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Guitarra

(O José do Carmo Francisco pediu a guitarra. Aqui vai ela. O Fado da Meia-Noite existia mesmo, e a minha Mãe aprendeu a tocá-lo numa guitarra feita pelo meu avô. Não consigo encontrar ninguém actualmente que conheça essa melodia. Ter-se-á perdido, infelizmente.)

– Interessa é encher a barriga. – Disse António com um nó na garganta.
Elvira pareceu querer sossegar nele a compaixão pressentida.
– Daqui a dias, não me há-de faltar trabalho a ceifar, se Deus quiser, e a respigar, que sempre trago uns braçadinhos de trigo para casa.
Depois de os ceifeiros porem em descanso as foices e o corpo, às vezes já noite alta se era de lua cheia, ela ficaria ainda colhendo as espigas esquecidas, mais abundantes nas searas segadas por mãos habituadas à caridade, no cumprimento de uma recomendação bíblica que talvez ninguém conhecesse mas que era cumprida como um mandamento divino.
A felicidade de contemplar o rosto de Helena, mais bela à luz somítica da lamparina do que decerto D. Amélia no esplendor do seu palácio, minguava com a visão daquela ceia de couves. Pobre era ele também, mas sempre tinha qualquer coisa mais forte, embora apenas para encher o estômago, já que o que poderia fazer a vontade às gulodices da boca não se punha na mesa dos pobres. Lá vinham, na roda do ano, três ou quatro dos seus dias que mereciam a celebração dos sentidos, com direito a carne, vinho, massa sovada ou malassadas. Mas, para isso, era preciso que Jesus nascesse ou ressuscitasse, e que fingissem todos que eram ricos, como os mascarados do Carnaval fingiam ser reis ou demónios sem deixarem de ter os pés duros como sola e sem passarem de uns pobres diabos. E, se havia a folia do Entrudo e a relativa abundância de alguma outra festa em honra de Deus ou da Virgem, todo o resto do ano era Quaresma.
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Ainda Elvira

(Como eu gosto desta minha personagem Elvira, deixo aqui um pouco mais do seu retrato. É de ter em atenção que a história se passa na viragem para o século XX. Foi sempre uma mulher com má fama na boca do povo. António era um rapaz muito querido, tocador de guitarra, já sem pai, de uma família que se julgava da melhor cepa. Provocou um terramoto em casa quando disse que queria casar com Helena, a filha, cega, de Elvira. Este é um excerto da sua primeira visita a casa delas.)

Bateu à porta com a inquietação como fronteira entre o receio e a esperança. Não se importou que os últimos olhares curiosos à luz dos restos do crepúsculo se dirigissem para si, estranhando a visita, ou talvez não, porque muita gente já teria com certeza ouvido e contado tão improvável amor.
Foi recebido com pouca surpresa, bem menos do que imaginara. Helena mexeu-se na cadeira, inquieta, enquanto ele caminhava em direcção à cozinha, mal iluminada pela luz minúscula da lamparina, que tinha a torcida, acabada de acender, reduzida ao mínimo. Para a cega eram iguais os dias e as noites, e a mãe sabia também os cantos da casa palmo a palmo sem precisar de luz ou de olhos abertos, pelo que poupava no petróleo o mais que podia. Distraíra-se, no entanto, ao recebê-lo com tão vaga claridade e, por isso, pediu desculpa e deu um pouco mais na torcida.
– Ainda está praticamente de dia. – Disse António, apenas para mostrar que nada havia a ser desculpado. Porque a verdade era que a penumbra lá de fora pouco tinha já de semelhante com a luz do dia. E a lamparina nada acrescentara ainda às sombras da noite que chegava, a não ser o pequeno clarão amarelado que iluminava pouco mais do que a si mesmo.
Estava resolvida a dificuldade de começar a conversa. Cumprimentou Helena com um simples “olá”, a que ela correspondeu, envergonhada, dizendo “olá, António”. Seguiu-se um silêncio que seria tanto mais embaraçoso quanto mais se prolongasse. Estranhava que Elvira não lhe perguntasse o que vinha fazer. Com certeza já sabia…
No prato de Helena havia duas batatas cortadas ao meio, no de Elvira nenhuma.
– Quando dei por mim, só tinha quatro batatinhas em casa. A gente amanha-se assim mesmo. – Deu sinal a António para que não fizesse comentários, e convidou por delicadeza: – És servido?
Aquela mulher era muito diferente do seu retrato falado.

