(O José do Carmo Francisco pediu a guitarra. Aqui vai ela. O Fado da Meia-Noite existia mesmo, e a minha Mãe aprendeu a tocá-lo numa guitarra feita pelo meu avô. Não consigo encontrar ninguém actualmente que conheça essa melodia. Ter-se-á perdido, infelizmente.)
– Interessa é encher a barriga. – Disse António com um nó na garganta.
Elvira pareceu querer sossegar nele a compaixão pressentida.
– Daqui a dias, não me há-de faltar trabalho a ceifar, se Deus quiser, e a respigar, que sempre trago uns braçadinhos de trigo para casa.
Depois de os ceifeiros porem em descanso as foices e o corpo, às vezes já noite alta se era de lua cheia, ela ficaria ainda colhendo as espigas esquecidas, mais abundantes nas searas segadas por mãos habituadas à caridade, no cumprimento de uma recomendação bíblica que talvez ninguém conhecesse mas que era cumprida como um mandamento divino.
A felicidade de contemplar o rosto de Helena, mais bela à luz somítica da lamparina do que decerto D. Amélia no esplendor do seu palácio, minguava com a visão daquela ceia de couves. Pobre era ele também, mas sempre tinha qualquer coisa mais forte, embora apenas para encher o estômago, já que o que poderia fazer a vontade às gulodices da boca não se punha na mesa dos pobres. Lá vinham, na roda do ano, três ou quatro dos seus dias que mereciam a celebração dos sentidos, com direito a carne, vinho, massa sovada ou malassadas. Mas, para isso, era preciso que Jesus nascesse ou ressuscitasse, e que fingissem todos que eram ricos, como os mascarados do Carnaval fingiam ser reis ou demónios sem deixarem de ter os pés duros como sola e sem passarem de uns pobres diabos. E, se havia a folia do Entrudo e a relativa abundância de alguma outra festa em honra de Deus ou da Virgem, todo o resto do ano era Quaresma.
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