Anteontem houve mais um espectáculo a vários títulos degradante na TVI, desta feita em horário nocturno. Já entrei a meio. Percebi que a jornalista Ana Leal passara uma reportagem em que homossexuais iam a consultas (talvez tenha sido isso) a psicólogos católicos que não rejeitavam a “cura” nestes casos e que as imagens e gravações das consultas e terapias tinham sido obtidas por métodos dissimulados, como câmaras e microfones escondidos. Vi a grande indignação da principal convidada, a psicóloga Maria José Vilaça, apelidada de membro de uma seita secreta, e também do psicólogo que se sentava a seu lado. Depois de argumentações e contra-argumentações acaloradas sobre o que verdadeiramente se disse ou quis dizer e o que a reportagem fez e mostrou, sem surpresa de maior, os dois “réus” da Ana Leal levantaram-se, um primeiro e a outra pouco tempo depois, e foram-se embora. A partir daí (e não foi muito mais), passei para o modo “visualização intermitente”. Mas que história. Fiquei, assim, por culpa minha, sem perceber se os pacientes procuravam mesmo curar-se ou se iam simplesmente pedir ajuda para os seus conflitos internos e saíam de lá sem alternativa que não fosse um aconselhamento espiritual com vista a uma cura, com toda a carga emocional excedentária que isso impõe precisamente à parte mais frágil (mas algo burra, diga-se).
Ora, sobre o que vi, que foi particularmente mau, tenho a tecer as seguintes considerações: a Ana Leal, e digo-o com base em reportagens anteriores, em que meteu a pata na poça em grande, está longe de ser uma autoridade mundial em matéria de investigações jornalísticas e de apresentação dos seus resultados. Agressiva, julgadora, má intérprete de dados, inquisitorial. O facto de a sua expressão facial ser por vezes assustadora não me convence do seu rigor nem da sua probidade. Instalar câmaras escondidas em consultórios médicos e transmitir as imagens é uma tangente, com riscos de ser uma enorme secante, à ilegalidade. Nisso os dois indignados tiveram razão. Posto isto, que já é mais do que suficiente para desatinos e broncas em directo, pareceu-me óbvio que a dita psicóloga católica estava a negar demasiados factos da sua prática clínica para o meu gosto e, ao contrário do que seria de esperar, não estava a defender as suas convicções de que a homossexualidade é um problema (não exijo que diga doença) passível de reversão (não exijo que diga “cura”). E devia tê-lo feito, se é isso que pensa, a bem do debate (e talvez do seu próprio esclarecimento).
Apesar disso, ao contrário de muitas opiniões excitadas que leio por aí, não acho que se deva mandar calar a senhora e retirar-lhe a carteira profissional só porque tem ideias indemonstráveis e erradas. É que isso levar-nos-ia muito longe. Quantos médicos já consultei na vida que não perceberam nada do que eu tinha? Nada. Zero. E me indicaram terapias disparatadas? Estaria feita e já nem estaria aqui, se fizesse o que disseram. Bom, mas se ela tem pontos de vista contrários àquilo que a ciência vem apurando sobre a homossexualidade e ao que a observação empírica nos diz, o mínimo era que os defendesse, caramba. Lamentavelmente, não foi isso que fez. Ou porque teve medo que a Ana Leal a comesse (é uma hipótese) ou porque não saberia o que dizer, dada a sua orientação clínica ser ditada pela fé e pelas orientações da igreja católica e pelo preconceito, ou ainda porque o seu colega resolveu abandonar a sala e a deixou sozinha. Seja como for, optou desde o início por negar afirmações que proferira e que muitos ouviram. Duplamente mal: pelo que na prática faz e por não o saber defender.
Mas, dir-me-ão os leitores em abono da jornalista, os ataques (e o programa, vá) não tinham razão de ser? Afinal Maria José fala publicamente, exerce a profissão, etc., e o que ela pensa da homossexualidade acaba por causar grande dor aos que a procuram em busca de equilíbrio. Sim, é verdade. De facto, ela exerce a profissão e mal, com muito pouco espírito científico, substituindo a consulta médica por um aconselhamento espiritual segundo os preceitos de um dado credo religioso. Mas também só é verdade se partirmos do princípio de que quem a procura é imbecil, confia cegamente nos profissionais de saúde, em todos e em qualquer um deles, sente dever de obediência a qualquer um e, enfim, neste caso da homossexualidade, vive completamente alheado deste mundo. Mundo este em que ser homossexual é comum – quantos políticos, artistas, apresentadores, jornalistas, tantas pessoas famosas e não famosas, amigos, conhecidos, têm contribuído para quebrar tabus e desdramatizar a situação?
Está bem, não chega. Eu compreendo que muita gente precise de ajuda e que lhe servem de fraco consolo os outros casos de afirmação. Só que eu sou fortemente contra a estupidez. Se vais consultar uma psicóloga e sabes que ela é católica e pauta a sua prática clínica pelas orientações da ICAR, já deves saber ao que vais, ou ficar a saber onde foste, não? Tens centenas de outras hipóteses. Além disso, não é de excluir que existam pessoas como a psicóloga Vilaça e os seus clientes que queiram alinhar pelas suas “terapias” bizarras. A questão é esta: proíbe-se?
Quanto à seita e aos seus membros, a Ordem dos Psicólogos pode e deve ter uma conversa séria com a senhora Vilaça, mas o pior é fazer deles vítimas… de más práticas jornalísticas.