Elvira

Elvira ia, desprevenida de penas desta ou da outra vida, aos matos ou ao moinho, e não lhe dava cuidado pensar muito em virtudes que, na sua idade e pela sua condição, eram difíceis de guardar. Do mato voltou sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Se é que amor se podia chamar àquilo, o moleiro na sua ardência juvenil, ela com pouco entusiasmo conformada, porque ele lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo seu trabalho. E mais pudera, se ao menos essa pequena graça lhe não fizesse!…
Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:
– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?
Bem bom que os pulos do coração não se notam, se não se leva o ouvido ao peito ou a mão ao pulso, e assim escapou de deixar a descoberto uma clara aparência de que escondia alguma culpa muito grave.
– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.
Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, a mãe levantou os olhos para o tecto negro do fumo, e exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:
– Ainda há gente boa neste mundo!…
Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão.
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Sentença exemplar

Lá pelo ano de 1858, na ilha do Faial, havia um homem, viúvo, que tinha o usufruto dos bens da mulher defunta. E tinha também uma criada, que não sei se fazia parte do usufruto, mas que parece que ele usufruía. E por isso lhe dava a vestir as roupas da amantíssima esposa que Deus levara a contas jovem ainda. Pois contas lhe pediu um herdeiro da senhora (o embargante), exigindo que ele lhe entregasse os atavios da dama extinta, ou deles prestasse caução. A questão foi levada a tribunal, e mereceu uma curiosíssima sentença do juiz da Horta, homem que, pelo seu sentido de humor, deve merecer a nossa admiração perpétua. Quem tal não admirou foi o Tribunal da Relação, que nesse tempo havia em Ponta Delgada, que mandou dar-lhe uma grande descompostura, de cuja leitura foi encarregado o juiz da comarca mais próxima, que era no Pico. O juiz da Horta teve de descer da sua cadeira, e, à vista e aos ouvidos de todos o seus inferiores, foi assim que ouviu a severa admoestação. Que não merecia, penso eu. Opinião que se perceberá melhor passando a uma das partes mais interessantes da sentença, na qual o juiz justificava a decisão em favor do embargante, que se insurgia contra o facto de o embargado dar a vestir à criada as roupas da mulher finada. Sentenciou a seu favor, é certo, mas aproveitou para ridicularizar o homem, como se verá.

“Seria o embargante qual outra primavera de touca, caso se apresentasse enfeitado com um dos vestidos daquela relação a fl. 3; sobrepondo o apertado espartilho, tornando-se assim uma jovem fantástica; e demais se ainda em volta do seu níveo colo voltas desse de fios de finos corais, e se cobertos os dedos de brilhantes anéis, e em desdém sustendo fresco de que, seria, não uma encantadora bela, mas uma decrépita personagem hábil a afugentar assustadas crianças. Era justo pois no requerente arredar para longe esse espectáculo sem privar contudo o mesmo embargante do usufruto de tais objectos.”

Na sentença se faziam outras judiciosas considerações, como aquela em que se justifica, pela leis de Deus e da natureza, que o embargante, também viúvo (e assim se percebe para quem quereria as roupas e atavios) sentisse como é frio o frio que sente quem vive só. Eis, a esse respeito, outro mimo. (Mas faço este parêntese para dizer que, no texto, está “ultémas”, que suponho tratar-se de “ulemas”, como o são os talibans, capazes de inventar sempre a melhor maneira de ler o Alcorão a seu favor.) “Verdade é que o ano não vai bem para enlaces matrimoniais. Uns saem mancos, aleijados, outros farfantes e de estulta impostura, mas não é decerto a tanto que se pretende expor o embargante, que antes quer seguir o conceito do velho abade do Bispado de Viseu, que tendo-lhe recomendado observar a constituição do mesmo Bispado que só consente aos revd.ºs párocos ter criadas em casa de cinquenta anos de idade, o bom e inteligente Abade, seguindo a opinião dos sumos sacerdotes ulemas, e para cumprir aquela disposição, tinha duas criadas, cada uma de vinte e cinco anos.”

