-cá-tu-lá mas depois da cena do tiroteio e da granada já ninguém o conhecia de parte alguma. A não ser eu, claro está. Que até lhe tinha emprestado dinheiro. Recusei um súbito assomo de ganância e disse-lhe para me pagar noutra altura mais propícia, depois de endireitar a vida e despistar os tais “gajos” que teimavam em apoquentá-lo.
Os encontros mais ou menos pícaros foram-se sucedendo. E nunca me passou pela cabeça desfazer o equívoco e tentar convencer aquela malta que não era eu o tipo porreiro que já não viam há uma carrada de anos. Agradava-me a ideia de manter algures uma vida secreta; tão secreta que nem eu desconfiava o que andaria a fazer (sempre era uma explicação mais agradável para o costumeiro cansaço matinal do que uma apneia do sono ou coisa que o valha).
Afinal, ter um sósia tem o seu frisson metafísico; nem é preciso ser fanático do Borges para apreciar o calafrio da identidade dúplice, a vertigem do labirinto de espelhos. Tudo isto dá uma certa gravitas à minha ronceira vida de suburbano hipertenso.
Ainda há uns meses, numa função solene em pleno Alentejo, dei com mais um destes “amigos” contrafeitos. Um tipo bastante bêbado que começou por se pendurar no meu braço a recordar episódios de batidas ao javali e uma regata que devíamos ter ganho. Depois, insinuou que a minha relação com a sua mulher tinha ar de não ser inteiramente sã e que a próxima caçada poderia incluir um acidente muito desagradável. Sendo já tarde demais para denunciar o engano, limitei-me a tartamudear um “eh pá, deixa-te lá disso” e fugi para junto da mesa dos canapés, onde meti conversa com um padre que parecia mesmo o Ricardo Araújo Pereira a fazer de padre. Sei agora que o meu alter-ego afinal é um valdevinos apostado em causar-me algum percalço. Talvez seja boa ideia cortar a barba.
Mas se calhar há por aqui eventos mais complexos do que uma simples parecença física. Uma qualquer instância arbitral destes mistérios ontológicos pode bem ter procedido a uma experiência de âmbito inescrutável, criando não um mas dois eus, dando-lhes depois circunstâncias e acasos diversos. Palpita-me que o meu doppelganger é que ficou com a vida aventurosa e divertida. A mim tocou-me o jardim sempre em estado semi-selvagem, as contas do saneamento básico, as idas ao Continente e as varizes.
Se algum dia o encontrar, sou homem para trocar de lugar com ele. Nem que seja à força.

19 thoughts on “Eu sou o outro”

  1. Photo matton e vox,
    Herberto Helder – Esse!
    Borges e Buenos Aires, as facas, os tigres!
    escreves bem e eu acho que andas a habitar universos paralelos. hoje tens duas identidades, amanhã três, depois mais, mais, mais, um dia será o universo.terás atingido a budeidade. não te admires com essas coisas…eu també já fui muitas, hoje sou tão só uma sombra.voltarei num dia k não seja de nevoeiro.

  2. Lindo, lindo, lindo. E a Sombra percebe-te. Que mais podias querer? E não te constranjas com o Borges ou o Herberto. O Leiria também dava um belo pai, e quem no-los desse mais.

  3. Luís,

    Afirmar isso também faz parte do género. E depois apagam-se, uma a uma, todas as pistas…

    Fora de brincadeiras: também eu, quando te vi, pensei «Eu conheço este tipo». E, se não soubesse que tinhas de ser o meu estimado próximo futuro comensal, ter-me-ia dito «Andas a esquecer-te muito das pessoas».

  4. … o que não exclui, longe disso, que nos tivéssemos já deveras encontrado. O mundo é uma conchinha.

  5. Renato,

    Não digo, porque não sei do caso nem do coiso. Informe-me, seja piedoso.

  6. Rapidamente, que as minhas traduções não estão ao lado, mas sim bem no centro do ecrã…

    O senhor doutor Brian Weiss era um insigne psiquiatra da sua paróquia morte-anericana que não andava satisfeito com as próprias iniciais (BW), pois tinha para si como de elementar justiça a inserção de um M entre as ditas, de preferência último modelo, com GPS e sistema de navegação, tecto em pele e estofos de abrir. Todavia, os seus proventos profissionais revelavam-se um tanto ou quanto shrink para esse desígnio.

    Ora — afiança o próprio —, no decorrer de uma sessão com recurso à hipnose, em vez de desatar na catártica memoração da infância, deu na veneta a uma perturbada paciente narrar-lhe episódios de presumíveis vidas passadas dela. De duvidosa dúvida metódica a tiracolo, o BW-ainda-sem-M tratou logo de adentrar-se naquele filão (de conhecimento, claro) e pasmar com a sucessão de revelações que lhe caíram aos pés nas subsequentes sessões com a enigmática moça, que logicamente foi evoluindo a olhos vistos no sentido da cura.

    Obviamente, o rigor científico nada deve a uma descoberta de dimensão tamanha, porquanto se lhe sobrepõe a obrigação imperiosa de partilhar o pasmo com o Mundo, sempre ávido de estímulos metafísicos e transcendentais. O, creio eu, primeiro título (“Muitas Vidas, Muitos Mestres”) vendeu mais que o selo de imposto automóvel na última semana de Junho. E os que se seguiram têm galgado terreno nos escaparates, a ponto que, hoje, qualquer posto de combustível onde não constem os escritos do senhor prestar um mau serviço aos seus utentes. Incontestavelmente. Trata-se, pois, de um novo Paulo Coelho a singrar nas sete partidas do planeta, com uma dose menor de folclore mas com mais vida para além da morte.

