Elvira ia, desprevenida de penas desta ou da outra vida, aos matos ou ao moinho, e não lhe dava cuidado pensar muito em virtudes que, na sua idade e pela sua condição, eram difíceis de guardar. Do mato voltou sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Se é que amor se podia chamar àquilo, o moleiro na sua ardência juvenil, ela com pouco entusiasmo conformada, porque ele lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo seu trabalho. E mais pudera, se ao menos essa pequena graça lhe não fizesse!…
Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:
– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?
Bem bom que os pulos do coração não se notam, se não se leva o ouvido ao peito ou a mão ao pulso, e assim escapou de deixar a descoberto uma clara aparência de que escondia alguma culpa muito grave.
– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.
Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, a mãe levantou os olhos para o tecto negro do fumo, e exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:
– Ainda há gente boa neste mundo!…
Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão.
Batia-lhe o coração numa galopada louca, nem que tivesse vindo a correr com a carga às costas saltando pedregulhos e valados.
– Vou ter um filho, José!…
O moleiro fez uma cara de espanto, e afastou-se dela como se a visse com lepra.
– E que tenho eu a ver com isso?..
Ter-se-ia passado meia hora, uma hora, desde que Elvira revelara a terrível novidade, ou o tempo a partir de agora iria demorar tanto a passar como aquele minuto, talvez menos, em que ficara à espera de resposta?…E que resposta!… que era já uma condenação à morte em vida. Que havia de dizer? Como havia de dizer o que tinha de dizer? Onde lhe estava a saliva que lhe soltasse a língua e os lábios, secos, secos, como pedaços de barro em Agosto? E o coração pedra viva… Disse:
– José, tens de casar comigo!…
À espera, outra vez. Ele agora com um ar de ódio, que a assustou ainda mais.
– Casar contigo?!… Sei lá quem te fez isso! Andas por todo o lado, como uma cabra!…
Devia casamento a uma prima, tanto como a ela e havia mais tempo ainda.
De repente, o medo fez-se raiva.
– Não sabes?!… Sou uma cabra, seu estupor?… Não sabes que fizeste de mim o que quiseste? Eu mato-te, excomungado!
Atirou-se a ele com a fúria de uma alcateia que defendesse as ninhadas. Tentou bater-lhe na cara, arranhá-lo, mordê-lo, enquanto o rapaz, com a cobardia da culpa, se defendia com pouco êxito. Quando, por fim, conseguiu pegar-lhe nos pulsos e dominá-la, disse:
– Não grites, que ainda te ouvem!
Ela mordeu-lhe a mão direita com tanta força que sentiu o sangue nos dentes.
– Maldita! – Foi o grito de dor e, logo em seguida, uma bofetada.
Elvira abaixou-se, pegou numa pedra e atirou-lha. Falhou o alvo por pouco, e a pedra foi cair longe, rolando pela encosta.
Sabia que a mãe não lhe perdoaria nunca. Foi viver com uma tia que o marido abandonara depois de ter emigrado para a América, de onde nunca mais deu notícias. Quanto à filha, que no baptismo recebeu o nome de Helena, não chegaria a ver nem mãe nem avó nem ninguém neste mundo, nem cor ou coisa nenhuma, porque nasceu cega. Castigo de Deus, acusava-se, que assim mostrava o Seu poder na inocente criatura, como escarmento para todas as possíveis pecadoras desta vida de enganos.
Acabando-se dez anos de casamento, morreu a mulher do pai da sua filha. Uns meses depois do início da viuvez, com cinco filhos divididos por este mundo e o outro – três cá e dois lá –, José foi rogar-lhe, pelo amor de Deus, que casasse com ele. Negou-se-lhe com desprezo, senhora do seu triunfo ao fim de tanto tempo. “Aqueles pequenos não têm quem cuide deles…” Finalmente, a pedrada atingira o alvo.