Velhos

Comeram o pão que as mães amassaram. Às vezes não havia nem uma côdea no armário. Esperaram as festas maiores para dar à boca o sabor da carne. Eles aprenderam a cavar quando o sacho era ainda do seu tamanho. Elas começaram a varrer a casa quando a vassoura era ainda mais alta do que elas mesmas. Não foram à escola, porque o alfabeto não matava a fome. Não tiveram creches nem infantários onde despejar os filhos. Quando algum caía, não havia mais tempo do que para o animar dizendo “não se chora, não foi nada”, e continuar a cuidar do lume. Curvaram a cerviz perante os poderosos, porque os pobres não se podem dar ao luxo de ter orgulho. A sua mesa preservou velhos sabores, aprovados por dezenas de gerações. A sua voz entoou canções da idade do tempo na ilha. As suas mãos não permitiram que rebentassem para sempre as cordas da viola-da-terra. Adoraram Deus e veneraram os Seus santos. Respeitaram e foram respeitados. Sonharam com uma velhice cheia de bênçãos bíblicas. Agora, sentem uma acusação em cada hora de abandono. Dizem-lhes que são um peso que custa a suportar. Como se Portugal não estivesse vivo porque eles viveram. As rugas das suas faces são um resumo biográfico escrito pelo tempo que a vista, embaciada, não pode ler em pormenor. Mas as pernas acumulam o cansaço de todos os degraus da vida. Não mentem. Têm os braços cansados de acenar vezes sem conta a umas mãos em adeus num carro visto por trás. E choram, às escondidas. O coração não lhes dá para mais. Qualquer dia, qualquer noite, um sopro leve, um derradeiro sopro. Outros os pés que farão por eles a última caminhada. E umas gotas de água e sal… Com um pouco de sorte, haverá também umas lágrimas do hissope e uma cruz mal feita, entre a testa e o peito, de meia dúzia de anojados. Terão amado a sua terra até ao fim. Até ao fim da vida. “Ah! se eu fosse novo e soubesse o que sei hoje…” dizem. E sonham outros mundos. Mas teriam feito e dito as mesmas coisas. Seriam felizes. E, depois de velhos, pensariam que não tinham sido.

Daniel de Sá

Balada galega

Manuel María, poeta galego contemporâneo, termina assim a sua “Balada ós meus pequenos enemigos”:     

            Meu querido enemigo: agradecido estou

            a túa incompreensión, ó teu pequeno odio

            inofensivo, a tua língoa en miniatura,

            ó teu cativo leite que non coalla:

            así vas ben, tí descansas i eu tamén.

            Dificilmente conseguimos alcançar a perfeição de oferecer a outra face a quem nos bate, mas o desprezo teria quase o mesmo efeito. O orgulho, porém, é muitas vezes mais forte que o nosso desejo de paz. Ou até nos apetecem mesmo algumas guerras, para provarmos que somos capazes de enfrentá-las ou de atiçá-las. No entanto, e à semelhança do que de outro modo disse o poeta galego, as palavras do ódio não são nunca proferidas por uma língua eloquente.

A paixão de sóror Josefa do Menino Deus

Entre os seus papéis venerados no convento, depois de uma morte em odor de santidade, ao esmorecer da tarde de sexta-feira, dia 21 de Outubro de 1768, havia um soneto à margem do qual estava anotado pela madre superiora: “Soneto que fez a mui piedosa sóror Josefa do Menino Deus, grande devota da nossa Santa Madre Teresa, a quem neste soneto modestamente quis imitar depois que leu e meditou na bondade de Nosso Senhor pelo perdão que concedeu à mulher adúltera.”