    Claro que a comunidade científica lhe devotou um sobranceiro soslaio de desdém. Mas que se lixe. O homem agora tem o M que sempre quis. Aliás, tem dinheiro para comprar todas as letras que lhe aprouver. Letra não lhe falta, e os editores agradecem.

    Bons romances, poesia, ensaios, policiais e outros têm edições de 500 e 1000 exemplares em Portugal; e, mesmo assim, quando esgotam é caso para festejos no país das maravilhas. Mas o lixo, a literatura cor-de-rosa, tem sempre mercado neste malfadado aterro social. Dá vontade de reencarnar calhau!

    (E isto, rebuscadamente e nada rapidamente, afinal, a propósito de “… o que não exclui, longe disso, que nos tivéssemos já deveras encontrado. O mundo é uma conchinha.”)

    Até já.

  7. o renato tem carradas de razão. mas sso não impede que o Permalink tenha escolhido uma foto belisíma e escrito um bom texto.

  8. Nem por sombra. Dos poucos textos que, aqui, li dele, o Luís escreve muito, muito bem. E além disso com alma e conteúdo, o que nem sempre se conjuga.

    Até já.

  9. Luís,
    Mais uma vez, agradeço-lhe uma prenda destas, e ainda por cima ao sábado, como há alguns anos, quando ía comprar o monde, para ler os contos e novelas da última página. Escreve muito bem e o Renato também.

  10. Há muitos anos, eu caguei na terra dos antepassados e fugi. Dissolvi-me numa cidade grande, passei a falar estrangeiro e mudei a cor do meu cabelo: fiquei ruiva. Fiz um porradal de coisas, em turnos do dia e da noite, em ruas de A a Z. Morei num monte de sítios, sempre em prédios grandes, onde os vizinhos não se conhecem. Ia sozinha ao cinema, encharcava-me de televisão e sempre que lia jornais deixava as notícias de lado: o fait-divers tornou-se a minha especialidade. Queria estar absolutamente livre e ter o meu espírito livre só para mim.

    Gostava da chuva, do tempo de merda, das noites que caíam cedo, das luzes cruas dos supermercados onde eu comprava comida de plástico. Gostava dos transportes públicos, do tom anónimo da correspondência, da casa desarrumada onde ninguém entrava. Mas a minha vida não era perfeita, às vezes aparecia gente a estragá-la. Gajos não. Às vezes eu fodia, como toda a gente, mas o sexo dos homens é outro continente, como eu percebo bem os paneleiros. O que eu quero dizer é que às vezes aparecia gente “significativa”, que me desviava dos meus propósitos insignificantes e me acordava para o passado – dezasseis anos e menos mas já a terra parada, a casa fechada, as mãos atadas, o peito preso, com uma vontade “física” de fugir mas também com uma estranha, ridícula, desprezível sensação de que não devia, que eu era dali.

    Uma vez foi alguém parecido com a minha avó, quase uma hora ao meu lado no andar de cima dum autocarro. Outra vez foi numa loja de indianos que ficava aberta toda a noite, ao lado de um bed-sit onde eu vivia. Entrei antes das onze para comprar cerveja e o tipo do balcão riu-me para mim: “¬Outra vez?” Eu disse: “-Não percebi”. Ele disse outra vez: “-Outra vez”. Eu perguntei porquê e ele disse: “-Você esteve aqui há cinco minutos, não esteve?” Parvalhão: há cinco minutos estava eu…, pensei mas não disse, disse foi: “-Não, é confusão sua”. Então ele disse: “-Se não era você era a sua sombra” e eu adoptei a palavra dele, e a partir daí vivi com uma sombra como outros vivem com um cão (uma mulher de uma farmácia também a viu um dia), até que uma noite ela apareceu no meu quarto, sentou-se na minha cama, acordou-me e disse-me: “-Se quiseres fugir, foge, mas nunca vais conseguir perder-te”.

    E após esse encontro nocturno a minha sombra esfumou-se, não tive de levá-la outra vez a passear, não voltou a ir às compras à minha frente nem atrapalhou mais o meu sono, mas fez-me saber que eu nunca ia conseguir ser uma estranha numa terra estranha. Porque eu conseguia esquecer as lembranças de que não me queria lembrar ou a família que não tido escolhido, mas não conseguia perder a memória de mim própria nem deixar de ser quem era. (Ainda investiguei se não podia apagar limpar o meu disco inteiro, mas isso não é morrer?)

  11. vocês andam para aqui a retirar mensagens, mudar os nomes dos autores, escrever textos de mau gosto em nome de colaboradores. então está bem! fiquem lá a falar sózinhos que eu não estou para aturar parvos ( é , no sentido próprio : pequeninos…muito pequeninos…além disso o texto está mau, muito máuzinho mesmo – o que para mim ainda é o pior de tudo. fiquem então para aí a brincar sózinhos…

  12. Sombra,

    Calma aí. Quero supor que o texto assinado por «A sombra» não é seu. Mas aqui não se retiram mensagens (entendendo-se que «spam» não é mensagem), não se mudam os nomes dos autores, menos ainda se escrevem textos de mau (ou óptimo) gosto em nome de «colaboradores» (pretenderá dizer comentadores?). Pode tirar as consquências que desejar. Mas saiba que essa sua porta fica a bater no vazio.

  13. A moda da Margarida Rebelo Pinto parece estar a pegar: alguém registou o nome Sombra…. e tem um ego tão grande que julga que eu tinha reparado que alguém já tinha assinado com esse nome! Não, filho (ou filha): eu escrevi um texto (aliás belíssimo, porque o meu ego não é menor que o teu, e o meu português é bem melhor) por causa do texto do LR, e quanto aos teus atestados parolos de cultura literária (HH e Borges… “em dias k não de nevoeiro”) fica sabendo k são só isso mesmo: pa-ro-los.

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