A fama de santidade de sóror Josefa terá sido justa. Mas as razões que a levaram a todos os jejuns e penitências que apressaram a sua morte, e às longas orações muito além do que a regra impunha, foram outras que não essas por que é costume fazerem-se os santos. Como prova documental, que a uns servirá de acusação e a outros de exaltação das suas virtudes, leia-se a última carta que escreveu antes de ir para o convento. Guardava dela o rascunho, que só entregou, a dois dias da morte, a sóror Maria do Imaculado Coração para que a revelasse quando lhe parecesse conveniente, e no caso de entender que poderia servir de exemplo para prevenir futuros e desgraçados casos como o seu.

A carta, sem o nome do destinatário, começa com uma saudação simples: “Meu Amor”, e logo no princípio a jovem Josefa deixa perceber claramente as razões por que assim procedia.

DANIEL DE SÁ

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Dueto a uma só voz

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O meu amigo José do Carmo Francisco, um poeta de suave sensibilidade, foi também jornalista do jornal “Sporting”. Costumava acompanhar por todo o País as equipas jovens do nosso clube, e houve uma vez em que começou assim a crónica de um jogo: “Verde pode ser a cor da paixão. O verde das folhas da videira a anunciarem as uvas e o vinho novo. Os verdes anos da juventude que quer apressar a chegada do amanhã. Verde da paixão, paixão do verde. Das folhas da videira que hão-de secar no Outono. Felizes os que os deuses não amam, porque talvez não morram jovens. Felizes os que, como as folhas da videira, não são jovens para sempre. Porque só a morte faz eterna a juventude.” Esta introdução parecia ser mais do que um simples efeito literário. E era, de facto.

Dispondo de umas horas livres, resolvera passear pelos arredores da vila onde os juniores do Sporting iriam jogar, e chegara até uma quinta em cujo portão, ao lado de uma casa carregada de velha dignidade, era anunciado vinho do produtor. Mais como consequência do seu espírito curioso do que por desejo real de comprar algum, embora fosse esse o pretexto com que justificaria o que ali ia fazer, puxou a corda da sineta que servia para chamar quem devesse abrir o portão, mas foi à porta da casa que apareceu um homem de bom aspecto, com cerca de quarenta anos, que o mandou entrar por ali, dizendo depois das apresentações: “Minha mulher não está. Foi visitar a irmã.”

DANIEL DE SÁ

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CENAS DA GUERRA COLONIAL

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A borboleta negra

À primeira rajada, a coluna atirou-se para o chão, evitando as bermas da picada que poderiam estar minadas. Mas o furriel Braga permaneceu de pé, inexplicavelmente de pé, sem fazer um gesto sequer para disparar a G-3.
(Na véspera dissera ao furriel Gonçalves: “Nunca hei-de contar a ninguém o que passámos aqui.” O amigo perguntara: “Tens vergonha?” E ele respondera: “Tenho. Tenho vergonha de que me chamem mentiroso.”)
Nuvens de poeira ergueram-se à sua frente e à sua direita.
(Passara quase todo o dia a beber, e, quando o Gonçalves o aconselhara a deitar-se para estar em boas condições de madrugada, porque iriam sair para o mato, disse que preferia aproveitar umas duas ou três horas mais de vida.)
Resistiu ao primeiro impacto de bala, cambaleando.
(À noite, na messe, lera várias vezes o poema de Carlos Drummond de Andrade “E agora, José?” Tentara mesmo que alguém o ouvisse, mas a sua insistência de bêbedo só resultou com o Melo e o Gonçalves. No final, com um ar alheado de ter estado com pouca atenção, o Melo dissera: “Isso nem sequer rima.” Respondera-lhe: “És uma besta!” Mas o Gonçalves mostrara-se admirado com o poema: “Nem sequer dei por isso” e pedira que o lesse outra vez. O Melo fora buscar mais uma cerveja e não voltara à mesa.)
Parecia equilibrar o corpo como se lutasse contra um vento ciclónico.

DANIEL DE SÁ

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Factos e protagonistas dos tempos da FLA

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O jornal “Açores” era uma espécie de órgão oficioso da FLA. O tempo que se vivia era de autêntica pré-guerra civil, pelo que as mentiras ao serviço do movimento, como aquela notícia absolutamente fantasiosa com que comecei o «post» anterior, faziam parte da acção psicológica. O seu director, Gustavo Moura, veio a ser preso por causa disso e foi, honra lhe seja feita, o único até hoje, em cerca de trinta, que publicamente em entrevista na RTP ouvi reconhecer a justiça da sua prisão (na sequência do 6 de Junho, a que me referirei adiante.)

Porquê eu?

Eu, simplesmente porque estou a contar a história. Mas outros sabem tanto ou mais do que eu, e foram tanto ou mais protagonistas de um lado e outro das duas frentes.

O “Açores” foi o jornal em que comecei a escrever como colaborador gratuito, e mantive-me lá até ao Verão quente de 1975. Por essa altura publiquei um artigo contra a independência que foi mal aceito. Depois escrevi outro cuja publicação foi recusada, mas que foi levado para uma reunião da FLA em que disseram de mim (soube-o por um dos participantes, que fora redactor do “Açores”) o pior que se pode imaginar. Ainda escrevi um artigo contra a política gonçalvista dos saneamentos selvagens, que foi publicado, o que não aconteceu a um segundo, por medo das represálias. Por causa disso, deixei de colaborar lá e passei para o “Correio dos Açores”. Um dos artigos que neste escrevi provocou duas ameaças de bomba, a suspensão de catorze assinaturas e o pedido de sete novas.

Quando a FLA começou a ganhar cada vez mais força, organizei aqui na Maia duas manifestações contra a independência. Foi a única freguesia dos Açores a fazê-lo, o que foi um golpe incómodo para a unanimidade que a FLA fingia recolher dado o silêncio da contestação popular. Havia resistências pontuais em Ponta Delgada, por parte de comunistas e socialistas, mas nenhum movimento de massas. Foram postas bombas artesanais feitas com botijas de gás, várias pessoas foram agredidas, automóveis queimados, a sede de alguns partidos e a casa da família do Jaime Gama incendiada. (Os primeiros incendiários foram extremistas de esquerda, que pegaram fogo à sede do Movimento para a Autodeterminação do Povo dos Açores, antecedente “legal” da FLA, fundado por gente do PPD.) Quando o director do “Açores” arrefeceu o seu apoio à causa também apanhou com uma bomba em casa por represália, bem como Américo Natalino de Viveiros, secretário do governo regional, pelo mesmo motivo.

DANIEL DE SÁ

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Daniel de Sá e a Frente de Libertação dos Açores

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Daniel de Sá (à esq.) com o realizador brasileiro Douglas Machado. As janelas da casa do Daniel, na esquina, com barras verdes, foram reforçadas contra possíveis atentados à bomba por parte da FLA.
A casa foi ainda protegida a partir da escola à direita, de que se vê o gradeamento.

Num comentário, foi pedido ao Daniel de Sá alguma informação sobre as suas relações com a FLA (Frente de Libertação dos Açores). O Daniel fixa-se num episódio, que foi relatado no jornal Açores, em Outubro de 1975.

Foi queimada uma bandeira da FLA, na Maia. O autocarro da carreira Ponta Delgada – Maia chegou meia hora mais cedo para os passageiros assistirem ao acto. A bandeira fora hasteada às escondidas, durante a noite, numa casa desabitada em frente da igreja por um grupo de socialistas, dos quais faziam parte eu e um colega chamado Francisco Sousa [veio a ser presidente nacional do Sindicato de Professores]. Essa queima fora preparada em minha casa, durante um lauto banquete, com a presença de dois altos dignitários do PS. A bandeira terá sido arrastada pelo chão, pisada, lançada à lixeira, e depois queimada.

DANIEL DE SÁ

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MANIFESTO

A estupidez ganhou mais uma batalha. Cristo aconselha a dar a outra face, e já o fiz aqui uma vez. Mas isso foi com o Jorge Carvalheira, homem de grande talento e que, no caso, tinha alguma razão. Todavia, a face que podemos dar, se a tanto nos chegue a tolerância, é a nossa mesma. A dos outros, devemos defendê-la o melhor de que formos capazes. E vocês escolheram o momento errado para o fazerem, ó acéfalos dos pseudónimos multiplicados. Porque, monstros do absurdo, atingistes uma família exemplar. E já aí vinha aparecendo o mote da menoridade mental das ilhas. Ilhas onde nunca se queimou uma rapariga por ter fama de bruxa, como na zona geográfica, e umas duas décadas antes, do conto que não passa de um capítulo truncado de um livro meu. E, enquanto socialistas e comunistas lutavam em Lisboa pela divisão do país entre si, aqui sofríamos juntos prejuízos graves na integridade física e risco real de vida, para que Portugal, ao menos no mapa, continuasse unido. Eu fui um dos principais alvos, e nunca virei a cara à luta. Mas essa era uma luta que valia a pena, embora, perante casos como o desta turba ululante que andou a morder-me, chegue quase a duvidar de que sim. Ser português com gente desta envergonha. Porque foi gente assim que fez dos liberais ditadores tão violentos como os partidários de D. Miguel, que espatifou o ideal republicano, que ofereceu a cadeira onde haveria de sentar-se o homem de Santa Comba.

Eu admiro há muito tempo o Fernando Venâncio, e há uns vinte anos sou amigo do José do Carmo Francisco, que também admiro. E depressa me tornei um entusiasta da escrita do Jorge Carvalheira e do Valupi, e das aparições da doce Susana. Mas não suporto o grau zero da inteligência afectiva da turba acéfala de comentadores. Por isso lhes deixo o meu desprezo. Sem um pingo de remorso nem uma gota de ódio. Porque o não merecem.

Ficai-vos na sombra de onde espreitais as vítimas que aleatoriamente escolheis. Sede felizes em assassinar moralmente quem vos apetecer. Já sabeis o meu nome, embora pouco saibais de mim. Não procureis conhecer muito mais, para vos sentirdes mais à vontade a continuar ferindo, se vos der na gana.

Tenho pena de que um blog tão bem concebido atraia tal multidão de porcos. Que hão-de continuar a abocanhar as pérolas frequentes que aqui aparecem. O problema é com os bons joalheiros que cá existem. Que continuem, se a tanto lhes bastar o ânimo. Por mim, a experiência foi já suficiente.

Não quis reagir a quente, mas afinal a lucidez foi-me perturbando cada vez mais. E pela última vez peço desculpa: àqueles cujos nomes referi, sobretudo ao Fernando Venâncio.

Para eles, o meu abraço e a minha disponibilidade total. Mas não aqui.

DANIEL DE SÁ

Laura

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Laura, a mais maldita e mais desejada em toda a serra… Olhos como os seus Deus não deveria dar a uma mulher destinada a ficar viúva tão moça ainda. Ou teria ela de os não ter ou teriam os homens de andar cegos para que não vivesse sempre em risco de perdição. E tudo no seu corpo estava-lhe feito à medida, ou pelo mesmo valor das duas pérolas negras que faziam coruscar desejos.

A única fortuna que lhe ficara, depois de o marido morrer, foram aquele corpo e aqueles olhos que já levara no dote. “Negros como os do Diabo”, diziam as velhas pudicas, compondo as saias nas pontas dos pés, ou as raparigas invejosas de os seus não serem iguais. Para elas, beleza e pecado eram causa e consequência, lodo e lódão sinónimos absolutos. Em reservada lura se acoitaria ela, sem nunca se ver o efeito da devassidão. Pois pudera! Se vivera quatro anos com o marido sem gerar alma viva… Era estéril, erma como os penhascos da serra, podia dar-se a gostos sujos sem nunca ter de lavar cueiros.

DANIEL DE SÁ
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Um hino à vida

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No Correio da Horta de 26 de Outubro de 2006, li um “Agradecimento” que me emocionou muito. Vinha acompanhado da fotografia de um menino, chamado Guilherme, e referia duas datas: 10/08/2001 – 27/09/2006. Nada mais. Mal acabei a leitura, peguei numa folha de papel e numa esferográfica, e improvisei um breve poema.

Depois vim a saber que aquele menino era neto de Antero Gonçalves, um dos nomes míticos do desporto açoriano. Atleta de várias modalidades, foi no futebol que se tornou famoso. No Fayal Sport, o clube mais antigo dos Açores. Um Homem extraordinário. Enviei-lhe o poemazinho, e ele acabou por me pedir autorização para o gravar numa lápide em memória do neto. Aqui vos deixo o “agradecimento” como lição de vida, ou do sentido da vida, só possível em espíritos de eleição. E o poemeto.

“AGRADECIMENTO. Aos meus queridos avós, primos, padrinhos, tios e familiares. A todos os da minha orgulhosa Escola B1/J1 da Vista Alegre – coleguinhas, professores e auxiliares de educação. Aos meus companheiros de futebol e aos treinadores da Escolinha de Futebol do FSC. A todos os amigos dos meus pais que simpatizaram comigo. Aos médicos, enfermeiros e funcionários do Hospital da Horta que sempre foram muito carinhosos comigo sempre que precisei de lá ir. Aos meus grandes amigos médicos Drª. Isabel Gonçalves, Drª. Carla Veiga, Dr. Emanuel Linhares Furtado e restante equipa, enfermeiros, auxiliares de acção médica, professores da salinha de actividades e funcionários do Hospital Pediátrico de Coimbra, e por último a todos aqueles que me acompanharam na igreja Matriz da Horta numa maravilhosa celebração eucarística no dia em que cheguei ao meu querido Faial, o meu agradecimento por me terem permitido ser tão feliz durante os meus 5 anos de vida.”

UM HINO À VIDANem flor efémera, leve
Como um sorriso perdido.
Nem borboleta tão breve
Que num voo só alcança
O tempo de ter sido,
Num bater de asa que dança.
Nem um até amanhã,
Que amanhã é outro dia,
É dia de outros, mamã,
E com a mesma alegria.
Nem mil beijos ou abraços.
Nem mais passos… nem mais passos…
Nem flores de despedida,
Nem vozes contra o destino.
Só isto: mudei de vida
E serei sempre menino.

DANIEL DE SÁ

Servir

Homenagem, na pessoa do Professor Moniz Pereira, a todos os que dão muito mais do que aquilo que esperam receber.

Foi há mais de vinte anos. Carlos Lopes acabara de chegar à meta da glória na Cidade dos Anjos. A emoção apertou-me a garganta e espremeu-me as esponjas das lágrimas.

Pensei no Professor Moniz Pereira. Deveria estar sofrendo a solidão dos treinadores quando os atletas vencem na pista e recebem todos os aplausos. Como se fosse possível aplaudir uma obra-prima esquecendo o seu criador.

Então, e apesar de mais de duas mil léguas nos separarem, imaginei que me aproximava dele e dizia: “Já pensei em si.” Ele olhou-me, sorriu e respondeu: “Pois eu ainda não.”

DANIEL DE SÁ

AUTO DO PLÁGIO

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No dia em que o Sporting apanhou três do Gil Vicente, não fiquei lá muito bem disposto. Para me vingar, brinquei a propósito de um poema publicado em dois jornais açorianos. Não haveria nada de mal se esse poema não fosse de António Gonçalves Dias, poeta brasileiro do século XIX, mas assinado por alguém vivo. Apenas apareciam trocados os nomes de “terra” por “ilha” e de “sabiá” por “biguá”, uma pobre ave que nem sobe às árvores nem canta. E palavra de honra que nem sequer me dei conta da ironia: o que eu fiz foi uma imitação, embora mal feita, de Gil Vicente, o de outros dramas… Aqui o deixo.

Observação: o sistema gráfico deste blogue não permite ‘avançar’ os versos quebrados. O leitor o compensará.

Personagens:
Gonçalves Dias;
Anjo da Guarda;
Diabo.
ANJO – Aonde ides tão asinha?
G. D. – Vou ali e volto já.
A – Levais cara muito má…
GD – Mas a culpa não é minha.
A – De quem é, se a cara é vossa,
E tanto vai transtornada?
GD – Meu anjo, não há quem possa,
Ter cara bem figurada
Se nos rouba a canalhada
Uma coisa que é bem nossa
E que custou a ganhar
Ou a fazer…
A – Pois então…
GD – Eu vou ali ensinar
Um descarado ladrão
Que pegou nuns versos meus
E sem vergonha os fez seus.
A – Ensinar um ignorante
É obra bem compensada.
GD – Mas este, que é um tratante,
Ensino-o à bofetada.

DANIEL DE SÁ
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A Casa do Pai

Seja a casa com portas só de abrir,
Sem grades nas janelas e sem aço.
E que nos aconchegue em cada abraço
Sem nunca ser abraço de ter de ir.

Seja a casa de estar, não de partir.
Que nos aceite, mortos de cansaço,
Com um beijo de amor por cada passo
Dado em muitos regressos, sem sair.

Uma casa que nunca nos pergunte
Que outras casas buscámos e que telhas.
Que toda a gente à porta se nos junte

(Quando algum dia a vida nos demore)
Com um ramo nas mãos – rosas vermelhas.
Mate o bezerro gordo, mas não chore.

DANIEL DE SÁ

Por desacerto mental – não por abuso ou vontade de apropriação – este poema esteve horas aqui sem a assinatura do autor. Parecendo, pois, meu. Não é. Lamentemo-lo.

«O preço de um ‘Scolari’»

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Lendo – já tarde – o «Público» de hoje, dou com esta Carta ao Director.
O autor é da casa. Por isso, esta discreta divulgação.

fv

Todos condenamos facilmente atitudes como a de Scolari depois do jogo com a Sérvia. Ainda que a muitos apetecesse o soco que ele não chegou a dar. A violência não é a finalidade do desporto, tanto mais que idealmente o imaginamos como escola e prática de virtudes.
Pelo Natal de 2005, tive a grata surpresa de uma amiga comum me ter posto em conversa telefónica com o “Felipão”, porque ela sabia que eu o admiro e, por um acaso vindo da infância, torço pelo seu verde Palmeiras. Uma das coisas que lhe disse foi que o futebol era uma escola exemplar de disciplina. Sem tempo então para lhe explicar a ideia, faço-o agora, caso ele leia esta carta.
O gesto irreflectido de Scolari pode custar-lhe muito caro. Muito mais caro do que o mesmo gesto em outras circunstâncias da vida. Sá Pinto pagou um preço altíssimo pelo seu impulso vingador da honra que julgou ferida. O equivalente a muitos milhares de contos e a quase um décimo da sua carreira. Duas faltas leves durante um jogo de futebol podem equivaler a um cartão vermelho, com a respectiva expulsão e o consequente prejuízo de milhares de euros, além de uma multa de centenas. E vale o mesmo uma simples palavra de desabafo em calão.
Não sei que castigo será julgado justo para Scolari. Mas, por mais leve que seja, será sem dúvida muito mais grave do que se ele tivesse perdido a calma num gabinete de trabalho ou num bar de esquina.
Talvez não possa nem deva ser de outra maneira. Mas que há uma enorme desproporção entre a justiça desportiva e a comum, disso não restam dúvidas.

Daniel de Sá
Maia, São Miguel

A fome e o pão bento

O velho carregava uma montanha de anos pelo outeiro acima. Curvado sobre uma cana a servir de bordão. Ia muitas vezes ao mato buscar uns gravetos para a lareira ou o forno. Nesse tempo, não havia subsídio de invalidez nem de velhice. Só invalidez e velhice.

Por isso procurava passar sempre à hora certa, mas fingindo que o fazia por acaso, pela cafua onde pai e filhos comiam ao meio-dia. A pergunta do convite era invariável, a resposta também. E lá vinha a bendita fatia de pão de milho, com um chicharro ou um bocado de cavala.

Aquele pão, assim partido e repartido, assemelhava-se à bênção da Última Ceia.

DANIEL DE SÁ

Diálogo ingénuo

– Mamã, há monstros debaixo da cama?
– Não digas disparates. Há lá nada!
– Mas se houvesse?
– Fazias de conta que não sabias, e pronto. Come a sopa.
– E eles deixavam de meter medo?
– Pois deixavam. Mas vá, come a sopa, que há muitos meninos que querem comer e não têm.
– É verdade?…
– Sim, é verdade.
– Mamã, como é que se faz de conta que não se sabe?

DANIEL DE SÁ